• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO 1 – REFERENCIAL TEÓRICO-METODOLÓGICO

1.1.1 Branqueamento

O processo de branqueamento, enquanto legado de um sistema colonizador e escravista, foi idealizado como estratégia para, no âmbito simbólico, ideológico e das relações sociais, embranquecer a sociedade brasileira. A hierarquização das raças, um conceito que surge com as teorias deterministas, ligadas à Biologia e Antropologia evolucionista do século XIX, bem como a autoclassificação da superioridade branca, mesmo que tenham se transformado ao longo dos anos e enfraquecido com os conhecimentos e teorias de outras áreas, foram suporte, para a criação e fortalecimento dos estereótipos em relação à população negra e a naturalização de práticas racistas.

O branqueamento, uma teoria produzida e aceita “[...] pela maior parte da elite brasileira nos anos que vão de 1889 a 1914 [...]”, se desenvolveu “[...] como um discurso científico e político do século XIX, como ’a solução nacional‘ para os problemas sócio- políticos pós-abolição” (HOFBAUER, 2006, p. 21). Problemas esses vinculados às questões sociais e econômicas, devido à reorganização da mão de obra, e também direcionados à intenção de que, após a abolição, os pretos desaparecessem do território brasileiro. Um exemplo dessa intenção são as políticas de imigração implantadas para dificultar a entrada de negros no Brasil, conforme o Decreto de nº 528, de 8 de junho de 1890:

Art. 1º É inteiramente livre a entrada, nos portos da República, dos indivíduos válidos e aptos para o trabalho, que não se acharem sujeitos à ação criminal do seu país, excetuados os indígenas da Ásia, ou da África que somente mediante autorização do Congresso Nacional poderão ser admitidos de acordo com as condições que forem então estipuladas.

Nas décadas de 1920 e 1930, como o ideal de branqueamento já se consolidava, a questão racial era vista pelas elites nacionais “[...] de forma cada vez mais positiva: para eles, o Brasil parecia branquear-se de maneira significativa, e o problema racial se encaminhava para uma solução” (JACCOUD, 2008, p. 50). O antropólogo João Batista Lacerda (1911), maior propagandista da ideologia do branqueamento, defendia a tese de que em um século a população brasileira seria majoritariamente branca, razão pela qual o país deveria fazer um investimento na mestiçagem das raças.

A mestiçagem é “[...] concebida como uma troca ou fluxo de genes, de intensidade e duração variáreis, entre populações mais ou menos contrastadas biologicamente” (MUNANGA,1996, p.215). Com bases ideológicas e políticas, foram, então, instituídas as políticas de miscigenação no Brasil, datadas do século XIX, como um projeto de identidade nacional. Esse empenho e investimento na miscigenação teve a intenção de branquear a sociedade brasileira e transformar o Brasil, como diz Schwarcz (2012), num “laboratório racial”. Como a ideologia ganhou cada vez mais força, o processo de branqueamento do negro ocorreu “[...] principalmente pela assimilação dos valores culturais do branco” (MUNANGA, 2012, p. 38).

Em 1930, segundo Schwarcz (2012), a estetização da democracia racial se fortaleceu e algumas das publicações, no Brasil, passaram a reproduzir os estudos científicos para celebrar a mistura de raças, a miscigenação, como característica nacional positiva. Em Macunaíma obra escrita por Mario de Andrade (1928), pode-se entender que o autor faz uma releitura do mito das três raças que formam a nação brasileira: índios, negros e brancos, ao retomar a imagem fluvial dos três rios10 e reforçar a imagem do preto-retinto que se torna branco. O

livro Raízes do Brasil (1936), de Sergio Buarque de Holanda, apresenta a ideia de cordialidade, como característica marcante do povo brasileiro. Gilberto Freyre, com as obras Casa Grande e Senzala (1933) e Nordeste (1937), tornou-se um dos principais autores da literatura brasileira que contribuiu com propagação da “[...] ideia de que a diversidade racial

