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A Responsabilidade Social na Saúde em Portugal

No documento Mónica de Melo Freitas (páginas 65-73)

Parte I. Enquadramento e Problemática

Capítulo 3. A RSE em Portugal

3.5. A Responsabilidade Social na Saúde em Portugal

No caso específico da saúde, verifica-se a inexistência de normativos específicos de RSE para a área da saúde. A Comissão Setorial para a Saúde CS/09 do Instituto Português da Qualidade produziu até 2012 [13] normas, nenhuma das quais relacionada com a gestão da responsabilidade social ou com a gestão de stakeholders. Estas normas incidiram maioritamente sobre o setor hospitalar, sendo que cinco correspondiam a meras traduções das normas ISO definidas para o setor (ex. NP EN ISO 8185:2000-pt, NP EN ISO 105-C06:2010-pt, NP EN ISO 11607-2:2009-pt, NP EN ISO). Em suma, a Comissão Setorial para a Saúde CS/09 do IPQ continuou em 2012 a associar a qualidade dos serviços prestados essencialmente ao reforço dos parâmetros de segurança, adstritos ao manuseamento de equipamentos e à implementação de procedimentos técnicos (p. ex., os procedimentos in vitro).

A nosso ver, as organizações ligadas à normatização ainda não avançaram para a criação de normas no âmbito da RSE na área da saúde porque, em primeiro lugar, consideram que as normas existentes são flexíveis o suficiente para se ajustarem a qualquer setor; em segundo lugar, porque consideram que as normas de qualidade definidas para o setor garantem por si só os elevados níveis de eficiência e de justiça esperados; e em terceiro lugar, porque ainda pairam sobre este setor sérios constrangimentos, em termos de adaptação de práticas gestionárias típicas do setor lucrativo.

As críticas públicas tiveram um papel crucial no desenvolvimento da RSE no setor da saúde em Portugal. Com efeito, quando a RSE arrancou em Portugal, o setor da saúde constituía alvo de fortes pressões sociais, fruto da retoma do modelo de gestão público-privado por parte do Estado Português, e dos resquícios de uma primeira

experiência mal conduzida, no caso específico do Hospital Amadora-Sintra.6 As críticas endereçadas através dos meios de comunicação social aos grupos hospitalares envolvidos nas parcerias público-privadas com o Estado, aumentavam sempre que eram assinados contratos de gestão por privados ou era assumida por estes a gestão plena dos hospitais públicos.

O contexto de forte contestação social conduziu os hospitais público-privados a adotarem novos princípios e práticas, inclusive as relacionadas com a RSE. Na base deste comportamento, encontrava-se a sua necessidade de legitimar o novo modelo de gestão no sistema público de saúde em Portugal. As parcerias público-privadas intensificaram a pressão social sobre os hospitais envolvidos, para que estes buscassem conciliar no interior das suas decisões tomadas, os desígnios de produção de ganhos de eficiência económica, com os desígnios de produção de bem estar social, sustentabilidade ambiental e saúde preventiva, com vista a legitimarem as motivações e as lógicas de ação invocadas na prossecução da atividade produtiva.

Do ponto de vista político-normativo, as primeiras linhas de orientação para a RSE no setor da saúde em Portugal surgiram no Plano Nacional de Saúde (PNS) para 2012-2016 (Ministério da Saúde 2012), apesar de as primeiras orientações internacionais terem surgido em 2004 e sido reforçadas em 2006 (OMS 2004, 1; 2006, 12). No entanto, como veremos no capítulo 7, tendo em conta o contexto social e político e as linhas de orientação emanadas pelos organismos internacionais, os Hospitais Privados de Portugal (HPP) começaram a implementar programas na área da RSE logo em 2008. O contexto social caracterizava-se então por intensas pressões sociais sobre os grupos hospitalares público-privados, devido sobretudo às controvérsias que este modelo suscitou, agudizadas quando o Governo Português cancelou o primeiro contrato de gestão público-privada assinado com a José de Mello Saúde JMS em 1995.

