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Consideraçõs preliminares: a teoria do poder constituinte e o ensino

3. Delimitação do objeto da investigação

3.3. Delimitação da expressão Estado Constitucional Democrático

3.3.1. Estado Constitucional Democrático e ensino obrigatório

3.3.2.1. Educação, Poder Constituinte e Estado Constitucional Democrático

3.3.2.1.1. Consideraçõs preliminares: a teoria do poder constituinte e o ensino

É inequívoca a intrínseca relação entre o exercício do poder constituinte

num Estado democrático e o ensino obrigatório, na medida em que a construção de uma

nova ordem constitucional

125

ultrapassa a participação dos cidadãos na elaboração de

uma nova constituição.

Isso ficou demonstrado na Constituição Federal de 1988, cuja Assembleia

Constituinte iniciou seus trabalhos em 1° de fevereiro de 1987, em face à determinação

da Emenda Constitucional n° 26, tendo sido encerrados, formalmente, em 05 de outubro

de 1988, com a promulgação da nova Constituição.

Em que pese ter ocorrido ampla participação popular, ―vivida com toda a

intensidade ao transcurso de vinte meses de reunião da Assembleia‖

126

, ficou nítida a

falta de participação da representação dos empregados domésticos nas discussões da

Assembleia Constituinte, o que resultou numa Constituição originária que separou essa

categoria profissional do regime geral de proteção dos direitos fundamentais, tendo

ocorrido discriminação negativa em face aos ―lobbies, que nunca existiram em outras

Constituintes, se tornaram uma presença familiar, e os grupos de pressão, tanto do meio

empresarial como das classe obreiras e respectivas organizações sindicais, jamais se

mostraram tão ativos e assíduos no Congresso neste período‖

127

.

Sucede, pois, que inúmeras são as obras que discorrem sobre a Teoria do

Poder Constituinte e sua intrínseca relação com os princípios constitucionais que

125 Para JORGE MIRANDA, cit., pág. 91, o poder constituinte é exercido numa dupla perspectiva: material e formal sobre a Constituição. O primeiro precede, lógica e historicamente, o segundo, pois: a) a ideia de Direito precede a regra de Direito, o valor comanda a norma, a opção política fundamental, a forma que elege para agir sobre os factos, a legitimidade e a legalidade; b) o triunfo de uma nova certa ideia de direito ou do nascimento de certo regime, e, posteriormente, a formalização dessa ideia ou desse regime. Sobre o poder constituinte, cf. a análise de CARLOS BLANCO DE MORAIS, Curso de Direito

Constitucional. Teoria da Constituição em Tempo de Crise do Estado Social, Tomo II. Volume 2,

Coimbra, 2014, pp. 192 e ss., e, também, CRISTINA QUEIROZ, Poder Constituinte, Democracia e

Direitos Fundamentais. Uma via constitucional para a Europa, Coimbra: Coimbra Editora, 2013.

126 Cf. PAULO BONAVIDES e PAES DE ANDRADE, História constitucional do Brasil, Brasília, 2002, p. 496.

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norteiam o ordenamento jurídico, sem esboçar, entretanto, que o exercício de um

conceito ligado ao ensino obrigatório, justificando as suas razões.

Quanto maior a distância entre a Constituição real e efetiva da Constituição

escrita, maior é a possibilidade do titular poder constituinte dar início à elaboração de

uma nova Lei Fundamental que atenda aos interesses da coletividade, em razão do

esvaziamento da força normativa do texto constitucional anterior. Haverá, portanto, o

poder de auto-conformação do Estado segundo certa ideia de Direito – poder

constituinte material – e um poder de decretação de normas com a forma e a força

jurídica próprias das normas constitucionais – poder constituinte formal

128

.

