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A alternância entre claro e escuro no ambiente é provavelmente um dos eventos mais importantes na vida diária de um organismo. A diferença de intensidade nos níveis de iluminação entre noite e dia é de tal magnitude (0,1 a 100.000 lux) que tanto a retina como outras estruturas fotorreceptoras, capazes de detectar tais mudanças, desenvolveram um sistema de temporização endógeno, capaz de permitir antecipar tais alterações e desenvolver mecanismos de adaptação às mesmas (Tosini & Fukuhara, 2002).

Na retina, muitos dos processos em nível fisiológico, celular e molecular exibem um ritmo circadiano. Como exemplos, podemos citar sensibilidade visual, renovação dos discos dos segmentos externos dos bastonetes e fagocitose pelo epitélio pigmentar da retina, expressão de genes imediatos e genes dos pigmentos visuais em fotorreceptores, níveis de segundos-mensageiros e atividades de enzimas nas vias de transdução do sinal, expressão de arilalquilamina N-acetiltransferase (NAT), enzima de síntese do neurohormônio melatonina, e a própria liberação desta substância das células fotorreceptoras, além da liberação do neuromodulador dopamina dos neurônios retinianos internos (Cahill & Besharse, 1995; Iuvone et al., 2005).

Em mamíferos, o oscilador circadiano principal situa-se no par de núcleos supraquiasmáticos do hipotálamo, mas evidências apontam a existência de um oscilador na retina, responsável pela geração dos seus próprios ritmos. A síntese de melatonina e o seu padrão de ritmo circadiano têm sido usados como parâmetros na investigação desse oscilador. Assim, a identificação de um oscilador na retina começa com a demonstração, em Xenopus, de que a atividade da enzima de síntese da melatonina, a NAT, expressa um ritmo circadiano (Besharse & Iuvone, 1983). Trabalho subseqüente mostrou que a NAT era localizada em células fotorreceptoras (Cahill & Besharse, 1992) e que uma camada isolada de fotorreceptores era capaz de manter um ritmo circadiano de produção de melatonina (Cahill &

42 Besharse, 1993, 1995), indicando que esse ritmo não é dependente do oscilador principal. Subsequentemente, a presença de um relógio circadiano na retina foi também demonstrada em várias outras espécies de vertebrados (ver Tosini & Fukuhara, 2002), incluindo mamíferos (Tosini & Menaker, 1996, 1998; Sakamoto et al., 2000).

Em mamíferos, a primeira evidência de um oscilador circadiano na retina foi fornecida por um estudo em hamster (Mesocricetus auratus), em que retinas em cultura exibiram ritmo circadiano da síntese de melatonina por pelo menos 5 dias. Os ritmos foram sincronizados por ciclos de luz aplicados in vitro e entraram em livre-curso em escuro constante. Além disso, o período em livre-curso da síntese de melatonina em retinas de hamsters homozigotos com mutação tau, os quais têm o período do ritmo circadiano em livre-curso 4 horas mais curto que o selvagem, foi correspondentemente mais curto. Donde se concluiu que a retina de mamífero contém um oscilador circadiano geneticamente programado que regula a síntese de melatonina (Tosini & Menaker, 1996). Um ritmo circadiano na liberação de melatonina foi referido para cultura isolada ou enriquecida de células em retinas de camundongo (Tosini & Menaker, 1998) e rato (Tosini et al., 1998). Assim, experimentos com uma cepa particular de camundongo (C3H/rd), cujos fotorreceptores tipo bastonete sofreram degeneração durante o desenvolvimento pós-natal, demonstraram que, embora a biossíntese de melatonina permaneça, o seu ritmo circadiano desaparece com a perda completa de bastonetes (Tosini & Menaker, 1998). Esta observação sugere que bastonetes não são necessários para a síntese de melatonina, mas o são para a sua expressão rítmica (Tosini & Fukuhara, 2002).

