• Nenhum resultado encontrado

4.1 EDUCAÇÃO MATEMÁTICA E EDUCAÇÃO INDÍGENA

4.1.1 Sonhos possíveis: elo entre as tradições e a modernidade

Existem sonhos dentro de todas as culturas e o problema mais sério que

se coloca é saber quem é que é o decididor desses sonhos. Estão entendendo o

que eu quero dizer? Eu acho que às vezes a gente corre o risco de querer ser, de decidir qual é o sonho que é válido eu acho que não pode inclusive porque muitos desses sonhos que alguns de nós considera sonhos ruins são sonhos que foram introduzidos, são sonhos que são pesadelos do dominador. (FREIRE, 2004, p. 73) [grifo nosso].

Será que já paramos para pensar sobre a legitimidade de nossos sonhos? Será que a escola nos ensina essa lição? Acredito que a escola vem tentando, embora timidamente, promover uma educação ética, discutindo situações de opressão que possibilitem a tomada de decisão e a capacidade de organização e mudança. Contudo, comungamos com a frase de FREIRE (2004): é impossível existir sem sonhos. Penso que seja nosso papel desenvolver uma educação com metodologias que permitam aos ‘oprimidos’ revelarem sua própria

identidade e realidade, capazes de se transformarem em decididores, sobretudo, de seus sonhos.

Quando D’AMBROSIO (2005), nos provoca a pensar sobre educação matemática e etnomatemática, coloca-nos seu propósito que nos leva novamente ao sonho.

Como me vejo como Educador Matemático? Vejo-me como um educador que tem matemática como sua área de habilidades e de competência e as utiliza, mas não como um matemático que utiliza sua condição de educador para a divulgação e transmissão de suas habilidade e competências matemáticas. Minha ciência e meu conhecimento estão subordinados ao meu humanismo. Como Educador Matemático, procuro utilizar aquilo que aprendi como matemático para realizar minha missão de educador. Em termos muito claros e diretos: o aluno é

mais importante que programas e conteúdos. Divulgar essa mensagem é o meu

propósito como formador de formadores. ...atingir essa nova organização da

sociedade é minha utopia. Como educador, procuro orientar minhas ações nessa

direção, embora utópica. Como ser educador sem utopia? (p. 86, 87) [grifo nosso].

Na tentativa de discernirmos sobre a necessidade de estabelecermos limites entre o sonho e a realidade, entre passado, presente e futuro, buscando entender melhor a prática educativa que busca estabelecer elos entre as tradições e a modernidade. Considerando ainda, o aluno como elemento de extrema importância para a escola e para o educador, é que buscamos conhecer um pouco do histórico indígena que ora nos referimos, sobretudo, atentos a voz daquele que tem propriedade para falar. Assim, no primeiro encontro com os alunos indígenas nos propusemos assistir a um vídeo sobre os povos indígenas no Brasil, com o qual fizemos uma importante discussão e, consequentemente, grandes descobertas referentes à comunidade indígena Kaingang, segundo depoimentos emocionados dos próprios alunos.

São grupos indígenas que habitam o sul do Brasil, pertencemos a comunidade do Guarita na região noroeste do RS. Uma comunidade que cresceu muito nos últimos anos, em todos os sentidos e novas conquistas. Sim, eu sou

indígena, tenho orgulho, mas também desvantagens, pois muita parte interessante da nossa cultura já se perdeu, a modernidade traz coisas boas ao nosso povo, mas por outro lado compromete a nossa cultura, desde o primeiro contato com o não índio. (Aluno A, 2008, I encontro) [grifo nosso].