De fato, o poder de elaborar uma nova ordem constitucional origina-se dos

princípios constitucionais que norteiam o Poder Constituinte Material e estabelecem os

fundamentos da nova lei fundamental (CRP, art. 2º; CF/88, art. 1º), cuja titularidade

pelo povo para o seu exercício, vem sendo explicitada pelos textos constitucionais nos

Estados Democráticos

129

. Quanto às formas de exercício do poder constituinte, impende

consignar que o desencadeamento do procedimento está, em regra, associado a

momentos constitucionais extraordinários, quais sejam a revolução, nascimento de

novos estados, transições constitucionais, golpes de Estado, entre outras vias

130

, o que

implicará, necessariamente, nos princípios constitucionais que nortearão os

fundamentos da nova Carta Política

131

.

As origens do conceito de poder constituinte remontam ao período de

movimentos revolucionários que buscaram destruir as instituições do Ancién Regime e

gerar uma nova ordem política, que asseguraria inúmeros direitos fundamentais ao lado

de deveres.

128Cfr. JORGE MIRANDA, cit., pág. 90.

129 Diversas são as Constituições que expressam, de forma inequívoca, a titularidade do poder constituinte no seu texto, entre elas a Constituição da República Portuguesa (preâmbulo), Constituição da República Federal Alemã (Preâmbulo e art. 20º), Lei Constitucional Federal Austríaca (art. 1o), Constituição do Reino da Bélgica (art. 33º), Constituição do Reino Dinamarquês, Constituição do Reino de Espanha (Preâmbulo e art. 1º), Lei Fundamental sobre a forma do Governo Finlandês (art. 2º), Constituição da República Francesa (Preâmbulo e art. 3º), Constituição da República da Grécia (art. 1º), Constituição da República da Irlanda (Preâmbulo e art. 1º), Constituição da Suécia (art. 1º), Constituição da República Italiana (art. 1º), Constituição dos Estados Unidos da América (preâmbulo), Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (Preâmbulo e art. 1º). Já as Constituições do Reino Dinamarquês e do Reino dos Países Baixos não revelam no seu corpo, de forma explícita, de quem é a titularidade do Poder Constituinte.

130 Cfr. GOMES CANOTILHO, op. cit., pág. 77.

131 A Constituição Federal Brasileira de 1988 é peremptória ao afirmar que os seus fundamentos são a soberania, cidadania, dignidade da pessoa humana, valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e o pluralismo político (art. 1º).

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As origens da expressão poder constituinte

132

remontam as obras do abade

Emmanuel Joseph Sièyes

133134

, que, ao lado da dicotomia entre o Poder Constituinte e

os Poderes Constituídos, já se preocupava com a participação do povo na construção da

Constituição.

Independentemente da teoria que justifique as origens do Poder

Constituinte

135

, decerto, enquanto faculdade indispensável para a auto-organização do

Estado, o poder constituinte perdura ao longo da sua história e pode ser exercido a todo

o tempo. O exercício do poder constituinte decorre de condições concretas que resultam

de determinantes históricas de ruptura ou transição constitucional e a efetividade que se

espera vir a adquirir uma nova Constituição

136

.

132 Cumpre referir a opinião de PAULO BONAVIDES, Curso de Direito Constitucional, 2000, pág. 121, no sentido que ―o poder constituinte sempre houve, porque jamais deixou de haver o ato de uma sociedade estabelecendo os fundamentos de sua própria organização. O que nem sempre houve, porém, foi uma teoria desse poder, cuja aparição configura um traço de todo original, ou seja, uma peculiaridade digna talvez de justificar o pasmo e a vaidade do orador constituinte, ao formulá-la em fins do século XVIII‖.