Os Planos Nacionais de Saúde (Ministério da Saúde 2014; 2010; 2012) constituem um dos três documentos mais importantes para o funcionamento do Sistema

6 O Hospital Amadora-Sintra foi inaugurado em 1995 sob forma de parceria público-privada envolvendo

o Estado Português e a Sociedade Gestora controlada pelo Grupo José de Mello Saúde. Os mal entendidos suscitados em torno deste modelo entre as partes contratantes ditaram o fim da parceria 13 anos após o arranque, ou seja, 17 anos antes do prazo previsto para o seu término. O Estado Português alegava na altura incumprimentos contratuais por parte da sociedade gestora, os quais não foram dados como

Nacional de Saúde7. Enquanto a Lei de Bases da Saúde (Assembleia da República 1990) e o Estatuto do Serviço Nacional de Saúde (Governo de Portugal 1993) definem o enquadramento legal do sistema de saúde e as competências de cada organismo, os planos definem periodicamente um conjunto de prioridades e orientações pelas quais os profissionais de saúde e as organizações devem pautar as decisões tomadas nas áreas da saúde pública, dos cuidados de saúde primários, cuidados continuados e integrados, no desempenho das suas funções e estabelecem as metas de saúde coletiva a alcançar por parte dos profissionais e das organizações.

O Plano Nacional de Saúde em vigor (PNS 2012-2016) representa um documento político de base operacional, que procura orientar as decisões dos profissionais e das organizações de saúde, no sentido de promover os valores e as práticas do desenvolvimento sustentável a partir do melhoramento dos indicadores de saúde individual e coletiva:

Maximizar os ganhos em saúde, através do alinhamento em torno de objetivos comuns, a integração de esforços sustentados de todos os setores da sociedade, e da utilização de estratégias assentes na cidadania, na equidade e acesso, na qualidade e nas políticas saudáveis (Ministério da Saúde 2012, 5).

De acordo com o PNS 2012-2016, o setor da saúde deveria ser capaz de promover iniciativas que procure ter em conta as questões do género, da idade, das condições sociais e económicas e do estado de vulnerabilidade das pessoas, contribuindo desta forma para a redução das desigualdades sociais e para a construção de capital social (Ministério da Saúde 2012, 5). A inclusão das preocupações inerentes à equidade de género e socioeconómica nas estratégias das organizações da saúde incorpora um dos objetivos de desenvolvimento sustentável também promovidos pela Organização das Nações Unidas nos Objetivos de Desenvolvimento do Milénio (ONU 2000).

A par disto, o PNS 2012-2016 passou a prever a implementação de modelos e práticas típicas da gestão privada, entre os quais, os sistemas de avaliação de impactes e de monitoração, o marketing social ou de causas, as auditorias, a gestão de stakeholders

7 O Serviço Nacional de Saúde, adiante designado por SNS, é um conjunto ordenado e hierarquizado de

instituições e de serviços oficiais prestadores de cuidados de saúde, funcionando sob a superintendência ou a tutela do Ministro da Saúde (Governo de Portugal, 1993). Antes da reforma da saúde iniciada em 2010, a elaboração, implementação e avaliação dos PNS esteve a cargo do Alto Comissariado da Saúde. Com a extinção deste organismo, a coordenação do PNS passou a estar a cargo da Direcção Geral da Saúde (Governo de Portugal, 2012).

e a liderança (Ministério da Saúde 2012, 4, 8, 23). A importação dos valores e das práticas de governação do setor privado pelos serviços públicos de saúde passou a ser defendida sobretudo em períodos marcados por forte contenção financeira, fruto dos sucessivos cortes estatais, das alterações demográficas, da pressão social exercida pelos cidadãos sobretudo através dos meios de comunicação social, do aumento da mobilidade de pacientes e dos profissionais de saúde (Comissão Europeia 2007, Ministério da Saúde 2012, 18). A par destes fatores, concorreram as alterações introduzidas nos moldes de financiamento e de funcionamento dos hospitais, fruto da empresarialização dos hospitais públicos (Hospitais EPE) e da consolidação de parcerias público-privadas (Silvestre 2009). Além disto, deu-se a substituição gradual da articulação vertical pela articulação horizontal no interior deste setor (Scott et al., 2000), em que o utente passou a ocupar, normativamente, uma posição de ator-chave no processo de transformação do setor. O utente do século XXI tornou-se decisor, gestor e coprodutor de saúde, avaliador, agente de mudança, contribuinte e cidadão ativo, cuja voz deve influenciar os decisores em saúde (Ministério da Saúde 2012, 4).

