• Nenhum resultado encontrado

A singularidade humana e o papel do outro, na constituição do homem como

2.1 A FORÇA DO LUGAR: escola, comunidade, ideologia e contradição

2.1.2 A singularidade humana e o papel do outro, na constituição do homem como

Ao voltar nosso olhar às questões de singularidade e subjetividade, buscaremos estabelecer interlocuções com alguns autores, a propósito: Vigotski, Freire, Maturana e Morin. Com isso nosso texto, momentaneamente, apresenta uma nova abordagem, considerando a cultura num enfoque Vigotskiano, em que é vista como um processo que acontece no resultado da interação entre o sujeito e o meio social. No entanto, pensamos ser importante considerarmos tais autores, na intenção de dialogarmos sob vários enfoques e aspectos o tema em estudo. O que nos permite analisar diferentes óticas e conceitos que se referem à constituição do humano, sua subjetividade e sua culturalidade.

Assim, para falarmos de “pessoas em constituição”, abordamos campos genéticos pesquisados por Vigotski: a sociogênese e a microgênese. Enfatizamos aqui, a sociogênese, que em síntese refere-se à história cultural de onde o sujeito encontra-se inserido, ou seja, do seu meio, da sua interação social e a microgênese, que apresenta aspectos microscópicos do desenvolvimento do sujeito, sua própria história, sua singularidade.

Seus personagens são homens e mulheres singulares – pessoas15 em

constituição – que, em suas relações com os acontecimentos no interior dos quais se desenrola a vida, agem desta ou daquela maneira. (...) Singularidade e significação não se oferecem como comportamentos à observação direta. Antes inscrevem-se nos gestos e nas posturas dos indivíduos, deixando marcas em seus corpos. Entremeiam-se a suas palavras e a seus silêncios, deixam indícios em seus dizeres. Marcas e indícios significam e, mais do que explicação, requerem compreensão. (POLITZER, 1977, p. 107).

Neste sentido, é interessante dizer que para Vigotski, o plano social é bem mais amplo que o da cultura. Ele mesmo afirma: “tudo o que é cultural é social”. Para SIRGADO (2000, p.53): “(...) Anterior à cultura, o social adquire dentro dela formas novas de existência. Assim, o social é, ao mesmo tempo, condição e resultado do aparecimento da cultura”.

Colocamos aqui os termos “cultura” e “social”, com a intenção de compreendermos o desenvolvimento humano como resultado de um processo de mediação e interação, para além da socialização, de modo a possibilitar ao indivíduo acrescer em si, para os outros e para si, este outro como condição de desenvolvimento.

Portanto, o desenvolvimento cultural é processo pelo qual o mundo adquire significação para o indivíduo tornando-se um ser cultural. Fica claro que a significação é a mediadora universal nesse processo e que o portador dessa significação é o outro, lugar simbólico da humanidade histórica. (SIRGADO, 2000, p. 66).

É oportuno, então, pensarmos a escola enquanto este espaço plural de mediação entre o cultural e o social, entendendo-a como uma espécie de palco onde os atores, protagonistas ou não, são autores de seus processos histórico-culturais constituídos aqui nas relações entre os sujeitos e o meio.

Se a singularidade humana e sua significação são aspectos a serem cuidadosamente observados e extraídos do comportamento explícito e implícito do humano, concordamos com VIGOTSKI (1986, p.51): “(...) Sem a pessoa, não se pode entender o comportamento da pessoa, pois é ela e o convívio com ela que nos possibilitará compreender e conhecer suas individualidades, que ditas ou não, serão por nós percebidas”. Tornamos-nos nós mesmos, também, através dos outros. É oportuno salientarmos que ao passo que exercitamos a

15 Vigotski emprega o termo pessoa para referir-se à personalidade, à singularidade que vai se constituindo nos

indivíduos na trama de suas relações sociais. Ele destaca: Todas as funções superiores desenvolvem-se em filogenia, não de modo biológico, mas social.

experiência de compreender o outro, vamos também compreendendo-nos. No exercício da faculdade da convivência, é oferecido aprender, inusitadamente, “olhando” o outro, sobre o próprio eu, sobre a própria evolução biológica, sobre a própria evolução sócio-cultural, visto agora pelo viés da escola. Sem esquecer, contudo, que é preciso estar atento ainda ao que o outro e o meio não dizem.