133 AUGUSTO ZIMMERMANN, Curso de Direito Constitucional, 2002, pág. 122, atribui a pioneira formulação teórica do Poder Constituinte a Alexander Hamilton, que, apesar de não ter utilizado na época as expressões ―poder constituinte‖ e ―poder constituído‖, já dispunha no Artigo Federalista nº 78 que ―todo ato de uma autoridade delegada – e aqui já podemos tratar de Poder Constituído – contrário aos termos da comissão – entenda-se como palavra de conotação similar à Poder Constituinte – é nulo‖. Sobre o processo genético do poder constituinte e a sua evolução, impende ressaltar a opinião de GOMES CANOTILHO que sintetiza as experiências constituintes inglesa, americana e francesas nas ações revelar, dizer e criar, respectivamente, aduzindo que os ingleses compreenderam o poder constituinte como um processo histórico de revelação da ―Constituição da Inglaterra‖; os americanos disseram num texto escrito, produzido por um poder constituinte denominado ―the fundamental and Paramount law of the

nation‖, enquanto os franceses criaram uma nova ordem jurídico-política através da ―destruição‖ do

antigo e da ―construção do novo‖. Ensina, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 2003, pág. 72, que coube a Jonh Locke na obra ―Two Treatises of Government‖ distinguir a expressão poder

constituinte do povo, reconduzível ao poder de o povo alcançar uma nova ―forma de governo‖, e o poder ordinário do governo e do legislativo encarregados de prover à feitura e à aplicação das leis.

134 Nascido em 1748, o abade Emmanuel Joseph Sièyes ficou universalmente reconhecido como o criador da teoria do Poder Constituinte. Na sua obra Préliminaire de la Constitution: Reconnaissance et

Exposition Raisonnée des Droits de L´Homme et du Citoyen, publicada em Julho de 1789, Sièyes reuniu

três brochuras intituladas Essai sur les Privilèges; Vues sur les Moyens d´exécution dont les représentants

de la France pourront disposer en 1789 e a célebre Qu´est-ce que le Tiers-État ?. Sièyes sintetiza, cit.,

1789, p. 111, sua ideia de poder constituinte quando afirma que: ―Ces loix sont dites fondamentales, non

pas en ce sens, qu´elles puissent devenir indépendantes de la volonté nationale, mais parce que les corps qui existent et agissent par elles, ne peuvent point y toucher. Dans chaque partie, la constitution n´est pas l´ouvrage du pouvoir constitué, mais du pouvoir constituant. Aucune sorte de pouvoir délégué ne peut rien changer aux conditions de sa délégation. C´est ainsi, et non autrement, que les loix constitutionnelles sont fondamentales‖.

135 MARCOS WACHOWICS, na sua elucidativa obra, Poder Constituinte e Transição Constitucional, 2000, pág. 32 e ss., informa que além das teorias de matizes jusnaturalistas (teoria jusnaturalista; teoria racional ideal e teoria fundacional) e das matizes juspositivistas (teoria juspositivista; teoria de Carré de Malberg e teoria decisionista), há também a teoria dialético-integral e a teoria de Georges Burdeau. 136 Oportuna a lição de JORGE MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, Tomo II, 2003, p. 122, quando sustenta que na medida em que prevaleça a soberania do povo como princípio jurídico-político, ao povo cabe decidir sobre a subsistência ou não da Constituição positiva, a sua alteração ou a sua substituição por outra.

48

A necessidade, pois, de se criar uma nova lei fundamental num Estado

democrático reflete a mudança paradigmática de valores que consubstanciam a

sistemática

137

dos princípios que norteiam o poder constituinte

138

, material na

manutenção de um Estado democrático, pois uma nova Constituição não deve significar

atentar contra a democracia, mas o redimensionamento dos valores num Estado

Constitucional.

Com efeito, o poder constituinte é a manifestação do princípio democrático

geral de que todo o poder do Estado emana do povo, que deve ser de natureza pré-

constitucional

139

, podendo ser concebido como um princípio central no âmbito da

constituição, e, ―enquanto princípio genérico, ele não pode saltar com eficácia

137 Para CLAUS-WILHELM CANARIS, Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do

Direito, 2002, pág. 280, uma vez determinado o conceito de sistema com referência às ideias de

adequação valorativa e unidade anterior do Direito, deve-se definir o sistema jurídico como ordem axiológica ou teleológica de princípios gerais.