10 Conforme concurso realizado com o objetivo de escrever uma história do/para o Brasil, uma história que

fosse nacional e imperial. A história vencedora neste concurso foi do cientista alemão, Carl von Martius, que carrega um texto histórico para o Brasil, sob o olhar de um estrangeiro. Nesta história, o Brasil é desenhado por uma imagem de três rios: um caudaloso, formado pelas populações brancas; outro um pouco menor, nutrido pelos indígenas, e ainda outro, mais diminuto, composto pelos negros. Para um aprofundamento, cf Schwarcz (2012).

do Brasil era força e não uma fraqueza, descentrando aquela fraqueza da raça e atribuindo-a à baixa saúde e cultura” (DÁVILA, 2006, p. 30). Como o aperfeiçoamento do “homem brasileiro” era o ideal político da época, a ciência da eugenia11 ganhou força, como forma de

resolver os problemas decorrentes das raças consideradas degeneradas. Foi uma tentativa científica de “aperfeiçoar” a população por meio do aprimoramento de traços hereditários, ou seja, “[...] pela manipulação dos traços genéticos, primeiro por meio de controle sobre o ato e o contexto da procriação” (DÁVILA, 2006, p. 51).

A proposta de aperfeiçoamento da população brasileira, ocorrida com o apoio de políticas públicas de controle disciplinar da população, tem o branqueamento como referência e depuração da raça na construção de uma identidade nacional. Como já explicitado, as políticas imigratórias que facilitaram a entrada de europeus em território brasileiro e o investimento na miscigenação das raças cooperaram com este cenário, e vários segmentos da sociedade foram envolvidos para se chegar a esse esperado aprimoramento da população. Destaca-se que o sistema educacional da época contribuiu com as propostas que disciplinavam não somente a educação do corpo (educação física e educação sexual), mas também a educação moral.

O mestiço transformou-se, definitivamente, em ícone nacional, um símbolo de identidade brasileira cruzada no sangue e sincrética na cultura, isto é, no samba, na capoeira, na religião, na comida e no futebol. De certa forma, “[...] nesse movimento de nacionalização uma série de símbolos vão virando mestiços, assim, como uma alentada convivência cultural miscigenada se torna modelo de igualdade racial” (SCHWARCZ, 2012, p. 68).

Salienta-se, porém, que a miscigenação foi, também, alvo de críticas12 que passaram a

indicar que esse processo traria a falência da nação brasileira, porque, embora houvesse a intenção de se criar uma identidade nacional a partir da imagem do “homem brasileiro mestiço”, na prática, as populações mestiças e negras continuavam a ser discriminadas e a

11 A ciência da eugenia é proposta como meio de se resolver as condições raciais nas quais a sociedade se

encontrava. O eugenistas da época “[...] discutiam como a população poderia ser melhorada geneticamente pelo reforço da saúde, da higiene e da educação.” (DÁVILA, 2006, p. 52). Geulen (2010, p. 137-151) apresenta um panorama sobre a concepção desta ciência, seus idealizadores e algumas de suas medidas concretas, no âmbito mundial.

12 Em meados do século XX, observa-se um novo olhar para a teoria e interpretação da realidade social. A

Sociologia de Florestan Fernandes contribuiu para a leitura crítica de algumas teses que defendiam as teorias de branqueamento e o mito da democracia racial. “Reler criticamente algumas teses de Silvio Romero, Oliveira Vianna, Sérgio Buarque de Holanda, Gilberto Freire entre alguns outros. Simultaneamente, retoma e desenvolve teses esboçadas por Euclides da Cunha, Manoel Bonfim, Caio Prado Júnior, entre outros. A partir desse diálogo com uns e outros, a Sociologia de Florestan Fernandes inaugura uma nova interpretação do Brasil, um novo estilo de pensar o passado e o presente”(IANNI, 1996, p. 25).

vivenciar processos excludentes nas diferentes áreas da sociedade, em especial, da justiça, do direito, do trabalho, da educação e do lazer.