A análise bibliográfica que realizámos mostrou-nos que as mudanças conduzidas no setor da saúde se deveram essencialmente à inclusão da lógica de mercado nos moldes de financiamento e de funcionamento das organizações da saúde. Se por um lado, autores como Richard Scott et al. (2000, 6) destacaram a existência de incompatibilidades entre a lógica de mercado e a lógica assistencial do setor da saúde – nomeadamente, devidas às dificuldades de medição dos resultados produzidos neste setor, sobretudo em termos económicos (Scott 1987) –, por outro lado, autores como Correia de Campos (1991, 22), defenderam a inclusão desta lógica no setor da saúde como uma mais valia para a contenção de desperdícios gerados no setor, e consequentemente, para o ganho de eficácia alcançado graças à gestão mais eficiente dos recursos humanos e à transparência dos processos de gestão organizacional. Em concordância com este último, o PNS 2012-2016, afirma que a aposta na alteração da lógica de funcionamento do setor para uma lógica mais mercantil / empresarial “retorna ganhos em saúde e em sustentabilidade, ao reforçar uma cadeia de potenciação dos efeitos positivos, ou a atenuação dos efeitos negativos, de fatores de risco e determinantes”. Além disto, compreende uma das responsabilidades deste setor, reduzir o desperdício, os cuidados de saúde e as intervenções menos eficazes, e com menor

relação custo-benefício, de forma a mobilizar esses recursos para cuidados com maior retorno (Ministério da Saúde 2012, 3).

Concomitantemente, foram integrados discursivamente na política de saúde os valores e os instrumentos gestionários da RSE, especialmente, quando se defende o desenvolvimento de programas de saúde e a criação de redes de stakeholders multisetoriais (Ministério da Saúde 2012, 22). Ainda de acordo com o PNS (2012-2016) através da responsabilidade social “A instituição participa mais do contrato social, e obtém maior reconhecimento social, ao incluir objetivos de apoio social e económico nas suas atividades, monitorizar e avaliar do impacto, divulgando resultados e partilhando boas práticas” (8). O conceito de responsabilidade social na saúde subsumido nos documentos políticos em Portugal é abrangente, responsabilizando não só o setor da saúde, mas todos os setores produtivos da sociedade em geral, incluindo o setor público e o terceiro setor. Contudo, predomina o vazio no quadro normativo e legal no que concerne a esta prática. Na última revisão do Estatuto do Sistema Nacional de Saúde e das Lei de Bases da Saúde, não encontramos uma única referência ao termo responsabilidade social. Embora o PNS 2012-2016 defenda a introdução da responsabilidade social no setor da saúde, o certo é que pouquíssimas organizações deste setor vêm aderindo aos sistemas de gestão da responsabilidade social existentes, tal como aos sistemas de auditoria e aos rankings de boas práticas na área da gestão dos recursos humanos e da promoção da igualdade de género. Portanto, os programas desenvolvidos encontram-se fortemente dependentes da proatividade dos atores e das organizações responsáveis.

Como notámos acima, a responsabilidade social foi introduzida nos hospitais privados alvo de parcerias público-privadas com o Estado Português, antes mesmo que as primeiras orientações fossem clarificadas no PNS 2012-2016. A Santa Casa da Misericórdia de Lisboa chegou inclusive invocar no Relatório de Sustentabilidade de 2013, que já a implementava há 500 anos (SCML 2014).

