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Estado de Direito e a escolaridade de massas – o Ensino como elemento definidor

Capítulo I – A afirmação histórica do ensino obrigatório como dever fundamental

I.4. O dever fundamental de instrução e o Estado Liberal

I.4.2. Estado de Direito e a escolaridade de massas – o Ensino como elemento definidor

278 Para SILVESTRE FERREIRA, Declaração dos direitos e deveres do homem e do cidadão, Paris, 1836, p. 2, a lei do justo consiste ―naquelle maior bem possível de todos em geral, e de cada um em particular, que em qualquer caso ocorrente a razão apresenta como ultimo resultado. A lei fundamental do estado deve garantir a cada cidadão a fruição dos seus direitos naturais, impondo às autoridades constituídas, bem como a cada individuo em particular, o dever de cooperarem para a manutenção d‘aquelles direitos‖. Dois anos antes, na obra Manual do Cidadão em um Governo Representativo, ou

Princípios de Direito Constitucional, Administrativo e das Gentes. Tomo I. Direito Constitucional, Paris,

1834, p. 1, SILVESTRE FERREIRA, já sugeria que os deveres seriam todos os incômodos que a lei do

justo impõe.

279 Cf. SILVESTRE FERREIRA, Declaração dos direitos e deveres do homem e do cidadão, Paris, 1836, p. 3.

280 Cf. SILVESTRE FERREIRA, Declaração dos direitos e deveres do homem e do cidadão, Paris, 1836, p. 4. Em Manual do Cidadão em um Governo Representativo, ou Princípios de Direito Constitucional, Administrativo e das Gentes. Tomo I. Direito Constitucional, Paris, 1834, p. 2, SILVESTRE FERREIRA esclarece que o interesse comum não se confunde com o interesse do maior número.

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Não se pode dissociar a introdução do conceito de Estado de Direito

281

-

Rechtsstaat - na Alemanha do século XIX, pelo professor de Direito Político da

Universidade de Tübingen, Robert Von Mohl

282

, da escolarização de massas em caráter

obrigatório.

Ao contrário.

A escolaridade de massas não foi uma inevitabilidade histórica, mas antes

uma vaga de fundo de restruturação cultural do Ocidente que, durante décadas, ao longo

dos séculos XIX e XX, reordenou a vida pública

283

, em que o Estado Liberal propugnou

os deveres sem religião

284

.

O Estado foi substituindo as Igrejas

285

como estruturas dominantes de

autoridade e a comunidade nacional secularizou-se

286

, redimensionando como um

projeto social unificado, orientado para o progresso e para o sucesso coletivo, através da

ação individual de cidadãos

287

.

Daí que construir este tipo de cidadãos implicava retirá-los dos seus

tradicionais núcleos de socialização e formá-los no seio de uma nova estrutura formal,

281

Para FERRAJOLI, O Estado de Direito entre o passado e o futuro, p. 422, São Paulo, 2006, ―O Estado de Direito moderno nasce, na forma do ‗Estado legislativo de Direito‘ (ou se preferir do ‗Estado legal‘), no momento em que esta instância se realiza historicamente com a exata afirmação do princípio da legalidade como fonte exclusiva do direito válido e existente anteriormente. Graças a esse princípio e às condições que constituem a sua atuação, todas as normas jurídicas existem e simultaneamente são válidas desde que sejam ‗postas‘ por autoridades dotadas de competência normativa.

282 Cfr. PABLO LUCAS VERDÚ, A Luta pelo Estado de Direito, Rio de Janeiro, 2007, pp. 9-10; JORGE REIS NOVAIS, Contributo para uma teoria do Estado de Direito, Coimbra, 2006, pp 47 e ss.; GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Coimbra, 2003, p. 96.

283

Cf. JOAQUIM AZEVEDO, Sistema educativo mundial: Ensaio sobre a regulação transnacional da

educação, Lisboa, 2007, p. 32.

284Cf. GILLES LIPOVETSKY, O Crepúsculo do Dever: A ética indolor dos novos tempos democráticos, Alfragide, Portugal, p. 28, p. 36.

