3. Delimitação do objeto da investigação
3.3. Delimitação da expressão Estado Constitucional Democrático
3.3.1. Estado Constitucional Democrático e ensino obrigatório
3.3.2.3. Usurpação do poder constituinte e democracia participativa responsável
Etimologicamente, usurpar deriva do termo latino ―usurpo‖, que significa
usar, servir-se, valer-se ou gozar de algo sem direito, de modo indevido
174.
Impende consignar que o exercício do poder constituinte formal pode ser
usurpado
175quando houver desrespeito por quem se investiu de exercer o poder
constituinte formal (assembleia constituinte) em dissonância com os interesses do seu
titular (o povo). A usurpação decorre, portanto, do exercício indevido do poder
constituinte, cuja legitimidade assenta sobre a vontade dos governados e tendo por base
o princípio democrático da participação, apresentando uma extensão tanto horizontal
como vertical, que permite estabelecer a força e intensidade com que ele escora e
ampara o exercício da autoridade
176.
Sucede, pois, nada impede que uma assembleia constituinte, eleita para
funcionar apenas durante certo período, delibere prorrogar a sua sessão ou que delibere
por assumir a plenitude dos poderes legislativos do Estado
177, entretanto, ao alterar as
174Cfr. ANTÓNIO HOUAISS e MAURO DE SALLES VILAR, Dicionário Houaiss da Língua
Portuguesa, 2003, p. 3646.
175
PAULO BONAVIDES, cit., pp. 122-23, considera que houve usurpação do poder constituinte na Revolução Francesa, vez que ―a burguesia revolucionária generalizou portanto aquilo que, de natureza, na ocasião de seu advento, definia apenas um interesse de classe ou uma ideologia. Assim sucedeu também com a liberdade, a igualdade e a democracia, o Estado de Direito, hipostasiados a todo o género humano, e aconteceria depois com o poder constituinte da nação, apresentado como o único legítimo, mas trazendo nada menos que o ascendente privilegiado e governante da burguesia, uma classe convertida já em classe dominante. Seu poder inculcava a abstrata anuência de toda a coletividade, cuja representação ela de certo modo usurpava‖.
176 Ensina PAULO BONAVIDES, op., cit., p. 138, que se a extensão horizontal se mede pela maior ou menor amplitude do colégio de cidadãos que decide sobre matéria constituinte ou elege representantes a uma assembleia constituinte, enquanto a vertical permite mensurar os distintos graus de participação dos governados: primeiro, o poder decisório sobre a Constituição, mediante referendum ou distintos meios plebiscitários.
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regras orgânicas e processuais que o precederam, a assembleia
178estará vinculada nas
novas regras de direito que ela venha a editar
179.
Não é por menos que, quando do exercício do poder constituinte formal, a
assembleia constituinte haverá de respeitar um conjunto de procedimentos criados por
ela mesma para a elaboração da Carta Fundamental.
O poder constituinte formal carece, portanto, de uma predeterminação de
formas e processos advindos do poder constituinte material, em face ao princípio da
legitimidade
180.
Há, portanto, princípios anteriores à própria Constituição que precisam ser
respeitados pela assembleia Constituinte na elaboração da Constituição escrita, quais
sejam o princípio da representação, o princípio da soberania popular, o princípio
democrático, entre eles
181.
Nesse sentido, poderíamos até cogitar um possível controle de
transconstitucionalidade, que visaria impedir o acontecimento de vícios do exercício do
poder constituinte formal, como, por exemplo, a usurpação do poder constituinte.
Afirmar-se-ia, então, que o controle preventivo de transconstitucionalidade seria
realizado pelas próprias Comissões que elaborariam a Constituição formal, cada uma
observando a formalidades da votação das normas, bem como suas limitações materiais,
os limites de sua competência, fiscalizando-se mutuamente, tendo a Comissão de
Redação o papel de elucidar o texto tratado. E através do controle repressivo de
transconstitucionalidade, tratar-se-ia de meio de garantir harmonia ao ordenamento
jurídico, após a publicação da norma intransconstitucional (em razão de forma ou
matéria), invalidando-a ou convalidando-a, através, por exemplo de referendo
constituinte.