A previsão de que o Brasil seria um país mais branco e de que em 2012 teria uma população composta por 80% de brancos, 20% de mestiços, nenhum negro e nenhum índio, já havia sido anunciada em 1929 pelo antropólogo Roquete Pinto, então presidente do I Congresso Brasileiro de Eugenia (SCHWARCZ, 2012, p. 26). No entanto, quando se busca no histórico do recenseamento do país, o que se encontra são as seguintes informações:

Em 1890, data do segundo Recenseamento do País, trocou-se o termo pardo por mestiço na classificação. Época de forte predomínio das doutrinas racistas, os traços aparentes, o fenótipo, de 1872, dá lugar à ideia de misturas, de mestiçagem de raças na classificação pós-abolição da escravatura. [...] O Recenseamento de 1890 se mostra impregnado do signo positivista, com a sua classificação racial de forte conteúdo hierárquico do mundo social e a mestiçagem promovida à categoria assumindo o sentido atribuído pelo branqueamento, [...] Recenseamentos de 1900 e 1920 não foi incluída a classificação racial e a operação censitária prevista para 1910 não foi realizada. [...] O início do Século XX caracterizou-se pelas diferentes propostas de construção de uma identidade nacional, pretendendo chegar a solucionar o “problema” negro e indígena apelando para a simples eliminação destes grupos raciais na população, seja pelo branqueamento – miscigenação com o grupo branco – seja pela destruição, direta ou no sentido de uma sistemática omissão na garantia das condições de reprodução destes grupos raciais. (PETRUCELLI; SABOIA, 2013, p. 23)

No século XX, a estratégia de miscigenação, como resultado do ideal do branqueamento, desencadeou a indefinição quanto ao quesito cor da população brasileira e transformou o Brasil, como diz Schwarcz (2012) numa verdadeira aquarela, pois, no Censo de 1976, os brasileiros se autodeclararam com 136 cores diferentes, o que demonstra o quão problemática e complexa era essa temática.

Essa tendência para o desaparecimento das pessoas com a cor da pele preta no território brasileiro fundamenta-se na proposta de que, a mistura racial seria uma boa trajetória para se chegar à brancura, enquanto ideal de transformar negro em branco, uma vez que a teoria do branqueamento se firma com a “[...] incumbência de forjar um Brasil mais europeu e preso a um senso de modernidade vinculado à brancura” (DÁVILA, 2006, p. 25). Porém, ao branqueamento que se direcionava para a questão da cor da pele, soma-se a questão de que, ao diluir uma cor, tem-se também a intenção de diluir as culturas e identidades de um povo.

O branqueamento do país, ou sua “arianização”, faz parte de um processo histórico do século XIX, que se perpetua enquanto ideologia até os dias de hoje. A expressão “ideologia do branqueamento” é utilizada para enfatizar o discurso ideológico enraizado neste processo, e

apontar para o discurso da branquitude que, conforme Bento (2002, p. 25), refere-se a “[...] traços da identidade racial do branco brasileiro a partir das ideias sobre branqueamento”. Porém, entre outros conceitos e usos, branquitude é entendida e empregada como uma construção sócio histórica, produzida a partir da classificação e hierarquização das raças, com predomínio da falsa ideia da superioridade branca. Da valorização da branquitude, resultante das sociedades racistas, é que suscitou a ideia de que os sujeitos identificados como brancos ocupam lugar de privilégios13 simbólicos e materiais, e de poder em relação aos não brancos.

Acrescenta-se ainda que a “[...] branquitude enquanto lugar de poder articula-se nas instituições (universidades, empresas, organismos governamentais) que são por excelência, conservadoras, reprodutoras, resistentes e cria um contexto propício à manutenção do quadro das desigualdades” (BENTO, 2005, p. 175).