Acreditando na escola como instância do processo de interação social, espaço de colaboração e de desacomodação, onde, em cooperação, o ser vai se constituindo, abordamos também, como fundamental, o papel do professor, sua relação e inter-relação com o educando na constituição do humano e do conhecimento.

O paradigma esboçado sugere, assim, um redimensionamento do valor das interações sociais (entre os alunos e o professor e entre as crianças) no contexto escolar. Estas passam a ser entendidas como condição necessária para a produção de conhecimentos por parte dos alunos, particularmente aquelas que permitam o diálogo, a cooperação e a troca de informações mútuas, o confronto de pontos de vistas divergentes e que implicam a divisão de tarefas nas quais cada um tem uma responsabilidade que, somadas, resultarão no alcance de um objetivo comum. (REGO, 1994, p. 97).

Dessa maneira, a heterogeneidade do grupo passa a ser otimizada, ou seja, fator

relevante para a significação da aprendizagem, sendo vista como um qualitativo no processo de construção de conhecimento. Para Vigotski, elaborar conhecimento implica uma ação partilhada, considerada assim, imprescindível para as interações na sala de aula e na escola, pois quanto maior forem as diferenças, mais significativas serão as aprendizagens. Dizer que a aprendizagem torna-se ainda mais significativa na relação com o contexto de diferenças à que somos expostos, nos possibilita perceber que existem vínculos de afetividade no processo de aprendizagem no contexto multiétnico, onde além do valor afetivo, o sentido estético do lugar consegue marcar no imaginário dos sujeitos as diferentes identidades do local.

Assim, não se pode deixar de considerar que a sociedade e como parte dela, a escola, a partir de suas múltiplas relações, implicadas em seu que fazer, caracteriza-se como uma instituição social que participa do processo de constituição de identidades e de singularidade. É importante então, compreender o sentido do social e do cultural no comportamento e no desenvolvimento do indivíduo, sobretudo, entendendo o que é inato e obra do indivíduo, e o que é produto da ação do meio social e cultural em que se está inserido. Este processo de

interação social sugere que o indivíduo, ao passar a pertencer a certo meio, sofra uma espécie de adaptação às condições desse novo ambiente. Neste sentido, Sirgado (2000, p.52), nos coloca que Vigotski inverte a direção do vetor na relação indivíduo-sociedade. No lugar de nos perguntar como a criança se comporta no meio social, diz ele, devemos perguntar como o meio social age na criança para criar nela as funções superiores16, de origem e natureza sociais.

Olhando por esta vertente, vemos legitimar-se o papel da escola, enquanto meio social e fator mediador na constituição cultural do homem. A escola pode possibilitar, então, que em seus espaços de socialização e interação social, seja possível e passível o desenvolvimento de um processo de transformação e apropriação das relações sociais experimentadas no âmbito escolar, sem tampouco retirar do indivíduo sua singularidade e subjetividade.

Abordamos ainda SMOLKA e GÓES,

O que parece fundamental nessa interpretação da formação do sujeito é que o movimento de individuação se dá a partir das experiências propiciadas pela cultura. O desenvolvimento envolve processos, que se constituem mutuamente, de imersão na cultura e emergência da individualidade. Num processo de desenvolvimento que tem mais caráter de revolução que de evolução, o sujeito se faz como ser diferenciado do outro, mas formado na relação com o outro; singular, mas constituído socialmente e, por isso mesmo, numa composição individual, mas não homogênea. (1993, p. 10).

Sabemos, contudo, que a relação indivíduo e sociedade é extremamente complexa. É natural a influência da sociedade para com o indivíduo; todos sentimos os efeitos da individuação da própria sociedade, mas, ao mesmo tempo, somos “livres” para interferir nesse processo de individuação das subjetividades. O indiscutível nisso, é que todos os indivíduos tenham oportunidade de intervenção nesse processo, sendo ainda capazes de problematizá-lo para transformá-lo.