Entretanto, a concepção de controlo de transconstitucionalidade para evitar
―suposta‖ usurpação do exercício do poder constituinte sucumbe diante à
incondicionabilidade do poder constituinte, que investiu a assembleia constituinte de
178
CARLOS AYRES BRITTO, op., cit., p. 141, considera, inclusive, que a assembleia constituinte pode se auto-rebaixar para Assembleia Constituída, tão logo promulgada a Constituição, que jamais poderá se autopromover para Assembleia Constituinte.
179 Cfr. JORGE MIRANDA, cit., pág. 121 180 Cfr. JORGE MIRANDA, cit., pág. 118. 181
INGO WOLFGANG SARLET, op., cit., p. 69, entende que o poder constituinte é parâmetro da legitimidade ao mesmo tempo formal e material da ordem jurídica estatal, mediante a positivação de determinados princípios e direitos fundamentais, na qualidade de valores e necessidades consensualmente reconhecidos pela comunidade histórica e espacialmente situada.
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elaborar a constituição escrita e poderá mudar os procedimentos formais no momento
em que bem entender, ou do contrário, não estar-se-ia tratando de poder constituinte
182.
Mas a partir da alteração das normas procedimentais, um novo arcabouço pré-
constitucional revela-se e se impõe à assembleia constituinte que o preconizou. E tantas
serão as normas procedimentais que a assembleia constituinte vier a adoptar, tantas
deverão ser respeitadas.
Com efeito, não se cogita aqui uma teoria procedimental do poder
constituinte
183, mas afirma-se que os membros de uma assembleia constituinte têm que
seguir princípios que legitimam as suas atuações ou do contrário, estar-se-ia cogitando
numa delegação do exercício do poder constituinte: os deputados constituintes eleitos
decidem de acordo com seus interesses o texto da nova carta
184.
Uma norma constitucional que nasce eivada de vícios em face da usurpação
do poder constituinte formal
185por parte de membros que compõe uma assembleia
constituinte (v. g., a norma não foi votada pela assembleia constituinte e foi incluída por
um membro da assembleia constituinte após o texto já ter sido encaminhado para
publicação pelo Diário Oficial), só pode ser convalidada em face da materialização do
princípio da legitimidade
186.
As vias de usurpação e manipulação da Constituição Federal Brasileira de
1988 são identificáveis. Pela primeira vez na história do Constitucionalismo Brasileiro,
182
Para CARLOS AYRES BRITTO, op., cit., pág. 168, nenhuma norma constitucional originária pode dispor acerca do processo de elaboração de outra igualmente originária, já que todas elas nascem no mesmo instante. Para o autor, esse é uma das características centrais da Constituição: o já nascer com sua unidade formal assegurada em sua plenitude. Uma vez que não é a Constituição que principia com o Ordenamento, mas o Ordenamento que principia com a Constituição, pode-se concluir que as normas- princípio da Constituição têm como fonte imediata a norma nuclear que atesta o exercício do Poder Constituinte.
183 Afirma FRIEDRICH MÜLLER, op., cit., pág. 44, que o poder constituinte significa o poder de decidir efetivamente sobre a instituição da Constituição que não pode reivindicar sua legitimidade a partir de razões procedimentais (teoria procedimental da constituição). Faz-se oportuno frisar a opinião de FRIEDRICH MÜLLER, ao sustentar que o poder constituinte no pleno sentido do termo, maciço e real, não mais metafísico, seria o poder do povo de constituir-se, vez que a constituição de si mesmo não se faz por meio da redação e subscrição de um papel chamado ―Constituição‖. Considera que o poder constituinte seria real somente se os poderes constituídos não fossem exercidos por outros, mas pelo poder constituinte, pois não haveria poder constituinte do povo onde o poder contempla o povo em alienação; onde o povo não encontra a si mesmo, mas apenas a violência de um Estado que mantém um povo para si.
184 Se os princípios carregam acentuado grau de imperatividade, exigindo o respeito as condutas que impõem, o que denota o seu caráter normativo, consequentemente, qualquer ato que o confronte será inválido.
185 Para PAULO BONAVIDES, op., cit., pág. 347, a crise da estatalidade social no Brasil não é a crise de uma Constituição, mas a da Sociedade, do Estado e do Governo; em suma, das próprias instituições por todos os ângulos possíveis.
186Considera FRIEDRICH MÜLLER, op., cit., pág. 26, que ―uma associação se constitui realmente pela práxis, não pelo diploma; não por meio da entrada em vigor, mas pela vigência: diariamente, na duração histórica‖. In Fragmento (sobre) o Poder Constituinte do Povo, cit. pág. 26.