Embora, no início do século XXI, o Censo apresente resultados positivos em relação ao negro, com mais de 50% autodeclarados negros (pretos e pardos), o que contraria as intensões de desaparecimento de pessoas de pele preta, a ideologia do branqueamento ainda tem forte presença no imaginário social brasileiro. “Compreender o branqueamento versus perda de identidade é fundamental para o avanço na luta por uma sociedade mais igualitária” (BENTO, 2002, p. 27). Esta é uma das maneiras de se consolidar os direitos da população negra.

Munanga (2012, p. 12) ao tratar da constituição da “identidade contrastiva do negro”, questiona: “[...] passaria pela cor da pele e pelo corpo unicamente ou pela cultura e pela consciência do oprimido?” Uma das respostas apresentadas pelo autor está direcionada a processos históricos que criaram e fortalecem, ainda, o branqueamento:

Em primeiro lugar, coloca-se a espinhosa questão de saber se os negros seriam capazes de construir sua identidade e sua unidade baseando-se somente na pigmentação da pele e em outras características morfológicas do seu corpo, numa sociedade em que a tendência geral é fugir da cor da pele “negra”, de acordo com a prática do embranquecimento sustentado pela ideologia da democracia racial fundamentada na dupla mestiçagem biologia e cultural (MUNANGA, 2012, p. 12).

Mesmo que se reconheça que nem todos os fatores que condicionaram as relações entre brancos e negros foram sugeridos pela mestiçagem, essa foi uma etapa transitória no processo de branqueamento e se constitui peça central da ideologia racial brasileira. A mestiçagem, o branqueamento e outros processos sociais, econômicos, políticos,

13 Privilégios como respeito e empregabilidade. Sobre o tema dos privilégios simbólicos e matérias resultantes

educacionais, foram desenvolvidos no decorrer da História, e resultaram o que, hoje, pode-se chamar de emergente reparação das desigualdades históricas.

Nas últimas décadas, sobretudo pelas iniciativas dos movimentos negros e demais setores progressistas da sociedade civil, avançou o sentido de enfrentamento da ideologia do branqueamento, no entanto, uma parte da população negra, ainda, sofre as consequências dos complexos sentimentos de vergonha das suas características físicas e, por conseguinte, da sua identidade racial; e outra, permanece excluída social, econômica e educacionalmente. Ao retomar o conceito de branquitude, percebe-se que ela oculta uma autoproteção, como se pode observar nas palavras de Bento (2002, p. 26), “[...] muitos brancos progressistas que combatem a opressão e as desigualdades silenciam e mantêm seu grupo protegido das avaliações e análises”. O silenciamento é o primeiro sintoma da branquitude e está vinculado à postura de até se reconhecer que há desigualdades, porém, não se associa a desigualdade à discriminação racial.

O que chama a atenção é que o ideal do branqueamento permanece embutido, de forma tácita (ou não), nos discursos do século XX e adentram no século XXI. E a manutenção desse ideal, muitas vezes, vem camuflada pelo discurso de que, numa estrutura social organizada em classes, os problemas da população negra estão atrelados apenas às questões sociais e não raciais. Influenciado por uma interpretação mecanicista do marxismo - que tenta reduzir as relações sociais ao fator econômico, isto é, como resultantes unicamente das relações de produção - esse discurso desconsidera que na formação social brasileira, a população negra, como grupo social dominado/oprimido, sempre teve a subjetividade do ser negro excluída dos processos econômicos, políticos, culturais, educacionais, dentre outros.

Recorre-se, portanto, a esses condicionantes histórico, cultural e político, não para se adaptar e viver o determinismo histórico, mas para problematizar a realidade, e com a intenção de encontrar as “causas” que fortalecem a reprodução do racismo e os processos excludentes para com a população negra. Na concepção freireana, a tomada da consciência crítica carrega em si uma característica do ser humano que é a possibilidade de analisar com mais profundidade os problemas, visto que, se a realidade não é estática, é passível de mudança. Daí a importância de se problematizar a educação que, ao longo dos tempos, tem sido também utilizada como instrumento de reprodução do branqueamento.