285 DAVID JUSTINO, Difícil é Educá-los, 2010, p. 24, ensina que a afirmação do Estado moderno passa pelo princípio da laicidade a ser observado na formação das novas gerações, o que contrariou a influência das instituições religiosas nas escolas.

286

Cf. GILLES LIPOVETSKY, O Crepúsculo do Dever: A ética indolor dos novos tempos democráticos, Alfragide, Portugal, p. 36.

287 Cf. RUDOLF VON IHERING, A luta pelo direito, Rio de Janeiro, 1986. Por sua vez, a luta pelo

direito de RUDOLF VON IHERING (1818-1892) baseou-se em dois pilares: na luta pelos deveres do

interessado para consigo próprio e na luta para com a sociedade. A sua tese, defendida por RUDOLF VON IHERING, na Sociedade Jurídica de Viena, em 1872, foi a seguinte: ―é um dever resistir à injustiça ultrajante que chega provocar a própria pessoa, isto é, à lesão ao direito que, em conseqüência da maneira por que é cometida, contém o caráter de um desprezo pelo direito, de uma lesão pessoal. É um dever do interessado para consigo próprio, porque é um preceito da própria conservação moral; é um dever para com a sociedade, porque esta resistência é necessária para que o direito se realize.

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distinta e disciplinada, o que levou ao movimento mundial da construção dos modernos

Estados-nações, sustentando-se na instituição mundial da escolarização de massas

288

.

Com efeito, Os Estados nacionais instituíram o sistema de educação escolar

obrigatório que seguem uma matriz muito semelhante, a partir de um modelo

transnacional moderno de educação, que vem se sobrepondo lentamente, durante

décadas e décadas, a todas as formas pré-modernas ou não formalizadas de educação

289

.

Pode-se entender que o ensino obrigatório consistiu num elemento

indispensável à estruturação do moderno sistema de Estados europeus, pois ―se centrou

não só na afirmação dos pilares políticos de soberania (território, fronteiras,

administração pública, defesa, segurança interna, justiça etc.), mas também na urgente

necessidade de criar uma identidade e um ―povo‖ que conferisse sustentabilidade a essa

nova realidade política‖

290

.

Sem embargo, a ideia da educabilidade como instrumento de construção da

identidade nacional atravessa todo o século XIX, com especial expressão entre as elites

mobilizadas para o desafio da construção da nação

291

.

O principal obstáculo à generalização e universalização da instrução pública

não residia na escassez de recursos, mas sim na vontade das populações por não

atribuírem especial importância a uma escolarização mínima ou por verem na escola

desperdício de tempo face à necessidade de assegurar a subsistência familiar. Exigia-se,

pois, um sistema de ensino capaz de unificar culturalmente o povo, a começar pela

língua

292

, resultando, portanto, a necessidade da escolaridade obrigatória para assegurar

a coesão das opções políticas de cada Estado

293

.

288

Cf. JOAQUIM AZEVEDO, Sistema educativo mundial: Ensaio sobre a regulação transnacional da

educação, Lisboa, 2007, pp. 51 e 52.

289Cf. JOAQUIM AZEVEDO, Sistema educativo mundial: Ensaio sobre a regulação transnacional da

educação. Lisboa: FML, 2007, p. 48.

290

Cf. DAVID JUSTINO, Difícil é Educá-los, Lisboa, 2010, p. 24. 291 Cf. DAVID JUSTINO, Difícil é Educá-los, Lisboa, 2010, p. 24.

292 HANNAH ARENDT, Entre o passado e o futuro, São Paulo, 1997. p. 223. Para ARENDT, a educação tem papel incomparavelmente mais importante politicamente nos EUA que em outros países, pelo fato de ser um país de imigrantes, e a fusão dos grupos étnicos mais diversos só poderia ser cumprida mediante a instrução, educação e americanização dos filhos de imigrantes. Considera ARENDT que, no século XVII, a educação tornou-se instrumento da política e a atividade política foi concebida como uma forma de educação, defendendo que o papel político que a educação representa em uma terra de imigrantes, o fato de que as escolas não apenas servem para americanizar as crianças, mas afetam também os seus pais, que são ajudados a se desfazer de um mundo antigo e a entrar num novo mundo, sendo

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