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CAP III O Campo de experiência:

3.2 O Processo de Releitura

3.2.1. Uma escolha complicada

O gosto e interesse de Stravinsky pelas artes o levou a pesquisar outras linguagens expressivas e a pesquisar maneiras de criar obras híbridas. Ao compor A História do Soldado, busca inspiração, além da temática já citada, na tradição popular russa e, em plena revolução socialista, busca na retomada da teatralidade – que é popular por excelência – os valores do trabalho coletivo em prol da obra.

Na época ainda não havia maneiras de registrar a partitura coreográfica e de ações72. Mesmo Stravinsky tendo inovado em seu trabalho ao colocar algumas indicações sobre algumas ações e sobre o espaço ocupado pelos interlocutores, a informação sobre as ações não era completa. O que restou do registro da obra de Stravinsky e Ramuz é em relação à sonoridade. Toda palavra escrita no libreto possui uma rítmica e um pensamento sonoro. Muitos daqueles textos são colocados juntos da partitura musical para serem executados como mais um instrumento na partitura, o que impõe não só o ritmo, mas a textura sonora através de aliterações, rimas, ou frases que ele indica para serem gritadas, sussurradas, entre outras.

Estudar os tempos e as sonoridades já estabelecidas na partitura de Stravinsky poderia ser muito bom para uma criação cênica independente de uma dissertação. Porém, escolhemos entender como articular uma cena híbrida, e estudar as qualidades de cada uma das linguagens expressivas para entrelaçá- las em uma composição. Para seguir com a investigação sobre a composição de uma cena híbrida, era sabido que, às vezes, seria necessário abrir mão de qualidades de uma das linguagens expressivas para enfatizar de outras. Ficar com a obra musical de Stravinsky, significaria ter que alterá-la, e essa não era uma opção. É impossível ignorar uma das mais conhecidas obras de Igor Stravinsky

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Stravinsky cita o elenco que ele escolheu para fazer o trabalho, mas nada fala quanto ao uso do espaço cênico e das ações desenvolvidas. Apenas elogia o desempenho deles, e o motivo de sua escolha

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devido à complexidade característica de suas composições e devido à suas qualidades inquestionáveis. Sua música é excepcional.

Sendo assim, depois de longas conversas com o compositor musical Fernando S. Sagawa e o músico Leonardo S. Matricardi, ambos convidados a colaborar na parte prática desta pesquisa, chegamos à conclusão de que seria melhor se encararmos o estudo como uma reinterpretação apenas do conto de Ramuz e Stravinsky, extraída da composição musical desse compositor. Sagawa e Matricardi assumiriam o trabalho de compor outra trilha musical “sobre” a fábula de Stravinsky e Ramuz.

Assim, além de respeitar a devida complexidade e importância do trabalho de Stravinsky, teríamos condições de organizar a composição a partir das qualidades de quatro linguagens expressivas: música, dança, narração e teatro. Agora, não a partir da música, mas partir da cena.

Tanta insistência por trabalhar essa obra fazia sentido, por dois motivos fortes e simples: primeiramente, porque a obra me despertou interesse em realizar esta pesquisa, quando, ao participar de sua montagem, trabalhei com o que a própria propunha: a interação das linguagens música, dança, projeção multimídia (que incluímos na versão de 2009, mas para esta preferimos não contemplar para não estender demasiada e desnecessariamente a pesquisa), teatro e narração.

E, depois, por enxergar no texto de Ramuz um reflexo metaforizado de uma situação atual, com uma figura que hoje é colocada novamente em cheque na sociedade, o soldado.

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3.2.2. Objetivos poéticos em comum

O conto russo, no qual o soldado desertor inevitavelmente vira presa do diabo, inspirou os compositores, pois era uma época em que servir o exército e partir para guerras era fato comum para muitos jovens, especialmente na Rússia imperial. Tratava, portanto, de um sentimento comum a muitos países, e tornou a obra um apelo internacional contra as atrocidades bélicas da época. Stravinsky e Ramuz viveram aquele período e sofreram perdas pessoais e materiais. Com todos esses eventos à flor da pele, o encontro de Stravinsky e Ramuz na Suíça, onde ambos estavam exilados (da Rússia e da França, respectivamente), culminou na urgência de respondê-los artisticamente com uma fábula onde a alma de um soldado, independente de seu caráter e conduta fora do front, cai nas mãos do Mal.

