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Professora 5: Então clinicamente não tem nada Mas e psicologicamente?

4.2.1 A saúde como potência de vida: uma alternativa à medicalização

Importante destacar que essa discussão considera a complexidade em que as questões abordadas estão imersas, tendo em vista que se constituem em meio a uma rede de relações que envolvem aspectos sociais, políticos, econômicos. Os pontos estão emaranhados entre si, sendo impossível de serem tratados de modo estanque ou linear, tampouco de forma reducionista ou individual.

Nos reportando ao que discutimos no tópico anterior, podemos dizer, então, que o adoecimento surge mediante “dificuldades que o organismo encontra para dar respostas às demandas que seu meio lhe impõe” (CAPONI, 2003, p. 57), o que pode vir a produzir padecimento, dor e sofrimento. Mas como dar respostas às demandas que o meio nos impõe? Como enfrentar os desafios da vida sem sucumbir ao sofrimento e ao padecimento? Longe de pretendermos responder a essas questões como forma prescritiva, elas atuarão como gatilhos disparadores

36 Trecho da música “Balada do Louco” de autoria de Arnaldo Baptista e Rita Lee, que faz parte de

para pensarmos acerca da medicalização alternativa a qual muitos têm recorrido para superar o adoecimento.

Para além de ser compreendido como o uso de medicamentos ou o exercício da medicina, Freitas e Amarante (2015) definem o fenômeno, ao qual nomeiam de medicalização da existência ou medicalização da vida cotidiana, como o processo de patologização dos desafios e sofrimentos decorrentes das diversas experiências físicas e/ou emocionais inerentes à existência humana. Os referidos autores esclarecem, ainda, que a medicalização se trata de um fenômeno moderno que assume uma polissemia de sentidos.

A medicalização surge enquanto objeto de estudo com o fim da Segunda Guerra Mundial, sendo problematizada a partir do trabalho de estudiosos, cujos principais representantes podemos citar: Illich, Conrad, Freidson, Parsons, Szasz e Zola Guerra (SILVA, 2018; FREITAS; AMARANTE, 2015).

De acordo com Freitas e Amarante (2015), a medicalização se respalda em bases científicas e ideológicas, visando transpor o que é da ordem social, política e cultural para o que é da ordem médica, com a promessa de solução definitiva para as doenças incuráveis, incluindo os sofrimentos psíquicos.

A relação entre medicalização e sofrimento psíquico ocorre com a disseminação do discurso de que “os problemas ora chamados problemas mentais podem e devem ser curados por drogas” (FREITAS; AMARANTE, 2015, p. 14, grifos dos autores). Nesse contexto, ocorre a propagação das psicoterapias e o surgimento de medicamentos psicofármacos, disseminados pela população como solução definitiva para problemas psíquicos tidos até então como incuráveis, fortalecendo, assim, a aliança entre a indústria farmacêutica e a psiquiatria.

A partir do fim da Segunda Guerra Mundial, a sociedade é afetada pelo impacto do que passou a ser considerada uma verdadeira revolução terapêutica: o surgimento das terapias com antibióticos e hormônios, a descoberta de vacinas e, muito particularmente, a consagração triunfal da indústria farmacêutica (FREITAS; AMARANTE, 2015, p. 17).

Além da problemática desencadeada pela aliança entre a indústria farmacêutica e psiquiatria, com base nos estudos de Freitas e Amarante (2015), podemos citar

outras problemáticas decorrentes da medicalização, como: a perda de autonomia dos sujeitos; a transformação de comportamentos sociais em doenças mentais; e a propagação de medicamentos psicofármacos.

Tendo em vista que, ao longo dos anos, a sociedade passa a recorrer cada vez mais à medicina como artifício para solução de seus problemas, sejam eles de origem física, psíquica ou existencial, acaba por criar uma relação de dependência em que o discurso medicalizante e as práticas discursivas afins, pautados numa perspectiva biomédica, vão se naturalizando e se entranhando na rotina cotidiana, ganhando uma evidência nunca antes experimentada (FREITAS; AMARANTE, 2015).

Também, em Deleuze (2013), percebemos uma aproximação com essa questão:

Existe um problema muito importante na medicina, que é a evolução das doenças. Com certeza há novos fatores externos, novas formas microbianas ou viróticas, novos dados sociais[...] A descoberta das doenças de “estresse”, onde o mal não é mais engendrado por um agressor, mas por reações de defesa não específicas que se precipitam ou se esgotam. Depois da guerra, as revistas de medicina estavam cheias de discussões sobre o estresse das sociedades modernas e a nova classificação de doenças se podia extrair daí [...] É impressionante que esse novo estilo de doença coincida com a política ou a estratégia mundiais (DELEUZE, 2013, p. 170-171)

Ainda nos tempos atuais, o poder da medicina continua a se expandir, como também se incumbe de ditar modos de vida, exercer o controle social37, além de moldar as subjetividades38. Não seria esse um claro exemplo de elemento constitutivo da “sociedade do controle” como nos sinaliza Deleuze? Esse autor afirma que “estamos entrando nas sociedades de controle, que funcionam não mais por confinamento, mas por controle contínuo e comunicação instantânea” (DELEUZE, 2013, p. 220).

