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A socialização da criança na cosmovisão africana

CAPÍTULO 3 – A INFÂNCIA DA CRIANÇA NEGRA E O BRANQUEAMENTO

3.2 A socialização da criança na cosmovisão africana

O tema da cosmovisão africana, ou seja, a ótica pela qual os povos africanos se organizam, a maneira como veem e entendem o mundo, suas relações entre si e com a natureza, seus valores, será tratada neste estudo a partir da forma organizacional de alguns povos42 que viviam em África, durante os séculos X-XV. Povos que, mesmo diante de alguns

41 Na concepção freiriana a condição de inacabamento está na possibilidade que o ser humano tem de ser mais,

de saber que ele é inacabado e que por isso se educa. (FREIRE, 1979)

42 Mais especificamente, em Gana, Mali e Songai, todos localizados entre o Saara e Ahel, que formaram

deslocamentos geográficos, políticos e possibilidades de domínio de algumas etnias, demonstraram estrutura organizacional e cosmovisão próprias.

Alguns elementos estruturantes43 dessas sociedades, constituídas antes da invasão

europeia, denotam “unidade cultural”, pois, esses povos, que se tornaram grandes impérios, “[...] souberam manter sua identidade, mesmo enfrentando, no decorrer do tempo, todas as influências advindas de processos migratórios, mestiçagem, adaptações ao meio ambiente e colonizadores” (MARTINS, 2015, p. 362).

Dentre esses elementos estruturantes, ressalta-se a Socialização, entendida como a formação dos indivíduos que se dá na coletividade e uma responsabilidade social; e a Pessoa, enquanto o resultado da interação entre sagrado e natureza, pois, é no meio ambiente que encontra sua identidade.

Outro conceito importante a ressaltar é o de Ubuntu, que advém da “visão de mundo” africana que quer dizer “pessoa em comunidade”, ou “uma pessoa que vive pela e para a comunidade” ou “viver em comunhão um com o outro” (CASTIANO, 2010, p.147). As sociedades africanas tradicionais são regidas por esse conceito, e a socialização da criança africana, por exemplo, tem uma conotação diferenciada em relação a outras culturas; justamente porque a noção de indivíduo não tem valor por si só. Uma vez que, enquanto grupo, a criança é de responsabilidade de toda a comunidade, ela é o que todos/as são.

Conforme Ezémbé (2009 apud ABRAMOWICZ; OLIVEIRA, 2011, p. 57)), “[...] ser criança, jovem, adulto ou velho é mais ocupar uma posição social e institucional, que manifestar um estado dado de maturação”. E pode-se entender que a forma como a criança é recebida nas sociedades de matriz africana, bem como as experiências que ela tem na comunidade contribuem para a construção da sua identidade, autoestima e sentimento de pertença.

No processo de socialização da criança africana, o adulto acaba por ter um papel totalmente diferente em relação a outras organizações sociais (as ocidentais, por exemplo), pois, “[...] o indivíduo não tem existência própria, ele vive em função da sociedade, a criança interessa enquanto ela pode interessar a sociedade, a morte é morte social e não individual” (ABRAMOWICZ; OLIVEIRA, 2011, p. 57). Como a criança é vista como sujeito coletivo, subentende-se que há maior responsabilidade de todos, da comunidade em geral, para com

43 Conforme pesquisa apresentada por Oliveira (2006), a cosmovisão africana compõe-se dos seguintes

elementos estruturantes: Universo, Força Vital, Palavra, Tempo, Pessoa, Socialização, Morte, Família, Produção, Poder, Ancestralidade, Religião Africana (Capítulos 1 e 2).

cada criança, e que, neste espaço social em que ela está, ela se desenvolve, também, enquanto sujeito indivíduo (que contém a contribuição do todo).

