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2. REGULAÇÃO NO SETOR DE ENERGIA ELÉTRICA

2.3. A regulação no contexto da Constituição Federal de 1988

Sem a pretensão de esgotar o tema, julga-se importante tratar, ainda que de maneira sucinta, questão ligada aos objetivos da regulação e que auxiliará, mais adiante, a análise da atuação da ANEEL, qual seja, como é construído, na Constituição de 1988, o contexto e o quadro constitucional da regulação.

Para tanto, empresta-se ao presente estudo reflexão importante feita por Bercovici a respeito da visão dirigente da constituição, que, para ele, nada mais é do que aquela que “define fins e objetivos para o Estado e a sociedade”186. A constituição, baseando-se em

Konrad Hesse187, embora fixe os princípios e diretrizes a partir dos quais se formam as tarefas

183 SALOMÃO FILHO, Calixto. Ob. cit. p. 93-96. 184 SALOMÃO FILHO, Calixto. Ob. cit. p. 96-104. 185 SALOMÃO FILHO, Calixto. Ob. cit. p. 97-101.

186 BERCOVICI, Gilberto. A problemática da constituição dirigente: algumas considerações sobre o caso

brasileiro. Revista de Informação Legislativa, ano 36, nº 142. Brasília: Senado Federal, Subsecretaria de

Edições Técnicas, abril-junho/1999. p. 35-52. Disponível em:

<http://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/474/r142-06.PDF?sequence=4>. Acesso em 17.05.2018. p. 35.

do Estado e a unidade política, não se restringe a ordenar a vida estatal, mas também regula a vida não estatal188. Nesse sentido:

A Constituição é a ordem jurídica fundamental de uma comunidade num dado período histórico, pois estabelece os pressupostos de criação, vigência e execução do resto do ordenamento jurídico, além de conformar e determinar amplamente o seu conteúdo.189

Para o autor, ao passo que a Constituição de 1988 define fins e programas de ação futura para a melhoria das condições sociais e econômicas da população, por meio das normas constitucionais programáticas190, ela é, portanto, uma constituição dirigente e que construiu

um Estado Social.191

Nota-se, nessa reflexão, que a questão da constituição dirigente está intimamente ligada à dicotomia entre o Estado Liberal/Estado de Direito – no qual há uma opção pela prevalência das liberdades e garantias individuais, bem como pela estruturação do processo legislativo – e o Estado Social – no qual a tarefa primordial consiste na execução de políticas públicas. Tanto é assim que, para parte da doutrina constitucionalista, seria inconcebível a existência de um Estado Social de Direito.

Contudo, como bem apontado por Bercovici – embasado por outros autores, como Barroso192 e Bonavides193, por exemplo –, o Estado de Direito e o Estado Social não são incompatíveis. O fato de existirem normas programáticas direcionadas às políticas públicas pretendidas pelo Estado no texto da constituição não anula a proteção às liberdades e garantias individuais, nem a estruturação do Estado e dos mecanismos legislativos. Na sua visão:

No Estado de Direito, as regras jurídicas estabelecem padrões de conduta ou comportamento e garantem também uma distanciação e diferenciação do indivíduo, por meio do Direito, perante os órgãos públicos, assegurando-lhes um estatuto subjetivo essencialmente caracterizado pelos direitos e garantias individuais. Isso

Constitucionales, 1992.

188 BERCOVICI, Gilberto. Ob. cit. p. 36. 189 BERCOVICI, Gilberto. Ob. cit. p. 35.

190 De acordo com José Afonso da Silva, normas constitucionais programáticas são “normas constitucionais

através das quais o constituinte, em vez de regular, direta e imediatamente, determinados interesses, limitou- se a traçar-lhes os princípios para serem cumpridos pelos seus órgãos (legislativos, executivos, jurisdicionais e administrativos), como programas das respectivas atividades, visando à realização dos fins sociais do Estado”. SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das Normas Constitucionais. 3ª ed. São Paulo: Malheiros, 1998. p. 138.

191 BERCOVICI, Gilberto. Ob. cit. p. 36.

192 Para mais, ver: BARROSO, Luís Roberto. O Direito Constitucional e a Efetividade de suas Normas: Limites

e Possibilidades da Constituição Brasileira. 3ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 1996.

não significa hoje oposição entre o Direito e o Estado. A função do Direito num Estado de Direito moderno não é apenas negativa ou defensiva, mas positiva: deve assegurar, positivamente, o desenvolvimento da personalidade, intervindo na vida social, econômica e cultura. O Estado de Direito atual não se concebe mais como anti-estatal.

[...] a liberdade é inconcebível sem a solidariedade, e a igualdade e o progresso sócio-econômicos devem fundar-se no respeito à legalidade democrática.

Governar [...] passou a não ser mais a gerência de fatos conjunturais, mas também, e sobretudo, o planejamento do futuro, com o estabelecimento de políticas a médio e longo prazo.194

Dito isso, é importante notar que a ordem econômica deve se atentar e respeitar os direitos fundamentais (individuais, coletivos e sociais) garantidos nos artigos 5º e seguintes da Constituição.

A partir dessa base, parte-se, então, para o artigo 170, que inaugura as disposições específicas a respeito da ordem econômica e financeira. Nesse artigo, o caput já explicita – em reiteração ao que já estava disposto anteriormente – que a ordem econômica é fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, bem como deve assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social. E, para tanto, elenca os seguintes princípios, dentre outros, que devem ser observados: a propriedade privada (inciso II), desde que respeitada a função social da propriedade (inciso III); a livre concorrência (inciso IV), observada a defesa do consumidor (inciso V); a defesa do meio ambiente (inciso VI); e a redução das desigualdades regionais e sociais (inciso VII).

Quanto à proteção ao meio ambiente, de modo mais específico, merece destaque o artigo 225, que, ao dispor sobre o direito de todos ao meio ambiente ecologicamente equilibrado – enquanto bem de uso comum de todos e essencial à sadia qualidade de vida –, preceitua que a responsabilidade de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações é tanto do Poder Público quanto da coletividade, o que, necessariamente, inclui os agentes econômicos.

Destarte, é possível concluir, pelo exposto, que a ordem econômica – e a regulação econômica, mais especificamente, no contexto da constituição dirigente que atualmente vigora no país, deve se orientar pelos valores e objetivos existentes em todo o texto, que, em última instância, coadunam-se com os próprios pilares do desenvolvimento responsável e sustentável, seja o aspecto da responsabilidade social, da sustentabilidade econômica ou da sustentabilidade ambiental e proteção do meio ambiente.

194 BERCOVICI, Gilberto. Ob. cit. p. 37.