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A implantação dos programas de ação afirmativa nas universidades públicas, até onde se conhece tem tramitado nas instâncias deliberativas da universidade, conselhos e colegiados. Tem passado por etapas que compreendem o debate com a comunidade interna e externa. Todas essas fases são importantes no processo de consolidação da política, mas a última possivelmente é a mais desafiadora, a recepção desses estudantes no ambiente acadêmico. Essa última é uma etapa importante para o sucesso e êxito dos (as) estudantes. É nesse espaço que se dão as relações com o (a) outro (a). É na sala de aula que estudantes e professores (as) permanecerão por mais tempo.

Dentre as narrativas98, grande parte dos estudantes afirmou que seus

professores pouco tematizaram o assunto. Ao falar sobre o assunto, havia os (as) que apoiavam e conduziam uma conversa tranquila, havia também aqueles (as) que teciam duras críticas e posicionavam-se contrários (as) a política. Huanda relatou a experiência que teve no seu curso e disse que o motivo pela qual os (as) cotistas não se manifestam é pelo motivo de alguns professores que são contrários as cotas falam abertamente, na sala de aula e na opinião Huanda essa atitude ofende as pessoas. Perguntei a Huanda se ela já presenciou algum professor fazendo isso,

98 Os trechos de narrativas aqui analisados são somente dos (as) estudantes. Foi entrevistado um grupo de professores de ambos os campi, trabalharemos suas narrativas outra parte do texto.

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Sim, e um dos motivos de eu ter discutido com esses professores que me reprovaram, foi porque eles eram contra as cotas. Eu fui para a prova final, estudei muito e refiz a prova. Eles sumiram com a minha prova e me reprovaram e naquele momento eu não tinha conhecimento do colegiado e eles falavam abertamente: “quem entrou pela janela não tem condições de permanecer na universidade, não tem noção, não sabe nem escrever. É uma coisa assim, sabe... Tem que ter amor e vontade de vencer que se não volta.” (Huanda, 40 anos, formada, Cáceres)

Candis passou pela mesma experiência,

Vários professores eram contrários ao programa. Eu nunca escondi, afirmo e defendo até hoje. Falo com orgulho, “fui um dos que entrei por cotas e estou aqui.” (Candis, 28 anos, formado, Cáceres)

Nesse sentido, Silvério (2003) alerta que se posicionar contrariamente ou debater sobre a aceitação ou não-aceitação das políticas afirmativas não contribuiu em nada. Pelo contrário, empobrece o debate. Sublinha que é momento de se tentar responder à questão:

Como podemos incluir minorias historicamente discriminadas, uma vez que as políticas universalistas não têm tido o sucesso almejado, e ao mesmo tempo debater quais bases são possíveis rever aspectos fundamentais do pacto social. (SILVÉRIO, 2003, p. 1).

Quando Kassandra ingressou no curso estava desempregada. Isso contribuiu muito para que ela aproveitasse as oportunidades de trabalho temporário na própria universidade. Contou o seu primeiro trabalho foi em uma Pró-reitoria e até então os objetivos de Kassandra era ter um diploma do ensino superior e trabalhar. Ao longo de sua experiência nesse trabalho contou que foi seduzida em dar continuidade nos estudos e “quem sabe ser uma professora universitária”. Após essa experiência conseguiu uma bolsa PIBIC e disse que foi muito bom porque se sentiu motivada e com possibilidades de participar dos congressos. Contou que os (as) professores (as) incentivavam os (as) colegas a participarem de eventos e certa vez, passou por uma experiência que jamais imaginou que passaria. Os (as) de sala a repreendeu porque era bolsista e podia participar dos eventos. Disseram:

Colega de Kassandra: Pensa que eu sou igual Kassandra. Pensa que eu sou

canguru, que só vive de bolsa? Kassandra tem tempo para ir nos eventos e nós

não. Pesquisadora: Disseram isso? Muito triste, não é? Kassandra: Triste mesmo. Hoje em dia eu encontro esses mesmos colegas e tenho o prazer de falar: “olhem aqui! Eu sou o “Bilbo Bolseiro”. Pesquisadora: Não entendi, pode repetir? Sabe o filme “Senhor dos anéis”, tem um personagem que se chama Bilbo Bolseiro, pois eu falo para eles que eu sou esse personagem, risos... (Kassandra, 34 anos, formada, Cáceres)

191 Kassandra participou de muitos eventos e se aproximou dos (as) professores para publicar trabalhos e artigos em revistas em coautoria. Contou que sempre que sabia de um evento comunica ou sua orientadora ou um (a) professor (a) que discutia o seu tema de pesquisa, “eu o convidava para o evento e para escrevermos um artigo juntos”. Segundo Kassandra os (as) professores (as) aprovavam essa atitude e,

Com isso, todos que participavam comigo, sempre pagavam a minha inscrição e também se fosse apresentar em outra cidade eles pagavam a minha passagem. Como sabiam que eu era bolsista, tinha uma relação muito boa, porque eles viram que não tem nada a ver ser cotista ou não, se a pessoa tem interesse.... Então hoje a relação com eles é muito boa, depois da experiência que tive com eles na graduação. (Kassandra, 34 anos, formada, Cáceres)

Kassandra sentiu mais abertura com os (as) professores (as) do que com os próprios (as) colegas de turma.