Pode ser caracterizado como um povo que há muitos anos vive no sul do Brasil. A cada dia que passa, o número de indígenas aumenta consideravelmente, mas com o passar do tempo sua cultura vem se perdendo. Somos índios

brasileiros, antes conhecidos por COROADOS, pela maneia que se cortava o

cabelo. Sou índia de uma nova geração, onde muita coisa mudou, o jeito de

pensar e agir, mas nunca o que sou realmente: KAINGANG. (Aluno B, 2008, I

Paralelo ao seu reconhecimento enquanto pertencimento indígena Kaingang, embora mergulhados em um sentimento de orgulho, podemos perceber nos registros acima a consciência da fragilização da cultura indígena, numa espécie de aculturação que esse povo vive por estar em contato direto com uma cultura outra em tempos de globalização. Quando da fala do aluno B, constata-se que a proximidade de culturas diferentes alterou o jeito de agir do indígena, mas não destituiu sua ascendência. No entanto, sua fala ‘somos índios brasileiros’, acusa sua inconsciência sobre ser índio brasileiro, pois, poderia o indígena declarar-se um brasileiro da etnia indígena, de existência anterior a terminologia Brasil. Consideremos a frase de um descendente indígena Krenak, citado pelo professor SCANDIUZZI,

O que precisamos abolir é o termo: índio brasileiro. É uma expressão colonialista, pois passamos a considerar o indígena como um brasileiro, igual aos demais. Eles são cidadãos especiais, tendo sua própria nação, sua língua e culturas específicas. Hoje, no Brasil há em torno de 200 nações indígenas, falando cerca de 200 línguas diferentes. Isto é muito importante sabermos, pois sempre se falou que no Brasil existe apenas uma língua – a portuguesa. ( 2005, p. 187).

Completamos a ideia com a fala dos alunos D e E,

Antigamente chamados de coroados, hoje chamado de Kaingang (kaa = mato ingang = morador), assim conhecidos desde 1882, foram denominados genericamente por Telêmaco Borba, o mais importante estudioso e defensor dos indígenas no século passado. Os Kaingang são povos com muita cultura e boa

parte dela, talvez passe despercebida diante dos olhos dos mais novos (nós), se quisermos tê-la de volta, nós, os mais novos, temos de correr atrás do tempo perdido. Descobrirei somente quem “sou” se um dia descobrir quem foram meus antepassados e passar estas descobertas para as crianças da minha tribo, pois só assim meus filhos terão orgulho de ser um índio Kaingang. (Aluno D,

2008, I encontro) [grifo nosso].

Os Kaingang, em mais de um século de contato com os brancos, receberam e trouxeram muitas coisas novas para nossa sociedade. Essa “importação” de novidades criou uma diferenciação da sociedade Kaingang atual, em relação àquela do início do século ou anterior ao contato com os brancos. No entanto não pode se dizer que a cultura Kaingang é uma “mistura” de elementos “civilizados” com outros índios de antes do contato com os brancos, mas, em contato com as

diferentes etnias, nós utilizamos elementos de fora da nossa cultura, constituindo algo novo a nossa tradição. (Aluno E, 2008, I encontro) [grifo

nosso].

Fábula, perversidade ou possibilidade. Efeitos da globalização que nos fazem repensar sobre as causas e consequências desse movimento. Sem qualquer dúvida, há um critério de utilidade e imprescindibilidade na educação intercultural. A contemporaneidade social e a proximidade territorial dessas culturas, em específico entre índios e não-índios (recorte que nos interessa por ora), nos condiciona à compreensão da real necessidade do

índio conhecer a matemática do não-índio, sob pena de ser enganado pelo branco em suas relações de comércio, por exemplo. Na verdade, a cultura indígena sofre influências em quase todos os aspectos de sua vivência. Analisemos o seguinte:

Sem cobrir sua nudez e sem dominar a língua do branco, o índio

dificilmente terá acesso à sociedade dominante. Mas isso se passa com todas as

culturas. Eu devo dominar o inglês para participar do mundo acadêmico internacional. E, ao participar de uma banca numa universidade tradicional, devo vestir uma beca! Mas jamais alguém disse ou mesmo insinuou que seria bom que eu esquecesse o português, e que eu deveria ter acanhamento e até vergonha de falar essa língua, ou que a roupa que eu uso no meu cotidiano, entre os meus pares, pode ser uma passagem para o círculo dos incidentes do inferno. Mas se faz isso com povos, em especial com os indígenas. Sua nudez é indecência e pecado, sua

língua é rotulada inútil, sua religião se torna “crendice”, seus costumes são “selvagens”, sua arte e seus rituais são “folclore”, sua ciência e medicina são “superstições” e sua matemática é “imprecisa”, “ineficiente” e “inútil”, quando não “inexistente”. Ora, isso se passa da mesmíssima maneira com classes

populares, mesmo não índios. (D’AMBROSIO, 2005, p. 79) [grifo nosso].