O poder, ou melhor, as práticas ou relações de poder exercidas pela medicina, como afirma Foucault (2010), são reais e operam via diagnósticos, tratamentos, ações

37 A medicina como agente de controle social foi uma concepção proposta pelo sociólogo norte

americano Talcott Parsons, uns dos pioneiros nos estudos da medicalização cujos principais estudos datam das décadas 1950-1960 (SILVA, 2018).

38 Segundo Deleuze (2013, p.145) “não há sujeito, mas uma produção de subjetividade”, assim, o

preventivas, promessas de cura dos desvios e submissão dos indivíduos ao papel de “doentes”, contribuindo para a diminuição de sua autonomia. Assim, nesse contexto de exercício de poder medicalizante da vida, os “doentes” vão sendo

produzidos em massa:

Produzir doentes e construir seu papel na sociedade são mecanismos fundamentais para a reprodução econômica e política do sistema, pois tal produção gera lucros e garante poderes não apenas aos profissionais da saúde, mas também para outros agentes políticos-econômicos (FREITAS; AMARANTE, 2015, p.19, grifo dos autores).

Nesta perspectiva de produção de “doentes”, reflexo da medicalização para garantir a reprodução econômica e política do sistema, os comportamentos tidos como indesejáveis e desviantes das normas sociais são transformados em doenças mentais. Com base no modelo biomédico, as ditas doenças mentais são justificadas pela existência de desequilíbrios químicos no cérebro, disfunções psíquicas e/ou forças psíquicas inconscientes.

As tradicionais fronteiras entre normalidade e o patológico foram desaparecendo: novos comportamentos e formas de sofrimento psíquico passam a ser incorporados ao campo da assistência em saúde, novos fenômenos começam a constituir o campo da psiquiatria, assim como novas profissões são criadas para a intervenção nos comportamentos e experiências psíquicas (FREITAS; AMARANTE, 2015, p. 31).

Essa situação de enquadramento de comportamentos sociais como categorias relacionadas aos transtornos e distúrbios mentais, pode ser claramente percebida pela expansão do quantitativo de diagnósticos incorporados ao CID – 10 (Classificação Internacional de Doenças)39 e ao DSM (Manual Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos Mentais)40.

39 Vale destacar que, de acordo com Silva (2018), os fatores desencadeadores de doenças

relacionados aos campos da saúde mental e do trabalho, foram incluídos somente a partir da sexta edição do CID, no ano de 1948.

40Pode-se observar o aumento de códigos inseridos no Manual Diagnóstico e Estatístico dos

Transtornos Mentais, com base no comparativo feito por Silva (2018), que indica a presença de 180 códigos no DSM-II, em 1968 e a expansão para 450 códigos no DMS-V, última versão do manual datada de 2014. Cabe ressaltar que esse manual divide opiniões entre estudiosos. Segundo Ferreira (2013), alguns afirmam que ele tem o papel de uniformizar as informações e contribui para a adoção de procedimentos, enquanto outros o consideram um método reducionista de diagnóstico, que não condiz com a complexidade humana.

Na busca pelo tratamento e solução para os acometimentos mentais, propaga-se o uso de antipsicóticos, antidepressivos e ansiolíticos, impulsionado pela aliança entre medicina e indústria farmacêutica que, com interesse visivelmente econômico, encarrega-se de criar cada vez mais drogas inovadoras e produzir cada vez mais patologias e consequentemente, novos doentes.

Em relação à propagação do uso de medicamentos, encontramos já em 1969, estudos acerca da utilização de ansiolíticos que apontavam para problemáticas que foram se intensificando ao longo dos anos, conforme podemos ver a seguir:

Pesquisas da época indicavam que nada menos que 15 a 25% da população já haviam feito uso de algum tipo de drogas tranquilizantes. Estudos sobre o uso dessas drogas demonstram que apenas cerca de um terço das prescrições eram destinadas a pessoas com transtornos mentais de fato diagnosticados. A maior parte das prescrições era para pessoas com situações de mal-estar social, de crises naturais da vida. [...] o uso dessas drogas está muito associado às mulheres, que seriam mais propensas a experiências de ansiedade/depressão. De cada três prescrições, duas são feitas para mulheres (FREITAS; AMARANTE, 2015, p. 101).