Acaí relatou a relação com os (as) colegas e professores. Nota-se uma relação “harmoniosa” parecida com a que tinha no ensino fundamental e com seus amigos. Ao mesmo tempo, pode ser analisada, mais uma vez, como uma tentativa de apagamento da cor para ser aceito pelos (as) colegas e professores (as).

Então na sala de aula eu converso com todo mundo, quando abro a porta todos riem de mim, dizem que sou muito divertido, sorrio sempre. Até com os professores, uma sintonia bem legal, por mais que alguns não passem bem a matéria. Mas acho que tudo tem o tempo certo, brincadeira, levar sério. Hora de brincar e estudar, sou tranquilo com todo mundo na sala de aula. (Acaí, 33 anos, ativo, Cáceres)

Dalia contou que “não se sabe quem é ou não cotista, muitos têm vergonha de falar”. Afirmação é confirmada por Ebum. Para ele“todo mundo é tratado de igual para igual, até mesmo porque ninguém pergunta se é ou não cotista... Risos...” (Ebum, 33 anos, ativo). Ao responder que ninguém pergunta a identidade do (a) aluno (a), eles não se declaram por vergonha ou por receio de ser discriminado (a). Senti que a resposta de Ebum foi irônica, quando que os (as) alunos (as) tratados com igualdade.

Babete e Abo afirmaram não ter sofrido preconceito na universidade. Entretanto, ao final da entrevista disseram que ainda percebem muita discriminação na universidade.

Não me senti discriminada em nenhum momento. A turma foi muito acolhedora e prestigiada por ser a primeira turma, e quando fui fazer a inscrição, nem sabia como era o programa. Fiz normal, não era o curso que eu queria e nem aqui que eu queria fazer. Não vi nenhum problema. Quanto ao programa, eu acho que precisa ser mais explicado para população, o objetivo central dele, ainda tem muita “discriminação” e falas contraditórias sobre o programa. (Babete, 26 anos, formada, Cáceres)

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Não, em relação a minha pessoa, a nossa cor, etnia eu não percebi nada. A princípio ninguém perguntou a respeito de nota. Esse problema nunca tivemos no nosso grupo. (Abo, 45 anos, formado, Cáceres)

Éfia afirmou ter tido uma boa experiência com seus professores,

Tive uma experiência muito positiva no contato com os professores. Não é porque eu sou cotista que eu sou inferior. Passei como uma das melhores notas, passei em quarto, passaria de qualquer forma, por pontuação e tudo e se eu sou, porque não me declarar? (Éfia, 27 anos, ativa, Cáceres)

Em Sinop, de acordo com os relatos de Tahira, os professores “nunca emitiram opinião nem favorável e nem contrária”. Os colegas ficaram sabendo que ele era cotista, porque certo dia, em sala de aula, conversavam sobre a nota que havia tirado no vestibular e ele comentou a sua nota.

Em Sinop, Sabir foi a único entre os entrevistados que passou por uma experiência bem diferente da apresentada até aqui pelos seus colegas. Declarou-se cotista e, de cindo alunos, disse que apenas mais um colega se declarou. Comentou ainda a relação com os professores,

E, sem um cuidado de modéstia, eu tinha uma influência bem forte na questão política, então nenhum professor tinha coragem de me enfrentar. Eu não sei se por isso ou não e também eu tinha uma relação próxima com a maior parte dos meus professores, inclusive de frequentar casa. Para você ter uma ideia, minha orientadora me convidou para ser padrinho de casamento dela. Então eu não tive mesmo esse problema, mas não quer dizer que não tenha. Certa vez um professor disse que os cotistas não acompanham eu entendi que não era contra o programa, mas que devia ter uma assistência que acompanhasse melhor o aluno, mas eu comungo da ideia do acompanhamento para todos, não só as cotas. (Sabir, 37 anos, formado, Sinop)

Sade disse que “a única vez que tive uma discussão em sala de aula foi porque surgiu o comentário mesmo”. Completou,

Na época não foi nada agitado, foi tranquilo, não sei se é porque eu me dou bem com todo mundo e também era pouco comentado que eu não via que eram um cotista. Hoje pode estar sendo mais agravante porque todos querem entrar na universidade e aquele que tem o privilégio de entrar pela cota pode não agradar alguns. Mas se ele tem esse direito, porque não usufruir. Não que está entrando por isso, a capacidade do ser humano em se dedicar é a mesma. (Sade, 31 anos, formado, Sinop)

As narrativas apresentadas mostraram que a relação com as colegas e professores (as) se mostrou ambivalente, ora é positivada, ora é negativada. Nesta relação muitos (as) desses (as) estudantes não se autodeclaram cotista durante a realização do curso. Buscam cumprir o objetivo maior, finalizar o curso e traçar novos projetos para a carreira profissional.

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