138 Cumpre dispor algumas considerações conceituais de ilustres jusconstitucionalistas sobre poder constituinte. A peremptória lição de JORGE MIRANDA, op., cit., pág. 88, é sempre oportuna para reafirmar que o poder constituinte revela-se não da aprovação da Constituição formal, mas da contraposição do regime até então vigente. Para GEORGES BURDEAU, Traité de Science Politique, Tomo IV, 1950, pág. 181, o poder constituinte ―est affecté d´une signification politique dont nulle exégèse ne peut le purifier. La puissance qu´il recèle est rebelle à une intégration totale dans un système hiérarchisé de normes e compétences. C´est que le pouvoir constituant, s´il peut, par certains actes, s´insérer dans l´ordre juridique, lui demeure toujors extérieur par d´autres‖. REQUEJO PAGÉS, Las normas preconstitucionales y el mitor del poder constituyente, 1998, pág. 44, lecciona que o poder constituinte ―es aquel poder del que resulta una Constitución que, para serlo, no puede depender en su validez de norma positiva alguna; tampoco de la voluntad del constituyente‖. JOSÉ AFONSO DA SILVA, Poder Constituinte e Poder Popular: estudos sobre a Constituição, 2000, pág. 67, por sua vez, considera que o poder constituinte é o poder que cabe ao povo de dar-se uma constituição, consistindo na mais alta expressão do poder político, porque traduz-se numa energia capaz de organizar política e juridicamente a Nação. Na concepção holística de CARLOS AYRES BRITTO, Teoria da Constituição, 2003, p. 24, há dois poderes que tudo podem: Deus no céu – dá início à criação do mundo em geral, a natureza e os seres humanos - e o Poder Constituinte na terra, que concebe a génese do mundo jurídico e prescreve o modo pelo qual receberá seus infinitos complementos. Acredita, pois, que o poder constituinte significa o poder de constituir a Constituição, que acaba por ser o poder de constituir o Estado e o poder de dar início à montagem do ordenamento jurídico do povo e do Estado mesmo. O mestre PAULO BONAVIDES, Teoria do Estado, 2003, p. 268, ensina que o poder constituinte é poder primário, de ocorrência excepcional, que se exercita para criar a primeira Constituição do Estado ou as Constituições que posteriormente se fizerem necessárias. Para GOMES CANOTILHO, op. cit., p. 65, perante uma multiplicidade de conceitos e definições, o poder constituinte se revela sempre como uma questão de ―poder‖, de ―força‖ ou de ―autoridade‖ política que está em condições de, numa determinada situação concreta, criar, garantir ou eliminar uma Constituição entendida como lei fundamental da comunidade política.

139 Para MÜLLER, Fragmento (sobre) o Poder Constituinte do Povo, cit., pág. 32, o poder constituinte não é uma norma positivamente formulada no início até o fim, mas uma norma aceitável como princípio constitucional rico em conteúdos, no quadro dessa tradição e desse tipo de Constituição. Não é uma norma materialmente vazia, mas um modelo de ordenamento materialmente determinado, cujos elementos materiais actuam de modo co-normativo, conforme a concretização defensável no quadro do Estado de direito. Na sua opinião, não corresponderia a uma norma que reflecte uma decisão voluntarista pura, mas uma decisão cujos elementos materiais se inserem nesse caso complexo da legitimação do poder estatal.

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normativa por cima dos âmbitos de vigência do Estado nacional, até o presente típicos

para esse círculo constitucional‖

140

.