No panorama atual do mundo, a guerra ainda é uma presença assustadora e bárbara. Embora noções como nação ou pátria e mesmo ideologia já tenham outros (ou nenhum) sentidos, o poder bélico e sua lucrativa indústria continua ditando as regras sobre nossas vidas. A escalada de uma vida baseada na exploração e no lucro, desencadeada com o aparecimento da Revolução Industrial, as reorganizações das fronteiras iniciadas com as duas Guerras Mundiais, adquiriu proporções aterradoras no mundo globalizado. Os próprios exércitos atendem, antes, a interesses políticos e privados (é impressionante o crescente número de exércitos mercenários) do que as antigas noções de nação e ideologia. A situação é grave e a liberdade das pessoas se reduz cada vez mais em prol de interesses econômicos disfarçados de problemas sociais, por empresários e banqueiros que buscam o lucro a qualquer custo. Essas cenas se encontram mundo afora e exemplos não faltam: das duas grandes guerras mundiais, do constante conflito no Oriente Médio (financiado pelos Estados Unidos) das ditaduras latino-americanas, dos poderes paramilitares na América Latina, das FARC na Colômbia ou, ainda, casos pontuais e próximos como as greves de professores da rede pública no Estado de São Paulo atacada pelos

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militares, a invasão militar nos morros cariocas e no bairro do Pinheirinho, em São José dos Campos – SP em troca de grandes empreendimentos imobiliários, a invasão da acampada da Plaza del Sol em Madrid, as ofensivas contra as marchas pela melhoria na educação no Chile e nas revoltas contra os governos por toda a Europa. Esses eventos todos tiveram como consequência milhões de pessoas em posição de repensar as mudanças que querem para o mundo e, em troca, recebem balas, bombas e agressões físicas de militares que afinal, lutam para defender o quê?

Da mesma maneira que a guerra claramente afetou a vida de Stravinsky, e dos que estavam ao seu lado, a situação do mundo atual – em um novo tipo de guerra que às vezes tenta ser discreta, mas sempre seus verdadeiros motivos e danos vêm à tona – afeta a mim e as pessoas ao meu redor. Eu mesmo já vi um parente próximo quase morrer duas vezes por culpa de médicos que, para ganhar benefícios das indústrias farmacêuticas, receitaram-lhe remédios fortes, dos quais ele jamais precisou; amigos meus apanharam na Plaza Del Sol em Madrid; outro parente próximo afogado em dívidas por acreditar inocentemente na “bondade” dos empréstimos dos banqueiros e amigos injustiçados pela polícia nas marchas pela educação (entre outras) no Estado de São Paulo.

Em suma, ao olhar para A História do Soldado, percebo o quanto ela ainda tem a dizer ao mundo em que estamos vivendo. Acredito na legitimidade do reflexo da obra de Stravinsky e Ramuz no mundo em sua época e na potência que tem esta obra quanto aos questionamentos atuais. Stravinsky nos fala do mundo de seu tempo por meio do olhar de um ser humano que sofre os eventos do período. O dado humano é fundamental na obra para que o espectador se identifique com ela a partir de uma relação de algo em comum: o sentimento humano. Jooss entendia isso, e confessa que

“os temas sociais que sempre atribuíram ao meu trabalho não me interessam em nada. (...) O que me toca é o conceito que o ser humano faz do sofrimento e da morte” (ANSICHTEN ÜBER DIE LIEBE DIE

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MACHT UND DEN TOD73: der Choreograph Kurt Jooss (1901-1979) – 1985).

O desejo desta pesquisa de remontar A História do Soldado busca refletir artisticamente sobre essas questões do mundo. Na trilha dos mestres estudados, busca o diálogo com o mundo e um aprofundamento na busca de uma qualidade de movimento conectada com as motivações interiores do intérprete, aliadas à precisão e clareza do gesto que almeja alcançar a coletividade da qual participa.

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