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CAP II Conversa com os Mestres

2.3 Portas para o Hibridismo

2.3.1 Necessidade histórica

O contágio entre as formas de arte tem sido constante na história da arte, de forma que fica difícil estabelecer fronteiras precisas entre a dança e o teatro. Na história ocidental, de maneira breve, a dança se caracterizou pela arte do movimento do corpo, de seus desenhos no espaço e de suas dinâmicas, passando por momentos de maior liberdade e de forte convencionalismo como no período clássico no qual se cristalizou nas formas e no virtuosismo técnico. O teatro possui tanto suas tradições eruditas quanto populares, de maior ou menor formalidade, passando por uma época atrelado à literatura dramática para, na arte moderna, reconquistar sua própria teatralidade, se compondo a partir do jogo teatral.

No campo da teatralidade e da ação cênica, destaca-se o nome de Stanislavsky, que estabeleceu o método de ações físicas, uma grande contribuição para o entendimento do trabalho do ator. A noção de ação física nos leva ao campo do movimento. Uma ação física, quando não executada mecanicamente, revela estados emocionais e psicológicos ocultos do personagem que a executa. Ou seja, não é a ação que define o personagem, mas como ela é realizada. As ações físicas estão subordinadas ao objetivo do personagem em um momento específico da obra, que por sua vez está subordinado ao superobjetivo da obra como um todo. Das ações físicas “emerge um fio de ações lógicas e consecutivas” (STANISLAVSKY, 1984; p238). Essa “linha do ser físico” (Ibid.; loc. cit.) deve ser repetida pelo ator, buscando os impulsos que o levam de uma ação à outra. Esta linha sequencial, quanto mais repetida, mais elaborada e verdadeira, “definida e firme vai se tornando a linha da vida espiritual” (Ibid.; p239-240) do personagem. As ações físicas e suas relações de encadeamento constituem o

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jogo cênico. O jogo implica na convenção teatral na qual ambos, plateia e atores, presenciam um lugar fictício e em uma determinada situação em cena. Cada situação é trabalhada pelos atores de forma a encontrar e entender o jogo cênico. Um pequeno conflito interno entre dois personagens, ou uma convenção dada por um ator para a plateia, constituem dados do jogo cênico, desde que sejam “representações com status de verdade simbólica” (CAPEL, 2011; p01), compartilhadas entre elenco e espectadores.

O bailarino, (tomando como base a descrição de Humphrey), parte seu trabalho da construção de frases de movimentos analogamente à escrita de uma frase de texto. Utiliza-se de movimentos, e desse vocabulário criado com formas reconhecíveis e também subordinados ao objetivo da obra, o bailarino constrói suas frases, com começo e fim. SIQUEIRA (2000), ao citar BLOM & CHAPLIN afirma que

“(...) Uma frase coreográfica tem a intenção de transmitir sentimentos, imagens, ideias; mostrar impressões visuais, uma história, símbolo, ou elementos desenhados. Indiferentemente da intenção que ela possa ter, uma frase coreográfica tem uma personalidade, uma “face” identificável do movimento (...) procura tocar o espectador, comunicar um sentido, uma fantasia, uma ideia, um estilo, textura ou qualidade. Tem uma atitude, uma aura de singularidade, uma personalidade.” (BLOM, Lynne &

CHAPLIN, L.Tarin. The intimate art of choreograph. Pittsburgh, Pittsburgh Press, 1982, apud SIQUEIRA, Adilson, p25-26, 2000),

Kurt Jooss , quando desenvolveu o que chamou de Tanztheater, passou a incluir elementos do princípio do teatro, os quais não eram contemplados pela dança na época. A dramaturgia narrativa já fazia parte da dança clássica. Para os modernos, (Isadora Duncan, Doris Humphrey, Martha Graham etc) os reflexos dos estados emocionais os ajudaram a encontrar um caminho novo na dança. De outro lado, o teatro moderno, recuperando a teatralidade, começou a se apoiar cada vez mais no movimento do corpo, em suas qualidades e em sua relação com

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o espaço, ou seja, em elementos que a dança já dominava para estabelecer novas possibilidades de linguagens cênicas.

A partir dessa ideia, Jooss buscou, além do objetivo cênico, da emoção e dos estados internos do movimento do bailarino, o jogo cênico, que posteriormente Pina Bausch desenvolverá com maestria. Bausch fazia com que seus bailarinos buscassem ao extremo a emoção e as relações como impulsionador do movimento, e os representasse com uma realidade simbólica ficcional emotiva, a qual compartilha o espectador. O jogo cênico, tanto no teatro quanto aplicado à dança, ao criar a relação de status de verdade simbólica dentro da ficção da obra, ajuda o intérprete a seguir os impulsos das ações e dos movimentos pela relação de sinceridade e coerência na sequência ficcional.

Meyerhold ainda vai além da ideia de Stanislavsky, quanto à “linha do ser físico”. Ele traz a ideia de “representação destruída65”, em que subitamente [o ator]

desliga-se da interpretação do personagem para fazer um a parte com a plateia, lembrando-a que ambos são cúmplices do mesmo jogo. Ou seja, ele abre a ideia da verdade simbólica e da “linha do ser físico”66

para incluir nela a possibilidade de invadir o elemento de linearidade do personagem, com camadas novas, assim, o atuante conquista a capacidade de transitar nos graus interpretativos que se apresentam para o espectador: é o narrador, é o ator, é o personagem etc. Esta ideia, (também encontrada no trabalho de outros pensadores da arte, mas nesta dissertação apresentada por Meyerhold) vista sob a ótica da cena contemporânea, nos liberta para misturar as linguagens expressivas de acordo com o objetivo que convém à cena.

65 Faço uso do mesmo termo traduzido por CONRADO em MEYERHOLD, 1969. 66 Linha de ações físicas sequenciais, denominadas assim por Stanislvasky (1984).

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