De acordo com FREIRE (1996, p.111): “(...) nem somos, mulheres e homens, seres simplesmente determinados nem tampouco livres de condicionamentos genéticos, culturais, sociais, históricos, de classe, de gênero, que nos marcam e a que nos achamos referidos”.

16 Funções superiores – “relações internalizadas de uma ordem social, transferidas à personalidade individual e

Assim, se o indivíduo não é de todo determinado, nem tampouco totalmente livre, e se como sujeitos livres fomos capazes de construir prisões, podemos então dizer, que as escolas e a sociedade orientam, também, para a realização de utopias pessoais na constituição do sujeito. Trabalhemos, então, para que todos os sujeitos em interação, na constituição da sua subjetividade e na composição de seu conhecimento, possam ao internalizar as experiências fornecidas pela heterogeneidade de culturas, em interação social, organizar seus próprios processos mentais no seu desenvolvimento histórico cultural, realizando a conversão do social em pessoal, sem perder sua singularidade.

Não obstante, seria ingênuo pensarmos que a constituição dos sujeitos em interação com o meio não resultasse, também, em experiências conflituosas. São justamente esses riscos e desafios, presentes nas relações humanas e no multiculturalismo que se propõe enfrentar mediatizados pelos campos da diversidade cultural e das diferenças que nele se atravessam, considerando, para isso, a possibilidade de articulação das diferenças, propiciando a negociação e o enfrentamento das dificuldades e dos impasses que podem surgir nos encontros e nas relações interculturais. MATURANA também nos fala sobre as tensões e conflitos culturais:

Uma cultura é, para os membros da comunidade que a vivem, um âmbito de verdades evidentes que não requerem justificação e cujo fundamento não se vê nem se investiga, a menos que, no devir dessa comunidade, surja um conflito cultural que leve a tal reflexão. Esta última é a nossa situação atual. (apud BESKOW, 2006, p.149).

Pensamos ser pertinente, neste momento, trazer ao texto a linha de pensamento da aprendizagem e da constituição humana mediatizada pelo meio social, a vertente do multicultural numa perspectiva pós-moderna, que num enfoque de intertransculturalidade nos coloca a ideia dos Círculos de Cultura17, onde num espaço de trocas interculturais podem contribuir para alterar significativamente as práticas educativas nas escolas e nos demais espaços de constituição humana.

Assim, os Círculos de Cultura, como espaços privilegiados de encontros culturais, possibilitam através de suas atividades – potencializando a realização de pesquisas, de

17 O Círculo de Cultura é, para nós, esse lugar “de exploração coletiva de experiência vivida” (GALVANI), em

que criamos novos “entre-lugares” (BHABHA), novos textos, contextos e meta-contextos, tornando o currículo da escola mais significativo para alunos, professores e demais pessoas envolvidas diretamente ou envolvidas potencialmente. (PADILHA, 2004, p. 250).

eventos populares e comunitários dos mais variados, de reuniões de confraternização reflexiva, de decisões coletivas e de organização de diferentes atividades escolares e comunitárias – (PADILHA, 2004, p.250), o movimento intercultural onde se identificam a subjetividade e objetividade da cultura humana. Nossa intenção aqui é considerar a possibilidade de compreendermos a constituição dos sujeitos, mediatizados pelo meio, numa semelhança da constituição humana que ocorre nos Círculos de Cultura, uma vez que os dois processos utilizam-se das experiências realizadas pelos sujeitos em interação com os meios sociais e círculos de cultura.

Neste sentido, nos propomos aprofundar nossa discussão sobre questões culturais abarcando o viés do multi, intra, inter e transculturalismo, numa expectativa futura de voltar nosso olhar para as questões identitárias, onde possamos perceber e constituir o currículo escolar numa perspectiva intertranscultural, peculiar à educação intercultural.