Em pesquisas mais recentes sobre as comunidades quilombolas contemporâneas, tem- se muitas contribuições sobre os processos de socialização das crianças. Dentre outras, cita-se a de Gloria Moura (2005, p. 70) que procurou, em sua pesquisa,

[...] compreender a contribuição das festas dos quilombos contemporâneos como fator formador e recriador de identidade, analisando-as como veículo de transmissão e internalização de valores que possibilitam a afirmação e a expressão da diferença/alteridade e, ao mesmo tempo, a negociação dos termos de inserção das comunidades rurais negras na sociedade como um todo..

Nas comunidades quilombolas, onde vivem populações remanescentes dos antigos quilombos, além da subsistência do grupo, é onde acontecem, também, as transmissões dos valores éticos e morais e das tradições e conhecimentos daquela população negra. Como já foi dito, a criança, nas tradições africanas, é parte do grupo em todos os sentidos, e pode-se constatar isto, na observação da autora, “as crianças estão presentes em todas as tarefas comunitárias, do planejamento à execução e avaliação das atividades, sempre ao redor dos adultos, de ouvidos e olhos abertos, atentas, de uma maneira natural e descontraída” (Idem).

Em pesquisa sobre as “práticas coletivas na construção da vida quilombola”, realizada por Márcia Cristina Américo (2013, p. 46-50), a autora busca “[...] compreender o conceito de comunidade para os membros do Quilombo Ivaporunduva” e explica que “[...] a história desse povo mostra que se organizou para produzir a vida material e conservar suas crenças, unindo tradição com o novo que foram criando e transformando, refletindo no que atualmente são”.

É certo que essas comunidades, inseridas no contexto do mundo globalizado e sob o regime de um sistema capitalista, passam por processos de transformação; porém, como afirma Américo, “[...] nas suas relações, ainda mantém características de comunidade

quilombola” (AMÉRICO, 2013, p. 63).

Pode-se inferir que, nas comunidades quilombolas, a tradição africana continua viva, e que uma das formas de transmitir esse conhecimento é a oralidade. Segundo Américo (2013), no Quilombo Ivaporunduva, a oralidade se faz presente a todo momento, e assim é que a história da comunidade tem sido transmitida de geração em geração nas diversas situações do dia a dia e em momentos especiais.

As rodas de conversa geralmente se iniciam no final da tarde e avançam noite adentro. São momentos especiais de interação entre os idosos, adultos, jovens e crianças, mulheres e homens, todos em torno do fogo, no terreiro

das casas ou em volta da taipa acesa, que aquece a casa de pau-a-pique, no inverno e no verão. (AMÉRICO, 2013, p. 54).

Esses dois exemplos de comunidades quilombolas que demonstram, na sua forma de organização, raízes da tradição e valores da cosmovisão africana, contribuem para que se reconheça a importância da socialização da criança neste processo de ensino e aprendizagem e na constituição da sua identidade e individualidade, na perspectiva do ser sujeito na coletividade.

Destaca-se, também, a pesquisa de Ana Katia Alves dos Santos (2006), sobre a infância afrodescendente, em que a autora apresenta “[...] valores e princípios trabalhados cotidianamente nas comunidades religiosas de tradição africana”. Seus estudos foram realizados na Bahia, Estado que recebeu, na sua formação, a forte presença dos povos africanos; no caso baiano, a intensa influência étnica dos grupos jeje-nagô. A autora afirma:

Essa criança, que vive a experiência dos terreiros de Candomblé, produz conhecimento que valoriza os princípios já citados em sua constituição de vida: a reconciliação, a multiplicidade, a diversidade, o acolhimento, a força, a inteligência, o rigor (com delicadeza), o respeito à natureza, a co- responsabilidade nas ações e a integração. (SANTOS, 2006, p. 52).

A partir destas constatações, percebe-se que, quando as crianças negras são educadas no contexto comunitário, onde se valoriza a tradição africana e afro-brasileira, cresce a possibilidade de se salvaguardar a sua identidade e autoestima. É a partir do sentimento de pertença de um povo que, através da memória e da tradição oral, mantém-se viva a sua forma de ser e de estar no mundo.