3. Delimitação do objeto da investigação
3.2. Delimitação da expressão dever fundamental
3.2.2. Dever fundamental e ensino obrigatório
3.2.2.2. Ensino obrigatório como dever fundamental transdimensional
3.2.2.2.2. Perspectiva transdimensional do ensino obrigatório e a Teoria da
Inicialmente, traduzir-se-ia o ensino obrigatório como dever fundamental de
2ª dimensão, haja vista que a sua afirmação nas Constituições escritas está associada ao
reconhecimento dos direitos sociais conquistados no período Pós-Revolução Industrial,
exigindo comportamento dos particulares que viessem a atender os interesses da
coletividade.
Entretanto, a concepção do ensino como dever fundamental é atemporal,
transversal
93, que corresponde à mutação do dever de escolaridade obrigatória no
tempo, que é dever eminentemente de 2ª dimensão
94, mas também corresponde a um
dever de primeira, terceira e quarta dimensões, ao mesmo tempo, na medida em que
também assume estrutura jurídica complexa, que apresenta, simultaneamente, elementos
típicos de cada uma das dimensões dos deveres fundamentais.
A atual conjuntura da instrumentalidade decorre da evolução da mudança
paradigmática da proteção dos deveres fundamentais da teoria da progressividade para a
teoria da indivisibilidade dos deveres
95.
93
MONICA HERMAN S. CAGGIANO, A Educação. Direito Fundamental, São Paulo, EDUSP, 2009, p. 23, defende a transversalidade do direito à educação presente na primeira e segunda dimensões, ao consignar que ―insuflado e robustecido pelos caracteres de índole coletiva, extraídos das duas últimas gerações de direitos, vislumbra-se o direito à educação com conteúdo multifacetado, envolvendo não apenas o direito à instrução como processo de desenvolvimento individual, mas, também, o direito a uma política educacional, ou seja, a um conjunto de intervenções juridicamente organizadas e executadas em termos de um processo de formação da sociedade, visando oferecer aos integrantes da comunidade social instrumentos a alcançar os seus fins‖.
94 Como bem afirma INGO WOLFGANG SARLET, A eficácia dos direitos fundamentais, Porto Alegre, 2004, p. 55, os direitos de segunda dimensão englobam prestações positivas e negativas, em face às denominadas ―liberdades sociais‖, abstenções estatais com o fito de reconhecimento de direitos fundamentais sociais.
95 JORGE MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, Tomo IV, Coimbra, 2000, p. 217, entende que a interconexão de liberdades e direitos sociais afigura-se óbvia quer no processo histórico da sua formulação, quer no momento atual de exercício e efetivação. Assevera o constitucionalista de Lisboa que ―a efectivação dos direitos sociais propicia a realização das liberdades ou de certas liberdades: se se assegura, por exemplo, o ensino básico universal, obrigatório e gratuito ou a educação permanente [art. 74, n. 2, alíneas a e c], é para que todos possam usufruir da liberdade de aprender (art. 43) e da liberdade de criação cultural (art. 42). Finalmente, não faltam casos de harmonização: por exemplo, o direito ao trabalho não pode ser efectivado com privação da liberdade de profissão (art. 47)‖. Sublinha JOSÉ
38
Numa perspectiva, assimétrica, assim como os direitos, os deveres
fundamentais formam um todo uno, indivisível, indissociável
96.
A teoria da progressividade dos direitos fundamentais cedeu espaço à teoria
da indivisibilidade ou indissociabilidade. Desde a Declaração Universal dos Direitos
Humanos, em 1948, e, principalmente, a partir da I Conferência Mundial de Direitos
Humanos, em 1968, realizada em Teerã, que já se afirmara que a realização plena dos
direitos civis e políticos não seria possível sem que fossem garantidos os direitos
econômicos, sociais e culturais.