Além de nos chamar a atenção o fato de que para a época os dados de aumento do consumo de drogas pela população serem alarmantes, também nos preocupa o fato de ter-se identificado o maior uso de ansiolíticos entre mulheres41.

A situação é grave e tem raízes profundas que perpassam as dimensões sócio- histórico e cultural. Vivemos numa sociedade patriarcal, com predominância e valorização do masculino. Considerando que a constituição da sociedade ocidental sofreu forte influência de três vertentes - grega, judaica e cristã - à mulher é relegado o papel de subalterna, frágil, submissa, dotada de capacidade inferior denotando ser desnecessário o seu acesso ao conhecimento (CHASSOT, 2004).

Em suma, a concepção de mulher é socialmente construída enquanto ser biológico e intelectualmente inferior, e somos levadas a nos constituir nesses moldes como se fosse algo natural, e sem às vezes nos darmos conta disso, considerando

41 “Por que as mulheres têm que se entupir de calmante? Que lugar é esse que as mulheres têm sido colocadas que ao invés de falar elas se dopam?” indagações feitas pelo professor Jair Ronchi

Filho, que compôs a banca de qualificação dessa pesquisa, no sentido de que essa questão fosse mais explorada, principalmente devido a maioria dos participantes da pesquisa ser composta por mulheres.

também que “há poucas mulheres que têm consciência dos problemas de alienação feminina, e menos mulheres ainda organizadas em movimentos feministas, e, no entanto, o problema tende a afetar todas as mulheres” (GUATTARI; ROLNIK, 2000, p.123), vamos ajudando a perpetuar e a disseminar o ideário misógino e machista.

O perfil de cidadão cunhado pelo projeto da modernidade, que trata-se do homem, branco, proprietário, letrado e heterossexual (CASTRO-GÓMEZ, 2005), disseminado e afirmado fortemente até nossos tempos atuais, exclui todos os demais, inferiorizando e discriminando todos (não só as mulheres, como também negros, índios etc.) que escapam a esse perfil. Portanto, não é de se estranhar que nós mulheres tenhamos o nosso lugar de fala (e também de ser, atuar, sentir...) impedido, desconsiderado, infantilizado.

As mudanças, em relação à condição feminina na sociedade, vão acontecendo a passos vagarosos, conforme o trecho extraído da obra As três Ecologias, que, apesar de ter sido publicado há 30 anos, permanece bastante atual:

Em escala global, a condição feminina está longe de ter melhorado. A exploração do trabalho feminino, correlativa à do trabalho das crianças, nada tem a invejar aos piores períodos do século XIX! E, no entanto, uma revolução subjetiva ascendente não parou de trabalhar a condição feminina durante estas duas últimas décadas. Ainda que a independência sexual das mulheres, relacionada com a disponibilidade dos meios de contracepção e aborto, tenha crescido de forma bastante irregular, ainda que o crescimento dos integrismos religiosos não cesse de gerar uma minoração de seu estado, alguns indícios levam a pensar que transformações de longa duração [...] estão de fato em curso (designação de mulheres para a chefia de estado, reivindicação de paridade homem- mulher nas instâncias representativas etc). (GUATTARI, 2012, p. 14)

De fato, a mulher assume outros papéis na sociedade, principalmente a partir do período de modernização, momento que adentra mais fortemente o mercado de trabalho, ocupando profissões como é o exemplo do magistério42. Contudo, é sabido que o acesso à esfera pública e ao mundo do trabalho desencadeia um acúmulo de

42 O magistério se tornou majoritariamente feminino, num processo conhecido por feminização do

magistério, iniciado no final do século XIX em vários países ocidentais, que, segundo Nogueira e Schelbauer (2007), deu-se por vários fatores como as relações econômicas e políticas, as reivindicações femininas por direitos ao acesso à instrução e a oportunidade de trabalho remunerado, bem como à modernização da sociedade e ao processo de higienização da família. Essa predominância se mantém até os tempos de hoje. Dados do último Censo do Professor de 2009, realizado pelo Instituto Nacional de estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), mostram que 81,5% dos profissionais da educação básica brasileira eram do sexo feminino.

atividade pelas mulheres, tendo em vista que permanece como feminina a “obrigação” da realização de atividades domésticas. Vejamos abaixo um trecho da conversação estabelecida na formação acerca da condição feminina:

Formadora 7: Muitas de vocês são mulheres, acredito que muitas são

mães [...] mulher tem uma pressão social por cuidar de todos, né? Cuida do marido, dos filhos, da casa, dos alunos, da avó doente, da sogra, do sogro e vai cuidando de todo mundo...

Professora 17: E em hora nenhuma se cuida