Um estudo em rato mostrou que a lesão do núcleo supraquiasmático não abole o ritmo circadiano do RNA mensageiro da enzima NAT retiniana, mas abole os ritmos do RNA mensageiro de rPer2 e Dbp, sugerindo que a retina de mamíferos tem dois mecanismos oscilatórios circadianos, em que um pode gerar ritmicidade circadiana independente do núcleo

43 supraquiasmático e o outro depende da sua presença para manter a oscilação circadiana (Sakamoto et al., 2000).

O mecanismo responsável pela geração da oscilação circadiana requer a presença intracelular de determinados genes relógio, os quais podem ser identificados pelo método de hibridização in situ para identificar quais células expressam o RNA mensageiro (mRNA) para os genes relógio. A expressão de genes relógio foi identificada no núcleo supraquiasmático (ver por exemplo, Shearman et al., 2000; Ko & Takahashi, 2006), porém na retina é ainda matéria de investigação. Na retina de Xenopus foi concluído que os fotorreceptores continham um relógio circadiano, porque estes mantinham o ritmo circadiano da síntese de melatonina, mesmo quando mantidos em isolamento (Cahill & Besharse, 1993, 1995). Subsequentemente, foi encontrado que o homólogo do gene clock é expressado fortemente nos fotorreceptores bastonetes e cones, e apenas fracamente nas camadas neurais da retina de Xenopus (Zhu et al., 2000; Hayasaka et al., 2010).

Contrariamente à retina de anfíbios, em mamíferos, a distribuição de mensagens para genes relógio, tais como clock, Bmal1, e Period1 (Per1) é distribuída entre as camadas retinianas. Por exemplo, na retina de camundongo foi mostrado que transcriptos de clock, Bmal1, e mPer1 foram expressados fortemente nas camadas de fotorreceptores e nuclear interna, com expressão mais fraca na camada de células ganglionares (Gekakis et al., 1998). Ainda no camundongo, o RNA mensageiro para os genes criptocromos Cry1 e Cry2, os quais são componentes essenciais do mecanismo do relógio circadiano molecular, foram localizados na retina interna e não na camada de fotorreceptores (Miyamoto & Sancar, 1998). Usando um camundongo transgênico, em que uma proteína fluorescente verde (GFP) de vida média curta, é induzida pelo promotor do gene relógio Per1, a imunomarcação para Per1-GFP e proteína PER1, foi encontrada nas camadas de células amácrinas e ganglionares, mas não na camada de fotorreceptores. Adicionalmente, dupla marcação imunoistoquímica mostrou que GFP foi

44 co-localizado em células amácrinas com dopamina, calbindina e cal-retinina, mas não com acetilcolina, nem tampouco foi expressada nas células ganglionares melanopsinérgicas (Witkovsky et al., 2003). Na retina de rato foi visto que RNA de Per1 e Per2 são do mesmo modo distribuídos difusamente entre todas as camadas nucleares (Zhuang et al., 2000). Outros dados disponíveis sobre a localização celular de gene relógio na retina do rato dão conta de que Clock e BMAL1 exibem intensa expressão, com fortes sinais dos transcritos na camada nuclear interna e camada de células ganglionares (Namihira et al., 1999). Per1 e Per2 expressam-se nos fotorreceptores, mas a grande maioria dos transcritos parece estar localizada na camada nuclear interna (Namihira et al., 2001). Dados obtidos em um estudo com a técnica de microdissecção por captura a laser e reação em cadeia transcriptase-polimerase reversa, indicam que Per1, Per3, Cry1, Cry2, Clock, Bmal1, Ver-erba e Rora RNAs, e não Per2 e Npas2 estão presentes na camada de fotorreceptores na retina de ratos, acompanhado de um ritmo circadiano robusto da síntese de melatonina (Tosini et al., 2007). Estes dados demonstram que a retina de mamíferos deve conter um marcapasso circadiano funcional na camada de fotorreceptores, além da retina interna.