Com efeito, a teoria da indivisibilidade afirma justamente a condição dos
direitos sociais e econômicos como pressupostos de exercício das liberdades políticas e
individuais. Até o final do século XIX, ainda predominava a teoria da bipartição dos
direitos fundamentais, privilegiando os direitos individuais e as liberdades em relação
aos direitos sociais e econômicos. Buscava-se, antes, prioritariamente, a efetivação dos
primeiros e progressivamente, a concretização dos direitos sociais e econômicos
97. Os
direitos sociais, econômicos e culturais não são contrapostos aos direitos e liberdades
fundamentais; são complementares. Sucede, pois, que a igualdade real (ou jurídico-
material ou social) não vale por si; vale enquanto dirigida à concretização da igualdade
jurídica. Os direitos com estrutura de direitos sociais não contemplados no artigo 17.º da
CRP, por exemplo, estão ao serviço de direitos de liberdade e, por isso, são, justamente,
estes direitos que exigem a sua realização
98.
Na Constituição portuguesa, a teoria da indivisibilidade está assentada nos
seus artigos 26.º e 76.º, ao estabelecer que a educação visa à plena expansão da
AFONSO DA SILVA, Comentário contextual à Constituição, São Paulo, 2006, p. 59, que a Carta de 1988 fundamenta o entendimento de que as categorias de direitos humanos nela previstas integram-se em um todo harmônico, mediante influências recíprocas, até porque os direitos individuais seriam contaminados de dimensão social.
96 Como observou ANTÔNIO AUGUSTO CANÇADO TRINDADE, A Proteção Internacional dos
Direitos Fundamentais, Fundamentos Jurídicos e Instrumentos Básicos, São Paulo, 1991, pp. 41 e 42, "as
propostas 'categorias' de direitos (individuais e sociais ou coletivos), complementares e não concorrentes, com variações em sua formulação, podem ser propriamente examinadas à luz da unidade fundamental da concepção dos direitos humanos. Logo tornou-se patente que tal unidade conceitual - e indivisibilidade - dos direitos humanos, todos inerentes à pessoa humana, na qual encontram seu ponto último de convergência, transcendia as formulações distintas dos direitos reconhecidos em diferentes instrumentos, assim como nos respectivos e múltiplos mecanismos ou procedimentos de implementação".
97 Rezava o art. 54, nº 4, da Constituição de 1891 que consistia em crime de responsabilidade o ato do Presidente da República que atentar contra o gozo e exercício legal dos direitos políticos e individuais, não fazendo menção aos direitos sociais e econômicos.
39
personalidade humana e ao reforço dos direitos do homem e das liberdades
fundamentais
99, devendo o Estado promover a democratização da educação e as demais
condições para que a educação, realizada através da escola e de outros meios
formativos, contribua para a igualdade de oportunidades, a superação das desigualdades
econômicas, sociais e culturais, o desenvolvimento da personalidade e do espírito de
tolerância, de compreensão mútua, de solidariedade e de responsabilidade, para o
progresso social e para a participação democrática na vida coletiva.
Com efeito, o novo Estado compreendeu o reconhecimento dos
denominados ―direitos econômicos, sociais e culturais‖, não tendente a absorver ou
anular a liberdade individual, mas garantir o pleno desenvolvimento da subjetividade
humana, que exige conjugar as dimensões pessoais e coletivas
100.
Os direitos individuais e as liberdades e os direitos econômicos sociais e
culturais devem permanecer juntos na concretização de uma ordem social livre, sem
escala hierárquica
101, uma vez que os últimos quando a serviço da concretização da
liberdade, não apenas elevam o valor da liberdade, mas tornam-se, eles mesmos, direitos
originais à liberdade
102.
Ao mesmo tempo, o artigo 14 da Declaração de Teerã estabeleceu que ―a
existência de mais de 700 milhões de analfabetos no mundo é um gigantesco obstáculo
que impede os esforços dirigidos ao cumprimento dos propósitos e objetivos da Carta
das Nações Unidas e as disposições da declaração Universal dos Direitos Humanos. A
ação internacional para erradicar o analfabetismo no mundo todo e a promoção da
99 Cf. JORGE MIRANDA e RUI MEDEIROS, cit., 2005, p. 141.
100 O artigo 205 da CF/88 e o artigo 22 da LDB refletem a importância da educação para a efetivação do direitos e liberdades, ao disporem que: a) ―a educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho‖ (artigo 205) e b) ―a educação básica tem por finalidades desenvolver o educando, assegurar-lhe a formação comum indispensável para o exercício da cidadania e fornecer-lhe meios para progredir no trabalho e em estudos posteriores‖ (artigo 22).
