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CAP III O Campo de experiência:

3.3 O Processo criativo

3.3.1. A realidade e o desdobramento das escolhas na encenação

O objetivo deste estudo cênico foi a composição de cenas híbridas apoiadas na revisão bibliográfica efetuada nos capítulos anteriores acerca das transformações ocorridas no início do século XX no âmbito das poéticas do corpo e da cena. Na versão que integra esta dissertação, nomeada de O Soldado, procuramos unir as linguagens expressivas música, dança, narração, teatro e iluminação de forma mais livre, para que elas e o conteúdo da cena sejam tensionados e problematizados, de modo que nos possibilitasse a percepção de como uma linguagem interfere e alimenta a construção da outra. Essa etapa da investigação começou em março de 2011, com um encontro semanal de três horas, sendo mais ou menos intenso de acordo com as necessidades da pesquisa e condições práticas para sua realização. A realização de um espetáculo completo seria por demais complexa para uma dissertação de mestrado. No entanto, é importante sublinhar que o processo de montagem é um exercício cênico que cumpriu a função de uma “metodologia de trabalho” para que fosse possível compreender, na prática, a atividade com as diferentes linguagens expressivas. Chamarei de “cena”, portanto, quando me referir à apresentada como parte da dissertação – registrada em DVD que acompanha o trabalho.

Para começar o trabalho, após já ter o objetivo em mente, foi necessário olhar para a realidade que tínhamos para começar a compor. Éramos apenas dois no elenco: eu, no papel do Soldado e a artista cênica e pesquisadora Marina Milito, no papel do Diabo e de todos outros pequenos personagens que compõem a trama. Dois músicos fizeram parte do processo desde o início, Fernando Sagawa e Leonardo Matricardi na composição musical e, um ano mais tarde, a iluminadora Carolina Mota.

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Após analisar o texto, o próximo passo foi pensar como a adaptação do conto seria feita para essa realidade de trabalho.

Escolhemos seguir o mais fielmente possível o libreto original de Ramuz e, realizar uma tradução própria, cujo processo será descrito no próximo subcapítulo. Esta escolha já define a estrutura dramatúrgica, cujas divisões serão em partes iguais às estabelecidas por Ramuz e Stravinsky no libreto original, estabelecendo assim o princípio de sequência e em parte o de proporção (pois o libreto definiu as partes da dramaturgia, porém não suas durações, por estar desvinculada da composição cênica. Ao compor, o ritmo é capaz de alterar os tempos das cenas, sendo necessário, ao final, olhar o todo da composição para analisar as relações das durações das partes em relação ao todo e, assim, criar um olhar mais clínico para o princípio de proporção).

O libreto é constituído pelo narrador, três personagens principais: o soldado, o diabo e a princesa e alguns outros menores, como o amigo de guerra e as pessoas de sua terra natal. Depois de estudarmos o libreto, fizemos algumas escolhas de encenação condizentes com a nossa realidade: optamos pelo Soldado nunca sair do palco. Tudo vem em sua direção e alude sutilmente ao fato de que o Soldado já está nas mãos do Diabo desde o começo da peça. Esse o usa como sua marionete, como se o Diabo trouxesse ao palco toda a ilusão de que necessita para obter a alma do Soldado. São interpretados por Marina o Diabo e todos os outros personagens que cruzam seu caminho, além de grande parte da narração, para colaborar com a ideia de que tudo o que acontece no palco é obra do coisa-ruim.

Uma vez que não teríamos o “personagem-narrador”, e a narrativa seria dividida entre os personagens, algumas redundâncias entre ações a narrativas ocorreriam, como por exemplo, no início, o Soldado abre o saco e retira três objetos. No libreto original, tal ação é narrada pelo narrador enquanto o Soldado executa. Como somente o Soldado se encontra no palco no momento, seria redundante permanecer com os signos da narração e os das ações. Então, tendo em vista o nosso elenco reduzido, e considerando que éramos iniciantes na área

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da composição de uma cena híbrida, seguimos alguns passos que Doris Humphrey indica em The Art of Making Dances (1987), a fim de pesquisar as menores partes do princípio de estrutura: olhar para o espetáculo, parte por parte e entender, das linguagens expressivas que se pretende usar para compor o exercício cênico, qual é o campo em que elas melhor podem atuar e em quais momentos, como descritos no subcapítulo 2.3.2.

Então, influenciado por Humphrey, em uma primeira aproximação com o material, busquei deixar para a narração os elementos informativos importantes para a plateia, como apartes, ou indicações de um lugar, de um tempo etc. Para as ações mais teatrais, os elementos da narração que indicam ações concretas; Para o diálogo, alguns acontecimentos, como discussões, conversas, entre outros; Para a dança, elementos mais abstratos e que se relacionam com sentimentos ou ações; E para a música, alguns climas ou “tarabusts”74

das cenas.

Assim como Stravinsky propõe para a sua obra que as linguagens expressivas narração, diálogo e música tenham seus momentos de composição ora em conjunto, ora isolados ou em combinações, nos propusemos também a encontrar momentos em que as linguagens expressivas se alternem, se conectem e transitem entre si com um olhar atento aos três elementos de composição: textura, linearidade e ritmo de cada linguagem expressiva.

Mas antes de entrarmos no relato sobre a construção pelo hibridismo poético, discorrerei sobre os direcionamentos tomados por cada uma das linguagens expressivas isoladamente e de como foram os olhares para cada linguagem expressiva envolvida, separadas por: narrativa, ações físicas e diálogos, vocabulário gestual, composição musical, iluminação, e a composição visual, relacionada à composição dos figurinos e dos adereços cênicos.

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Termo utilizado por QUIGNARD, Pascal (1999): sons que de maneira inconscientes nos levam aos sentimentos de necessidade, como morte, nascimento, saudades de casa, que são na maioria das vezes inconscientes.

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