[...] se não estamos vestidos e pintados de acordo com nossa cultura, não

somos índios. Se falarmos e agirmos de acordo com os não índios estamos fora da nossa realidade, na realidade estamos sim, mas se ficarmos somente isolados,

fechando os olhos para o que acontece no mundo, ninguém lutará por nós. Pois cada um defende seus interesses e nós é que devemos lutar para garantir nossos direitos, nossa importância. (Aluna F, 2008, I encontro) [grifo nosso].

A globalização como fábula,

O mundo nos apresenta como seres humanos capazes de ir além de nossos limites e medos. Mas nem sempre agimos assim, pois ao mesmo tempo em que ele nos oferece oportunidades, ele também se mostra como algo cruel e misterioso, onde cabe a nós modificá-lo. Esperamos que um dia tudo possa mudar, que as guerras tenham fim, que as injustiças deem lugar a harmonia e compreensão.

Enfim, onde as pessoas de todas as raças e cores conquistem seu espaço.

(Aluno A, 2008, I encontro) [grifo nosso].

A globalização como possibilidade,

No meu ver a educação indígena deve ser parte do sistema de educação global, o que fortaleceria a tradição dos povos indígenas no país. A escola que a gente quer é a escola do prazer, aquela que a criança possa vir todos os dias e nunca sinta vontade de ir embora. (Aluno B, 2008, I encontro).

O mundo se apresenta contemporaneamente severo ainda. Tentamos

acompanhar a globalização, poucos conseguem associar a modernidade com a tradição, mas queremos e precisamos algo mais, para que as novas gerações venham a ter o gosto e o interesse em participar mais. Para que não vejam o ser

índio como uma desvantagem, mas sim, algo pelo qual se tornem mediadores de sua própria cultura. (Aluno C, 2008, I encontro) [grifo nosso].

A globalização como perversidade,

Quanto à globalização, no meu ponto de vista, é uma possibilidade das pessoas conhecerem as culturas de cada povo, diminuindo talvez o preconceito, mas para sermos conhecidos temos primeiro que nos reconhecer, pois o povo que não se reconhece não tem o respeito e o reconhecimento de outras pessoas. (Aluno D, 2008, I encontro).

Os Kaingangs são uma das maiores tribos indígenas existentes no Brasil.

Somos uma tribo que está buscando seu espaço enquanto uma cultura diferenciada. Sou mais um da tribo Kaingang, tentando resgatar o pouco do resto da nossa cultura. (Aluno E, 2008, I encontro) [grifo nosso].

Todavia, perversa, possível ou fábula, a globalização se impõe como fato. É fato também que já a incorporamos. O que precisamos compreender melhor é como trabalhar sob esse novo contexto, de modo que nossas ‘perdas’ sejam passíveis e isentas de discriminação, que não nos descaracterize enquanto sujeitos portadores de cultura e identidade próprias. Sobretudo, de maneira que o convívio nosso se transforme em possibilidades de crescimento recíproco, cada qual com suas ressignificações e adaptações inevitáveis.

Logo, nos perguntamos acerca do papel da escola constituidora, do professor e do indígena frente a essa nova realidade global que atravessa a ação educativa complexa do contemporâneo. E, quais seriam os saberes necessários à educação que vivemos? Estariam eles, todos, dispostos em bibliografias, parâmetros curriculares ou em referenciais curriculares? Tentamos construir em nossos encontros e discussões possibilidades para essas inquietudes.

A frase: “mestre não é aquele que sempre ensina, mas quem de repente aprende” diz tudo. Professor e aluno aprendem juntos na própria experiência. Não que a formação específica dos conteúdos dos planos de estudos não sejam importantes para nossa prática, mas saber correlacionar os conteúdos na interdisciplinaridade é indispensável. Adquirimos esses saberes no dia-a-dia, nas perguntas, na análise, como foi, como é e como será? Questionando a realidade e

valorizando tudo o que chega até nós. (Aluno A, 2008, I encontro) [grifo nosso].