Contudo, as primeiras iniciativas divulgadas sob o rótulo específico da RSE no setor da saúde, foram implementadas em 2008 pelos Hospitais Privados de Portugal HPP/ Lusíadas Saúde. Tanto a Santa Casa da Misericórdia como a José de Mello Saúde (dois dos mais antigos operadores privados na área da saúde em Portugal) não

dispunham de informações relativas a programas de responsabilidade social anteriores a 20088.

A tentativa verificada do Estado Português em assumir um papel de destaque na orientação da RSE foi constatada, quer na centralização da função de normatização no Instituto Português da Qualidade (IPQ), como no incentivo direto atribuído à criação do Conselho Nacional para a Promoção do Voluntariado CNPV, do Prémio de Excelência através do IPQ e do “Prémio Igualdade é Qualidade” pela Comissão de Igualdade de Género. Por detrás da criação do Conselho, identificámos o intuito de apoiar as decisões tomadas pelos órgãos ministeriais em matéria de responsabilidade social.

A análise que efetuamos sobre o CNPV mostrou que este organismo necessita ultrapassar algumas barreiras para passar a ser encarado enquanto uma mais- valia na área da seleção, formação, acompanhamento e avaliação dos voluntários mobilizados no setor da saúde.

Ao nosso ver, isto poderia ser facilmente alcançado se procurassem desenvolver programas de formação em voluntariado na área da saúde/ hospitalar que tivessem em conta os perfis dos voluntários mobilizados, como ainda, integrando membros representativos das administrações hospitalares privadas da saúde, da Ordem dos Médicos e da Ordem dos Enfermeiros no órgão consultivo do CNPV.

Dentre outros aspectos, destacamos o fato do CNPV não poder decuirar-se do fato de que o principal grupo de voluntários dos programas de responsabilidade social dos hospitais ser constituído maioritamente por médicos e enfermeiros em regime de voluntariado profissional.7 A par disto, urge a necessidade de compreender como os hospitais lidam com o voluntariado profissional internamente, na tentativa de, em primeiro lugar, perceber em que medida os modelos aplicados apresentam pontos de convergência com o modelo de voluntariado do tipo generalista, e em segundo lugar, que ferramenta poderia ser utilizada na avaliação do modelo de formação em voluntariado desenvolvido pela Comissão Nacional de Voluntariado CNPV, pelo menos no domínio da saúde.

Por fim, mas não menos importante, urge a necessidade de se tentar perceber de que forma vêm sendo conjugadas as expectativas individuais emanadas pelos diferentes

8 Foram consultados os websites das organizacionais www.josedemellosaude.pt e www.scml.pt, como

grupos de voluntários mobilizados nos programas de responsabilidade social dos hospitais, de forma a elevar o número de adesões.

Quanto ao Prémio de Excelência criado pelo IPQ, importa referir que um dos objetivos que esteve por detrás da sua criação, foi o de levar o Governo e as suas respetivas organizações a afirmarem-se enquanto promotoras dos valores e das práticas da RSE em Portugal. Contudo, a participação das organizações deste setor em geral e da saúde em particular, demarca-se por ser escassa ou incipiente. Até o momento, nenhuma organização da saúde foi galardoada com o prémio promovido pelo IPQ.

Além do Prémio de Excelência, o Governo de Portugal apoiou ainda a criação do Prémio “Igualdade é Qualidade” no ano 2000 através da Comissão para a Igualdade do Género. Este prémio foi criado com o objectivo de reconhecer publicamente as organizações que, para além do cumprimento da lei relativa à igualdade de género e à não discriminação, desenvolvem ações de promoção da igualdade entre homens e mulheres no trabalho, no emprego e na formação profissional, aplicando princípios e medidas eficazes, positivas, preventivas em áreas como igualdade de género e prevenção da violência doméstica.

À semelhança do prémio anterior, não se verificou a premiação de organizações de estatuto público, pelo menos até 2012, o que nos leva a deduzir que este setor continua alheio às iniciativas que visam promover a concorrência em torno das boas práticas incluindo aqueleas que se referem ao desenvolvimento sustentável e à responsabilidade social.

No documento Mónica de Melo Freitas (páginas 65-73)