O poder constituinte encerra

141

um sistema de princípios ao exercício do

poder político

142

, garantindo ao ordenamento jurídico coerência, coesão e harmonia

(princípio da segurança jurídica). O produto do exercício do poder constituinte formal (a

Constituição escrita) estabelece que o exercício da soberania popular é limitado pelo

próprio texto constitucional, pois o poder do povo ou dos seus representantes será

exercido nos limites da constituição

143

. Se o poder constituinte é anterior e posterior ao

procedimento de generalização excessiva na construção dos princípios constitucionais, é

porque ele só pode também ser princípio. Apesar de não carecer de materialidade, uma

realidade física e social, o poder constituinte é essencialmente uma expressão de

linguagem e, geralmente, como expressão nos diplomas constitucionais, um texto

escrito

144

.

É limitado pelos princípios constitucionais substantivos – princípios

axiológicos fundamentais e princípios políticos fundamentais – e é densificado pelos

princípios constitucionais instrumentais

145

. Assim como os princípios, o poder

constituinte não se coloca além ou acima do Direito. É, pois, metaprincípio

constitucional, pois consiste em princípio geral instrumental de consolidação dos

princípios

146

que refletem os valores jurídicos dominantes na comunidade que

consolidam uma Ordem Jurídica que se inicia através da Constituição.

Em suma, o poder constituinte consiste numa confluência de princípios

constitucionais estruturantes

147

que buscam sua justificativa axiológica e sua raison

d´être operacional em outra norma, não de hierarquia superior, porém de mais alargado

140

Cfr. Fragmento (sobre) o Poder Constituinte do Povo, cit., pág. 115. 141

Impende, pois, salientar a lição de CARLOS AYRES BRITTO, que entende o poder constituinte como um princípio que encerra o fundamento normativo do poder governamental, mas que não se exaure na Constituição que edita; continua presente mesmo após o exercício do poder constituinte formal, podendo gestar quantas Constituições quiser a qualquer tempo.

142 Cfr. GOMES CANOTILHO, Direito…, cit., pág. 71.

143 A Constituição da República Portuguesa estabelece no art. 3.º, nº 1, que ―a soberania, una e indivisível, reside no povo, que a exerce segundo as formas previstas na Constituição, enquanto a Constituição Brasileira prevê no parágrafo único do art. 1.º que ―todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou directamente, nos termos desta Constituição‖.

144 Fragmento (sobre) o Poder Constituinte do Povo, cit., pág. 19. 145 Cfr. GOMES CANOTILHO, op., cit., pág. 257.

146 RICARDO LOBO TORRES, A metamorfose dos direitos sociais em mínimo existencial, 2003, pp. 21 e ss., denomina de princípios estruturais, aqueles que expressam as decisões fundamentais configuradoras da Constituição, que visam dar a conformação política, económica e social do Estado, traçando-lhe o rumo e a finalidade.

147

Para GEORGES BURDEAU, Traité de Science Politique, cit., pág. 181, o poder constituinte ―est la puissance créatrice de l´ordre juridique puisqu´il en fixe les principles et en établit les instruments‖.

50

raio de alcance material

148

e balizam os fundamentos constitucionais expressos na Carta

Política.

Com efeito, o poder constituinte material corresponde ao conjunto de

valores essenciais filosóficos, morais, sociais, jurídicos e económicos que traduzem a

vontade popular, representando as correntes de opinião, a presença organizada ou difusa

dos grupos e seus interesses em confronto

149

. E esses valores, que se encontram no

âmbito axiológico, consubstanciam os princípios gerais, que circundam o ordenamento,

e encontram-se no plano deontológico. Logo, pode-se afirmar que o poder constituinte

material consiste numa norma-princípio que é fonte imediata para a elaboração da

Constituição escrita através do exercício do poder constituinte formal, que traduz a

expressão, no mundo concreto, do poder constituinte material

150

.

