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4. OS CÓDIGOS FLORESTAIS

4.11 Da agricultura familiar

Talvez esse seja o capítulo de mais difícil interpretação das leis, tendo em vista que as realidades de cada país são distintas, apesar de guardarem similaridades. O mais próximo da compreensão de agricultura familiar a que se pode chegar quando se analisa o contexto francês é o de comunas florestais e o de coletividades territoriais, termos complementares que devem ser entendidos com certa elasticidade semântica, mas que aqui servem a um propósito bem claro. Comunas, na França, designam a menor e mais simples unidade administrativa do país, cujo tamanho pode variar de acordo com região, história e densidade urbana. As comunas florestais tornam-se, assim, aquelas comunidades que se desenvolveram mantendo relação muito próxima com a floresta, de maneira que a vegetação faz parte de sua identidade social. As coletividades territoriais são pessoas jurídicas de direito público que se encarregam de gerir ou de deliberar sobre a unidade administrativa na qual se encontram. As comunas florestais dispõem de seus conselhos, assim como dos sindicatos de gestão florestal, cujo papel já foi avaliado no capítulo anterior. Na Guiana Francesa, o órgão de gestão local recebe outro nome, Assembleia da Guiana. Além disso, o Código Florestal francês faz regularmente menções às comunidades que tradicionalmente retiram seu meio de subsistência da floresta, expressão que possuía sentido duplo quando confrontada com o Código brasileiro, pois ora pode se referir especificamente àquilo que é designado por agricultura familiar, ora às comunidades autóctones, que são desenvolvidas, na lei brasileira, no mesmo capítulo que trata da agricultura familiar.

Em ambos os países, há previsão legal para que esse tipo reduzido de exploração florestal aconteça, inclusive em áreas de proteção. Na lei brasileira, o Art. 52: “A intervenção e a supressão de vegetação em Áreas de Preservação Permanente e de Reserva Legal para as atividades eventuais ou de baixo impacto ambiental, previstas no inciso X do art. 3º, excetuadas as alíneas b e g, quando desenvolvidas nos imóveis a que se refere o inciso V do art. 3º, dependerão de simples declaração ao órgão ambiental competente, desde que esteja o imóvel devidamente inscrito no CAR”. Em relação às populações nativas, há ainda mais transigência por parte da lei, quando por exemplo da permissão incondicional do uso do fogo. Mas de forma geral, tanto os inscritos na agricultura familiar quanto os indígenas, no Brasil, têm tratamento bem parecido. Aqui está a transcrição do parágrafo único do Art. 3º:

Para os fins desta Lei, estende-se o tratamento dispensado aos imóveis a que se refere o inciso V deste artigo às propriedades e posses rurais com até 4 (quatro) módulos fiscais que

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desenvolvam atividades agrossilvipastoris, bem como às terras indígenas demarcadas e às demais áreas tituladas de povos e comunidades tradicionais que façam uso coletivo do seu território (BRASIL, 2012).

Assim, por exemplo, ambos os grupos recebem isenção de PMFS, ou então tem maior liberdade no uso das APPs ou nas Áreas de Reserva Legal.

O Código francês exibe conteúdo similar, mas muito mais complexo, o que é de se esperar de um país com longa tradição florestal e com posses territoriais espalhadas pelo mundo. Ele deve lidar com os grupos historicamente ligados à floresta na metrópole, assim como com uma diversidade de povos autóctones localizados em cada uma das suas antigas colônias. O que facilita a comparação da Guiana Francesa com o Brasil é o fato de os grupos da Amazônia compartilharem a mesma realidade sócio-histórica. No que diz respeito às comunidades territoriais, a lei reserva quatro títulos e dois capítulos às suas disposições. De forma geral, as regras que gerem as florestas normais são as mesmas daquelas que gerem as florestais comunais. Contudo, os grupos, sindicatos que representam tais coletividades têm participação direta nas deliberações estatais a respeito se duas propriedades, conforme os artigos L.214-3 e L.214-4. No texto da lei, repetidamente, vão sendo apresentados dispositivos passíveis de serem mudados caso isso seja do interesse do Estado e das coletividades territoriais, notadamente o capítulo das áreas protegidas, cuja aplicação pode ser muito mais branda para os grupos, dependendo de cada caso.

Já no que diz respeito aos povos autóctones da Guiana, outros instrumentos são previstos em lei. A transcrição do artigo L.272-4 torna-se particularmente importante, pois, mesmo dando enfoque os indígenas, faz referência às coletividades territoriais:

Por derrogação do artigo L.241-1, a autoridade administrativa competente do Estado constata, ao benefício único das comunidades de habitantes que tiram seus meios de subsistência da floresta, a existência de terras dominiais do Estado e das coletividades territoriais de direitos de uso coletivo para o exercício de toda atividade necessária à subsistência das comunidades. Naquilo que concerne às florestas das coletividades territoriais, a constatação é pronunciada depois do consentimento da coletividade proprietária83 (FRANÇA, 2017).

83Par dérogation à l'article L. 241-1, l'autorité administrative compétente de l'Etat constate, au profit des seules

communautés d'habitants qui tirent traditionnellement leurs moyens de subsistance de la forêt, l'existence sur les terrains domaniaux de l'Etat et des collectivités territoriales de droits d'usage collectifs pour l'exercice de toute activité nécessaire à la subsistance de ces communautés. En ce qui concerne les forêts des collectivités territoriales, le constat est prononcé après avis de la collectivité propriétaire.

158 O mesmo dispositivo contém elementos que atestam a mais ampla liberdade de uso da floresta desfrutada pelos nativos, e a maior independência que as coletividades territoriais possuem para deliberar sobre seus domínios florestais. E tudo acontece com a supervisão do Estado.

Contemplando os pleitos das comunidades autóctones e resguardando-lhes o direito de entreter a relação tradicional que desenvolveram com a natureza, o Brasil e a França seguem, do ponto de vista legal, princípios internacionais (OIT, 1989) de repercussão no regime do meio ambiente84.

Além disso, ao reafirmarem os direitos da agricultura familiar ou das coletividades territoriais, garantem a existência de método menos predatório de uso das florestas, o que em teoria condiz com o tratamento da Amazônica como Bem Comum Global.