A resposta à luz dos genes relógio também foi investigada na retina de rato. Uma variação diária em escuro constante, estatisticamente significante, foi detectada no nível do transcrito para Clock, atingindo um pico em ZT18, mas não para BMAL1. ZT (Zeitgeber time, hora de zeitgeber) é um termo referencial utilizado em experimentos com animais em condições de sincronização, em que ZT0 significa o horário em que as luzes são acesas e ZT12 o horário em que são apagadas. Um pulso de luz (300 lux) por 30 minutos aumentou significativamente os níveis de transcrição 60 minutos após o início do pulso de ambos os genes, sendo dependente de fase para Clock (significativo em ZT2), mas não para BMAL1, cujo aumento pós-pulso ocorreu em praticamente todas as fases (Namihira et al., 1999). Per1 e Per2 são também induzidos pela luz, com Per1 sendo induzido em ZT2, ZT6, ZT10 e ZT14,

45 e Per2 sendo induzido apenas em ZT2 (Namihira et al., 2001). Estes resultados sugerem que a responsividade à luz dos genes relógio na retina são diferentes da responsividade à luz dos mesmos genes no núcleo supraquiasmático. Neste núcleo, os genes respondem à iluminação de uma maneira mais restrita, ou seja, suas respostas são dependentes da fase circadiana. Per1 aumenta em ZT16-24, e Per2 aumenta apenas em ZT16 (Miyake et al., 2000), enquanto os transcritos de BMAL1 alcançam um pico em ZT2 (Honma et al., 1998). Clock responde à luz apenas durante a noite (Abe et al., 1999). Além disso, um estudo referiu que após lesão do núcleo supraquiasmático, a ritmicidade de Per2 na retina desaparece, a despeito da permanência de um robusto ritmo circadiano do RNA mensageiro de NAT (Sakamoto et al., 2000). Isto poderia sugerir que a presença de um mecanismo de relógio na retina não depende da transcrição rítmica de genes Per.

Do exposto, torna-se evidente a existência de algumas diferenças no padrão de expressão dos genes relógio na retina em comparação com o núcleo supraquiasmático. Entretanto, ainda há muito a ser esclarecido com relação a essa questão. Sobretudo, é fundamental identificar com precisão as células que constituem o marcapasso e medir nestas células o padrão de expressão dos genes-relógio (ver Tosini & Fukuhara, 2002; Tosini et al., 2008).

Finalmente, um aspecto interessante do relógio retiniano é o mecanismo pelo qual o relógio circadiano controla a síntese de melatonina e a sua relação com a dopamina. Ritmos circadianos para melatonina (ou para as enzimas envolvidas em sua síntese) foram descritos na retina de vários roedores. Todos esses estudos têm mostrado que, como ocorre na glândula pineal, picos da síntese de melatonina ocorrem à noite (Pang et al., 1980; Yu et al., 1981; Lucas & Foster 1997; Sakamoto & Ishida, 1998a, 1998b; Pozdeyev & Lavrikova, 2000; Fukuhara et al., 2001), enquanto a dopamina e seus precursores e/ou metabólitos apresentam picos de síntese/liberação durante o dia (Adachi et al., 1998; Pozdeyev & Lavrikova, 2000;

46 Ribelayga et al., 2002; Doyle et al., 2002a, b; Tosini & Fukuhara, 2002; Iuvone et al., 2005). Além disso, a melatonina inibe a síntese/liberação de dopamina através de uma ação sobre receptores de melatonina MT2 (Dubocovich, 1983; Ribelayga et al., 2004) e, ao mesmo tempo, a dopamina inibe a síntese/ liberação de melatonina a partir de células fotorreceptoras atuando sobre receptores D2/D4 (Nguyen-Legros et al., 1996; Tosini & Dirden, 2000). Esses dados sugerem que a regulação dos níveis de melatonina e dopamina na retina pode ser parte de um complexo mecanismo de retroalimentação no qual a melatonina é rítmica e regula a liberação da dopamina e a dopamina modula o ritmo da melatonina, embora não seja necessária para a geração daqueles ritmos (Cahill & Besharse, 1995).

Embora nem todos os ritmos descritos ocorram em todas as classes de vertebrados, há inúmeras evidências de que a ritmicidade circadiana é altamente conservada na fisiologia da retina. É geralmente aceito que os ritmos circadianos da retina permitem ao organismo antecipar e adaptar-se a grandes variações na intensidade de luz durante o período de 24 horas, possibilitando uma otimização das funções visuais para cada situação fótica (Iuvone et al., 2005).