As Constituições escritas respondem, portanto, ao plexo de ideias de valores

dominantes na sociedade, positivando-os por meio dos princípios constitucionais, que

apresentam a carga axiológica incorporada ao ordenamento jurídico. Os sobreprincípios

gerais anteriores à decretação da norma consolidariam o princípio geral do poder

constituinte material. O poder constituinte formal, por sua vez, declara e firma a ordem

constitucional, instituindo os princípios constitucionais.

A norma-princípio

151

do poder constituinte material exteriorizada pelo poder

constituinte formal amálgama a regência da comunidade política mediante a instituição

de um poder e a definição do estatuto jurídico

152

. Muitos são os princípios

constitucionais implícitos que fazem parte da sistemática constitucional, mas que não

foram revelados, expressamente, pelos legisladores constituintes.

Logo, consiste o poder constituinte numa norma metaconstitucional, pois

transcende os princípios constitucionais positivados pelo poder constituinte formal e

148 Cfr. AYRES BRITO, cit., p. 170. 149

Entende PAULO BONAVIDES, Teoria do Estado, cit., p. 272, que foi o poder constituinte material ou real, que fez a Constituição da Inglaterra, e tem feito nos Estados Unidos, por meio dos arestos da Corte Suprema, a parte mais considerável da Constituição Americana, aduzindo: ―é o poder constituinte dos juízes e hermeneutas que interpretam a Constituição, e sem o qual o texto promulgado em Filadélfia há mais de duzentos anos estaria fossilizado nas prateleiras de um museu‖.

150 Conforme abalizado escólio de JORGE MIRANDA, o poder constituinte formal confere estabilidade e garantia de permanência e de supremacia hierárquica ou sistemático ao princípio normativo inerente à Constituição material (Teoria do Estado, cit., p. 92).

151 Como lembra RUY SAMUEL ESPÍNDOLA, Conceito de princípios constitucionais, 2002, p. 52, o termo princípio é utilizado, indistintamente, em vários campos do saber humano. Filosofia, Teologia, Sociologia, Política, Política, Física, Direito e outros servem-se dessa categoria para estruturarem, muitas vezes, um sistema ou conjunto articulado de conhecimentos a respeito dos objetos cognoscíveis exploráveis na própria esfera de investigação e de especulação a cada uma dessas áreas do saber. 152 Cfr. JORGE MIRANDA, cit., p. 93.

51

compreende e é limitado, ao mesmo tempo, pelos princípios que norteiam o poder

constituinte material.

No que tange à titularidade, o poder constituinte é exercido pela entidade

que toma a decisão de inflectir a ordem preexistente e assume a inerente

responsabilidade histórica de determinar o novo conteúdo de uma Constituição

153

, que

poderá ser através de um grupo minoritário, uma aristocracia ou oligarquia, uma única

pessoa, numa monarquia absoluta. Numa sociedade democrática, o Poder Constituinte

pertence ao povo, ainda que este venha a ser indiretamente exercido por intermédio de

representantes políticos. Entretanto, não há de se confundir o titular do poder

constituinte com o seu agente que é órgão diretamente elaborador da Constituição do

Estado - é quem se investe no poder constituinte formal, ou seja, há investidura e não

delegação de poder. A Assembleia Nacional Constituinte, órgão coletivo e agente do

Poder Constituinte, é, pois, designada a estabelecer uma Constituição, fielmente,

tradutora da soberana vontade popular. O poder da Assembleia Nacional Constituinte,

agente da soberania popular

154

, se esgota, mas o Poder Constituinte permanece com o

povo. A obra editada então pelo agente deve ser aceita pelo povo, quando sujeita à sua

manifestação de vontade através de referendo popular, ou tacitamente quando lograr-se

obter eficácia ao ser colocada em prática

155

.

Com efeito, não há cotitularidade do poder constituinte entre o povo e o

governo, pois o seu titular só poder ser o povo, como bem lecciona GOMES

CANOTILHO, que o concebe como uma grandeza pluralística, formada por indivíduos,

associações, grupos, igrejas, comunidades, personalidades, instituições, que agregam