101 HEINER BIELEFELDT, Filosofia dos Direitos Humanos, São Leopoldo, 2000, pp. 124 e ss., também consigna que os direitos humanos são indivisíveis como um todo e sempre associados à consecução de uma política de direitos humanos com parâmetros de liberdade, igualdade e solidariedade, com observância da dimensão libertária fundamental, que é protegida juridicamente.
102 JORGE MIRANDA, cit., p. 212, afirma que as diferenças entre os direitos, liberdades e garantias dos direitos sociais, basicamente, seriam as seguintes: enquanto os primeiros são direitos de libertação do poder e, simultaneamente, direitos à proteção do poder contra outros poderes, os últimos são direitos de libertação da necessidade e, ao mesmo tempo, direitos de promoção.
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educação em todos os níveis exige atenção urgente‖, razão pela qual o respeito à
indivisibilidade dos deveres fundamentais ultrapassa o ensino obrigatório.
É intrínseca, portanto, a relação do dever de instrução e a efetividade dos
deveres fundamentais
103. O reconhecimento das normas declaratórias e assecuratórias de
direitos fundamentais pelo indivíduo depende, necessariamente, que lhe tenha sido
assegurado qualquer instrução, mas prestação de serviço com mínima qualidade para
que possa exercer seus direitos na sociedade da informação
104.
De fato, a primeira forma de defesa dos direitos é a que consiste no seu
mínimo conhecimento
105, haja vista que só quem tem consciência dos seus direitos
consegue usufruir os bens a que eles correspondem e sabe avaliar as desvantagens e os
prejuízos que sofre quando não os pode exercer ou efetivar ou quando eles são violados
ou restringidos
106. A construção da liberdade igual que aponta para a igualdade real
107, o
que pressupõe a tendencial possibilidade de todos terem acesso aos bens econômicos,
sociais e culturais
108.
103
Para MARIA CRISTINA DOS SANTOS CRUANHES, Cidadania: Educação e Exclusão Social, Porto Alegre, 2000, pp. 83 a 86, educação e cidadania caminham juntas, são indissociáveis, pois quanto mais educados, mais serão capazes de lutar e exigir seus direitos e cumprir seus deveres, implicando que o acesso igualitário à educação permitiria que cada cidadão brasileiro reclame e force a efetivação deste direito universal, cujo obstáculo é a própria falta de formação e informação da maior parte da população. 104
Cf. JORGE MIRANDA, Manual…, Vol. IV, cit., pp. 254-55.
105 FERNANDO SAVATER, O Valor de educar, Lisboa, 1997, p. 71, considera que o analfabeto seria equiparado a uma criança que não sabe que ignora, pois não sente falta dos conhecimentos que não tem. Realmente, não se pode exigir de quem não conhece seus direitos conhecer aquilo que nem sequer se vislumbra.
106 É a indispensável lição de JORGE MIRANDA, Manual…, Vol. IV, cit., pp. 254-55., ao lembrar também que ―promover o direito aos direitos ou a democratização do direito torna-se imperativo ainda mais urgente na conjuntura actual da lei e perante a chamada sociedade da informação‖.
107 No seu abalizado escólio, GOMES CANOTILHO, op. cit., p. 480, entende que a liberdade igual significa, por exemplo, não apenas o direito à inviolabilidade de domicílio, mas o direito a ter casa; não apenas o direito à vida e integridade física, mas também o acesso a cuidados médicos; não apenas o direito de expressão mas também a possibilidade de formar a própria opinião; não apenas direito ao trabalho e emprego livremente escolhido, mas também a efetiva posse de um posto de trabalho. O que corresponderia não somente a ter a liberdade de aprender e o direito de estudar, mas ter acesso ao ensino de qualidade.
108 Para MARIA CRISTINA BRITO LIMA, A Educação como Direito Fundamental, Rio de Janeiro, 2003, p. 31, o direito de acesso ao ensino fundamental é necessário para que o indivíduo possa ir em busca de oportunidades em igualdades de condições com os demais e quando não usufruído na idade ideal, quer em idade posterior, faz com que o homem não tenha a possibilidade de se profissionalizar, partindo, então, desde o início da puberdade, para os ―trabalhos gerais‖, que caracterizam a grande massa de mão-de-obra desqualificada brasileira.