• Nenhum resultado encontrado

2. A AMAZÔNIA COMO BEM COMUM GLOBAL

2.1 Soberania nas relações internacionais

2.1.2 A soberania hoje

Apesar de princípio basilar das relações internacionais contemporâneas, a soberania foi interpretada de formas diferentes através do tempo, assim como foi respeitada em maior ou menor grau, dependendo do período histórico. Ela não conseguiu eliminar os ímpetos expansionistas de todos os chefes de Estado pelo mundo, mas forneceu relevante base legal de reivindicação para os países mais ameaçados. O direito à soberania inspirou a criação de importantes Organizações Internacionais, a exemplo da própria ONU.

O Dicionário de Relações Internacionais do Centro de Estudos da População, Economia e Sociedade, vinculado à Universidade do Porto, define que soberania é o “direito exclusivo do Estado de exercer todos os seus poderes sobre o território, como o monopólio de legislação, regulamentação e jurisdição. É o poder dos poderes (...)” (2005, p. 175). A explicação do verbete, no próprio Dicionário, é encerrada assim: “O corolário da soberania é a independência” (2005, p. 175).

Dessa forma, fica clara, para as relações internacionais, a multifuncionalidade do conceito de soberania. Ele é fundamental para os Estados submetidos ao controle direto ou indireto de outros Estados, que não encontram condições propícias para estimular seu desenvolvimento enquanto ator internacional. Nesse sentido, soberania significa independência. Ou então, pode ser usado também como justificativa para a maximização de poderes por nação dominante no cenário global, na busca inexorável por seus interesses, por assegurar sua sobrevivência indefinidamente. Nesse outro sentido possível, soberania significa egoísmo estatal. Assim, o mesmo princípio pode ser usado para reivindicar a libertação, ou para validar a prepotência.

Com isso, parece que não houve mudança de interpretação, no que diz respeito à soberania, entre aquilo que foi extraído da Paz de Westfália e conceito atual. Entretanto, o próprio Dicionário em questão faz um adendo: “são cada vez mais os que duvidam do sentido do conceito, num mundo em que os problemas não conhecem fronteiras e aparentam ter dificuldade em perceber modos diferentes de os resolver” (2005, p. 175). A última citação já aponta para a direção que o debate do

36 meio ambiente global – entre outros temas correlatos – está conduzindo a política internacional. Especificamente na Europa, por exemplo, a palavra soberania tem sido muitas vezes associada a nacionalismo, ou posição contrária ao projeto integracionista.

A soberania é um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, como previsto na Constituição Federal (CF), em seu primeiro artigo (BRASIL, 1988). Alexandre de Moraes, muito antes de se tornar ministro do Supremo Tribunal Federal, definiu-a como “a capacidade de editar suas próprias normas, sua própria ordem jurídica (a começar pela Lei Magna), de tal modo que qualquer regra heterônoma só possa valer nos casos e nos termos admitidos pela própria Constituição” (2006, p. 16). Mesmo sendo demasiadamente técnico-jurídica, é relevante observar que, na definição de Moraes, é feita menção a leis provenientes de outros Estados, as quais serão recepcionadas pela CF, se assim for decido pelo Brasil7.

A compreensão de soberania só ganha sentido quando ela é horizontalizada e estendida a outros atores internacionais, pois não existe soberania sem o reconhecimento de outros semelhantes. Essa configuração da política mundial, característica deste tempo histórico, chama-se sociedade de Estados, como mencionado acima. Apesar de considerada anárquica, a interação da sociedade ocorre com certo grau de previsibilidade, afinal o objetivo de cada Estado é o de preservar sua existência no sistema (ARMSTRONG, 2008). Desse modo, os Estados tendem a cooperar entre si, em busca de fins comuns. A cooperação toma a forma de instituições, organizações, costumes e também do direito internacional (BULL, 2002).

A disposição, aceitação dos Estados em cooperar nunca foi tão elevada quanto hoje. É natural que, com a passagem do tempo, as relações internacionais vão se tornando mais institucionalizadas, amadurecidas. O sistema hodierno surgiu em 1648; desde então houve muita tensão diplomática, o mundo testemunhou duas guerras mundiais. O risco permanente da explosão atômica também não diminuiu o clima de insegurança na Guerra Fria. Mas a dissolução da União Soviética, a crença na superioridade do modelo americano e a mudança de século trouxeram novo ânimo para as relações internacionais. A consciência do novo momento motivou a cooperação entre os Estados. Nunca houve tantas conferências internacionais como, por exemplo, na década de 90, para tratar de assuntos relacionados a Low Politics (BAYLIS et al, 2008).

Na verdade, não é mais inteiramente correto falar que a sociedade internacional está inserida no contexto único da soberania westfaliana. Os desdobramentos mais recentes, notadamente a criação

37 da Organização das Nações Unidas, têm renovado a natureza das relações internacionais, apesar de o novo paradigma não se impor de maneira incontestável, sem a postura de protesto de algumas nações, em geral as mais poderosas. Com isso, pode-se afirmar que a estrutura de base da política internacional, hoje, segue sendo aquela inaugurada pela Paz de Westfália, mas que a prática e os princípios encorajados pela dinâmica internacional têm convergido para maior grau de cooperação entre Estados, para a relativização da soberania (BAYLIS et al, 2008). Esta pesquisa, não por acaso, dedica-se a debater como resquícios da soberania intransigente têm influenciado o regime do meio ambiente, em especial a governança da floresta Amazônica.

Em época de paz, os países concentram-se em outros temas que não a segurança. Por volta do fim da Guerra Fria, a sociedade internacional já havia compreendido que alguns desses temas desafiavam a noção tradicional de soberania westfaliana, por serem de tratamento complexo, pela amplitude de questões relacionadas a eles, pelo valor que se lhes confere, pela dificuldade em separar- se a responsabilização pelos atos de cada membro. Alguns deles inclusive exigem maior grau de abstração da parte dos Estados: a universalização dos direitos humanos, por mais sensata que possa parecer, não encontra o mesmo respaldo em todas as nações, tampouco elas os elencam da mesma maneira.

Mas mesmo que não de maneira unânime, iniciaram-se debates mais robustos sobre aquelas agendas políticas chamadas de Global Commons, ou Comuns Globais. Comuns porque igualmente da responsabilidade de todos, que a todos podem afetar. Por isso que hoje o conceito de soberania vem sendo atualizado; a forma como a CF do Brasil a entende já demonstra essa adaptação, como visto acima. Mas então quais seriam os Comuns Globais? Os já mencionados direitos humanos o são, assim como o comércio global ou, de extrema importância aqui, o meio ambiente (BAYLIS et al, 2008). As florestas, como parte representativa que são da noção de meio ambiente, estão deixando, assim, de ser compreendidas como recurso que diz respeito somente a um país para serem alçadas a um nível superior de importância, o que tem gerado muito debate entre as nações. Porém é preciso entender primeiro o que torna as florestas um Global Common, quais as implicações disso, como tem evoluído o debate, antes de se avaliar como a França e o Brasil tem tratado a floresta Amazônica.