Capítulo I – A afirmação histórica do ensino obrigatório como dever fundamental
I.6. A Revolução Copernicana do Direito Público e o dever de instrução
No início do século passado, o Estado Social de Direito acaba por criar
Estados de deveres sem direitos, na construção de Estados totalitários. Após a Segunda
Guerra Mundial, a Revolução Copernicana do Direito Público
299implicou a mudança
do paradigma de sujeição para o cidadão, haja vista que do dever de sujeição às leis
(rule of Law) passou à submissão da Constituição (rule of Constitution), entretanto
numa perspectiva de consagrar tão somente, nos textos das Constituições, direitos
fundamentais.
Com efeito, até a 2ª Guerra Mundial, vivia-se num Estado Legislativo de
Direito, em que a lei e o princípio da legalidade eram as únicas fontes de legitimação do
direito e o centro do ordenamento jurídico era ocupado pelo Código Civil
300.
Entretanto, a intervenção direta do Estado nas relações econômicas e
privadas, através da edição de inúmeras normas jurídicas, culminou na desvalorização
da lei e, consequentemente, na descodificação do Direito. Com a multiplicação das
298 ÉMILE DURKHEIM, Educação e sociologia, Lisboa, 2014, p. 69.
299 A Revolução Copernicana traduz-se na passagem da fase em que as normas constitucionais dependiam da intervenção legislativa para um novo período em que esta intervenção não se faz mais imprescindível para a aplicação direta das normas constitucionais, id est, corresponde à queda do império da lei e ao advento da Constituição como o fundamento de validade do ordenamento e de limitação da atividade político-estatal. Ensina JORGE MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, Tomo IV, Direitos
Fundamentais, Coimbra, 2008, que a Revolução Copernicana do Direito Público europeu, atrelada à
Constituição alemã de 1949, consistiu num fenômeno de nova interpretação do ordenamento jurídico, em que as normas constitucionais passaram a adstringir ―os comportamentos de todos os órgãos e agentes do poder e conformam as suas relações com os cidadãos sem necessidade de mediatização legislativa‖. Vale dizer, os deveres fundamentais deverão ser respeitados a partir da força normativa da Constituição. Sobre o tema, cf. THOMAS KUHN, A Revolução Copernicana, Lisboa, 2002; ALFONSO GARCIA FIGUEROA, La teoria Del Derecho em tiempos de constitucionalismo, Madrid, 2003; LENIO LUIZ STRECK, Jurisdição Constitucional e Hermenêutica. Uma nova crítica do direito, Porto Alegre, 2002; LUÍS ROBERTO BARROSO, Neoconstitucionalismo e Constitucionalização do Direito (o triunfo tardio
do direito constitucional no Brasil), 2005; GUSTAVO BINENBOJM, Uma Teoria do Direito Administrativo: Direitos Fundamentais, Democracia e Constitucionalização, Rio de Janeiro, 2006.
300 Destacam GILMAR FERREIRA MENDES, INOCÊNCIO MÁRTIRES COELHO e PAULO GUSTAVO GONET BRANCO, Curso de Direito Constitucional, p. 188, que a falta de operatividade jurídica da Constituição decorria da supervalorização da supremacia da lei e do parlamento.
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normas jurídicas, o Código Civil perdeu, progressivamente, a posição de centralidade
que até então ocupava no sistema jurídico.
Neste sentido, foi-se ampliando e fortalecendo a jurisdição constitucional,
consolidando-se a ideia da Constituição como uma verdadeira norma jurídica
301. Surge
triunfante um novo pensamento constitucional, voltado a reconhecer a supremacia
material e axiológica da Constituição, cujo conteúdo, dotado de força normativa, passou
a condicionar a validade e a compreensão de todo o direito, inclusive das decisões
judiciais e da legislação infraconstitucional
302. Este fenômeno jurídico recebeu a
denominação de Neoconstitucionalismo
303, provocando o surgimento de um novo
modelo jurídico: o Estado Constitucional de Direito
304.
Há uma viragem normativa constitucional, pois os princípios e as regras da
Constituição passaram a condicionar a validade e o sentido de todas as normas do
direito infraconstitucional
305. Até a Segunda Guerra prevalecia no velho continente uma
cultura jurídica essencialmente legicêntrica, que tratava a lei editada pelo Parlamento
como a fonte principal – quase a fonte exclusiva – do direito, e não atribuía força
normativa às constituições. Estas eram vistas sobretudo como programas políticos que
deveriam inspirar a atuação do legislador, mas que não podiam ser invocados perante o
Judiciário, na defesa de direitos
306.
301 GILMAR FERREIRA MENDES, INOCÊNCIO MÁRTIRES COELHO e PAULO GUSTAVO GONET BRANCO, Curso de Direito Constitucional, p. 181, destacam que o atual prestígio jurídico da Constituição é fruto da ―urdidadura de fatos e idéias, em permanente e intensa interação recíproca, durante o suceder das etapas da História‖. Sobre a importância da Constituição no direito contemporâneo, cfr. GEORG JELLINEK, Teoría general del Estado, Trad. Fernando de los Ríos. México: Fondo de Cultura Económica, 2000, pp. 478 e ss.