Saber explorar o que eu vivo e o que eu sei, para assim complementar meu conhecimento com o qual eu terei que adquirir outros, pois querendo ou não nós,

índios, estamos evoluindo, acompanhando o processo educativo dos não índios. Assim, o simples fato de estarmos lutando por nossos direitos, demonstra que tememos que nossos valores se percam com o tempo. Adquirimos esses saberes

dentro de nós, olhando para nosso interior e também com o auxílio dos olhares dos mais velhos, que dizem que o ÍNDIO atual pode sim preservar e resgatar sua cultura, valorizando-a e demonstrando orgulho em ser o que é, não negando sua verdadeira identidade. (Aluno B, 2008, I encontro) [grifo nosso].

Na minha opinião, onde nós vivemos e até mesmo nas escolas, estamos

capitalista e que nós, enquanto professores indígenas, devemos aprender a conviver com a globalização do mundo. Vamos adquirir os conhecimentos

necessários para nossa educação através de muita dedicação e empenho dentro de nossa comunidade, para que, assim, nossos alunos tenham melhor desempenho em sua aprendizagem. (Aluno C, 2008, I encontro) [grifo nosso].

Reconhecer e manter a diversidade cultural; promover uma situação de comunicação entre experiências socioculturais diferentes, não considerando uma cultura superior a outra; estimular o entendimento e o respeito entre seres humanos de identidades étnicas diferentes, ainda que se reconheça que tais relações vêm

ocorrendo historicamente em contextos de desigualdade social. Tais saberes devem ser adquiridos na escola formadora, que necessariamente forma crianças e jovens num processo integrado, apesar de suas enumeras particularidades. (Aluno D, 2008, I encontro) [grifo nosso].

Saber lidar com a realidade sem perder as raízes nem o rumo de sua

comunidade onde sua cultura está fortalecida. Esses conhecimentos podemos

adquirir em livros que tratem da cultura, modos de viver, de pensar e de ser indígena. (Aluno E, 2008, I encontro) [grifo nosso].

Quando do diálogo com os alunos, percebemos o grau de maturidade que alguns apresentam. Ouví-los dizer que precisamos questionar a realidade e valorizar tudo o que chega até nós, é, no mínimo, animador; demonstrar consciência de que, involuntariamente, não estão inseridos no processo educacional imposto pelo sistema capitalista do não-índio e que ainda assim lutam por seus direitos e pelo resgate de sua cultura, nos faz acreditar que a semente foi plantada; reconhecer e desejar a interculturalidade ainda que sabedor de sua historicidade de desigualdades, apontando várias fontes (escola, comunidade, bibliografias) para a aquisição desses conhecimentos, nos propõe pensar novamente o papel da escola formadora e da educação matemática.

Contudo, em meio às relações de luta, tensão e disputa por poder e espaço, por sobrevivência e transcendência, como nos sugere D’Ambrosio, nosso trabalho aqui não é tentar apresentar descrições de processos culturais e/ou linguísticos. Nele procuramos, sempre que possível, encontrar explicações sobre esses processos em relação às experiências e às vivências dos diferentes sujeitos sociais inseridos no contexto da educação intercultural, principalmente com relação às comunidades exóticas, que mesmo em com-vivência, são diferenciadas pela denominação – índio e não-índio. No entanto, nossa atitude investigativa se faz de modo a perseguir possibilidades de mudança e inovação para a educação matemática, promovendo uma discussão cultural, que considere as múltiplas matemáticas. Estabelecer este diálogo nos permite fazer o movimento cultural de modo a perceber através das diferentes linguagens a problemática da matemática. Não obstante, nos permanecem algumas inquietações: Como podemos estabelecer o diálogo entre culturas? Como desencadearemos este processo de comunicação? Buscaremos a compreensão da etnomatemática como uma tentativa de possíveis respostas e aprendizagens às nossas perguntas.