302 GUSTAVO BINENBOJM, Uma Teoria do Direito Administrativo, p. 55, defende que as decisões judiciais e a legislação infraconstitucional devem se compatibilizar com os princípios morais incorporados pela Constituição e seu sistema de direitos fundamentais.
303 GUSTAVO BINENBOJM, Uma Teoria do Direito Administrativo, p. 61, conceitua como neoconstitucionalismo o processo por meio do qual os sistemas democrático e de direitos fundamentais ―espraiam seus efeitos conformadores por toda a ordem jurídico-política, condicionando e influenciando os seus diversos institutos e estruturas‖.
304 Para JORGE MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, Tomo I, Coimbra: Coimbra Editora, 1997, pp. 83-85, a expressão ―Estado Constitucional‖ parece ser de origem francesa, cuja primeira noção significa um Estado assente numa Constituição reguladora de toda a sua organização bem como da relação com os cidadãos e tendente à limitação do poder. Destaca que, por sua vez, o ―Estado de Direito‖ é o Estado no qual se estabelece juridicamente a divisão do poder e em que o respeito pela legalidade se eleva a critério de ação dos governantes, objetivando a garantia dos direitos dos cidadãos.
305 LUÍS ROBERTO BARROSO, Neoconstitucionalismo e Constitucionalização do Direito (o triunfo
tardio do direito constitucional no Brasil), in Revista de Direito Administrativo nº 240, 2005, p. 12. Este
autor defende que a principal marca da constitucionalização do direito infraconstitucional encontra-se, sobretudo, na reinterpretação de seus institutos sob uma ótica constitucional.
306
DANIEL SARMENTO, O neoconstitucionalismo no Brasil: riscos e possibilidades. São Paulo, Coimbra, 2009, pp. 13-15: ―Com efeito, as constituições europeias do 2.º pós-guerra não são cartas
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Sucede que a partir da década de 60, movimentos esparsos no velho
continente retomaram a discussão sobre a importância dos deveres fundamentais como
pressupostos de existência dos direitos, nomeadamente, sobre o dever fundamental de
instrução.
Nesse sentido, duas obras italianas até hoje são referência no assunto
deveres fundamentais, quais sejam a obra de G. M. LOMBARDI, Contributo allo
Studio dei dovere costituzionali, 1967
307e de CARMELO CARBONE, I dovere
pubblici individuali nella Costituzione, 1968
308.
Na França, a obra de G. BONNOT DE MABLY, em 1972, Des droits et des
devoirs du citoyen
309, acabou posteriormente sendo difundida em toda a Europa, cuja
ideia principal é de assinalar que os cidadãos não possuem apenas direitos que devem
ser respeitados pelo Estado, mas também deveres que estão obrigados a cumprir.
A partir da década de setenta, na Alemanha, os deveres fundamentais
começam a despertar novamente a atenção da doutrina germânica em face da polêmica
criada em torno da teoria funcional democrática dos direitos fundamentais
310, aplicada
ao funcionalismo público e do exercício de certas profissões e motivadas pela sessão de
Konstanz da Associação dos Professores Alemães de Direito Público, quando obras
começaram a ser publicadas sobre a matéria, o que levou aos deveres fundamentais a
procedimentais, que quase tudo deixam para as decisões das maiorias legislativas, mas sim documentos repletos de normas impregnadas de elevado teor axiológico, que contêm importantes decisões substantivas e se debruçam sobre uma ampla variedade de temas que outrora não eram tratados pelas constituições, como a economia, as relações de trabalho e a família. Muitas delas, ao lado dos tradicionais direitos individuais e políticos, incluem também direitos sociais de natureza prestacional. Uma intepretação extensiva e abrangente das normas constitucionais pelo Poder Judiciário deu origem ao fenômeno de constitucionalização do direito, que envolveu a ampliação da influências das constituições sobre todo o ordenamento, levando à adoção de novas leituras de normas e institutos nos mais variados ramos do direito. Como boa parcela das normas mais relevantes dessas constituições caracteriza-se pela abertura e indeterminação semânticas – são, em grande parte, princípios e não regras – a sua aplicação direta pelo Poder Judiciário importou na adoção de novas técnicas e estilos hermenêuticos, ao lado da tradicional subsunção. A necessidade de resolver tensões entre princípios constitucionais colidentes – frequente em constituições compromissórias, marcadas pela riqueza e pelo pluralismo axiológico – deu espaço ao desenvolvimento da técnica da ponderação e tornou frequente o recurso ao princípio da proporcionalidade na esfera judicial. E a busca de legitimidade para estas decisões, no marco das sociedades plurais e complexas, impulsionou o desenvolvimento de diversas teorias da argumentação jurídica, que incorporaram ao direito elementos que o positivismo clássico costumava desprezar, como considerações de natureza moral, ou relacionadas ao campo empírico subjacente às normas‖.
307 Cf. G. M. LOMBARDI, Contributo allo Studio dei dovere costituzionali, Milão, 1967. 308 Cf. CARMELO CARBONE, I dovere pubblici individuali nella Costituzione, Milão, 1968. 309
Cf. G. BONNOT DE MABLY, Des droits et dês devoirs Du citoyen, Paris, 1972.