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CAPÍTULO 1 – REFERENCIAL TEÓRICO-METODOLÓGICO

1.1.5 Educação branqueadora

Sabe-se que, historicamente, a educação sempre esteve, também, a serviço dos ideais políticos, religiosos, econômicos e demais interesses da sociedade. Retoma-se que, em meados do século XX, a educação pública brasileira reforçou os ideais históricos e políticos resultantes do processo de branqueamento, miscigenação e, intenção de aperfeiçoamento (embranquecimento) da raça brasileira. Conforme Dávila (2006), os dirigentes da educação da época, mais precisamente nos anos entre 1917 e 1945, entendiam que, a entrada de alunos negros e pobres nas escolas públicas e o desenvolvimento de projetos para a reforma no sistema escolar, contribuiriam com o ideal de “aperfeiçoar a raça” – a ideia, portanto, era “[...] criar uma raça brasileira saudável, culturalmente europeia, em boa forma física e nacionalista” (DÁVILA, 2006, p. 21). Ressalta-se que, nesse período, a população excluída do sistema educacional era, na sua maioria, composta por negros(as) e mestiços(as). E, o não impedimento das crianças negras de frequentarem a escola, neste período, reflete que há nítida intenção de civilizar o Brasil através desta instituição. Sobre isso, Dávila (2006, p. 36) afirma que

O sistema da educação pública foi uma das principais áreas de ação social para aqueles que mais ativamente estudavam a importância da raça na sociedade brasileira e mais se empenhavam na busca de uma nação social e culturalmente branca.

Nesse sentido, “[...] a expansão dos saberes elementares e a estatização do ensino foram perpassados por um conteúdo étnico e racial altamente significativo [...]”, e por consequência, “[...] a ênfase na necessidade de produção de uma homogeneização cultural significou a desqualificação das práticas culturais da população à qual se destinava a instrução pública elementar: a população de crianças negras, mestiças e pobres [...]” (VEIGA, 2008, p. 510). Com esse pequeno recorte na historiografia escolar, é possível reconhecer que a proposta de se universalizar apenas uma veia cultural, em detrimento da invisibilidade e/ou negação das demais culturas, propiciou no interior da escola, a (re) produção e manutenção do racismo e da discriminação étnico-racial, estendendo-se até os dias atuais.

Problematizar a educação, portanto, exige uma reflexão crítica sobre o papel da escola que, dentre outras instituições, tem a responsabilidade de educar. Para Candau (2003, p. 24),

“[...] o cotidiano da escola é palco de diferentes relações sociais e reflete a diversidade cultural presente na sociedade [...]”, neste sentido a escola é, na sua essência, um espaço privilegiado, por ser um dos lugares que mais agrega a diversidade humana.

No entanto, Nilma Gomes (2002, p. 39), ao tratar o tema da construção da identidade negra, aponta que “[...] o olhar lançado sobre o negro e sua cultura, no interior da escola, tanto pode valorizar identidades e diferenças quanto pode estigmatizá-las, discriminá-las, segregá- las e até mesmo negá-las”. Sobre a opção de utilizar a expressão identidade negra, a autora explicita seu entendimento sobre a concepção que o termo carrega. Assim, afirma:

[...] entendo a identidade negra como uma construção social, histórica e cultural repleta de densidade, de conflitos e de diálogos. Ela implica a construção do olhar de um grupo étnico/racial ou de sujeitos que pertencem a um mesmo grupo étnico/racial, sobre si mesmos, a partir da relação com o outro. Um olhar que, quando confrontado com o do outro, volta-se sobre si mesmo, pois só o outro interpela a nossa própria identidade. (GOMES, 2002, p. 39).

Contribuir para a construção da identidade negra tem sido um dos grandes desafios da educação escolar. Portanto, problematizar a educação na perspectiva da educação étnico-racial tem por objetivo, viabilizar meios para que a escola, através de suas práticas educativas, respeite e valorize as diferentes identidades que frequentam, diariamente, o ambiente escolar.

Por ser um espaço de socialização e convivência de pessoas de diferentes origens e identidades, a escola é um espaço para “[...] a promoção da igualdade e eliminação de toda forma de discriminação e racismo [...]” (SANTOS, 2001, p. 105), pois pode oportunizar a vivência de processos sociais e individuais que valorizem as diferentes formas de ser e estar no mundo. Problematizar a educação que reproduz a opressão estruturada histórica e socialmente, visto que o conhecimento em si é uma prática social e tem a função de dar sentido a outras práticas sociais, é um dos caminhos para a mudança.

Para reverter esse quadro de uma sociedade que reproduz processos de exclusão da pessoa negra, principalmente no campo educacional, faz-se necessário perguntar: A sociedade brasileira quer mesmo modificar esse quadro? Parece que a resposta é simples, e que muitos responderiam sim. A questão não está no querer fazer diferente, mas sim em reconhecer ou trazer à consciência os processos que impõem uma única visão de ser humano, de sociedade, e, por consequência, de educação.

Conforme Freire (1979, p. 33), “[...] na medida em que os homens, dentro de sua sociedade, vão respondendo aos desafios do mundo, vão temporalizando os espaços geográficos, vão fazendo história pela sua própria atividade criadora [...]”, a possibilidade de

se enxergar como seres inacabados21 e agir na história, contra o determinismo histórico,

impulsiona o caminhar para o tempo de trânsito, das mudanças. A problematização da educação parte da necessidade de superação da contradição opressor-oprimido, visto que há um sistema opressor que alimenta, nas pessoas, o hospedeiro internalizado no ser oprimido. Entende-se que a reprodução do branqueamento alimenta a branquitude e gera o desejo, em brancos e não brancos, de cada vez mais terem sua imagem e identidade tecidas pelo ideal branco hegemônico.

A questão que se apresenta é que a temática dos problemas enfrentados pela população negra ao longo da história, muitas vezes, é abordada, sem se atacar a essência do problema. A palavra problema tem seus vários sentidos e usos correntes, e muitas vezes, as pessoas são estimuladas, ou melhor, educadas a não problematizarem as situações de conflito e não enfrentarem os problemas. É comum utilizar-se as expressões “colocar panos quentes” ou “esconder a poeira para debaixo do tapete”, com a intenção de não problematizar os conflitos do cotidiano. Neste sentido, Saviani ajuda a pensar sobre a necessidade de se recuperar a problematicidade do problema:

Quando o homem considera as manifestações de sua própria existência como algo desligado dela, ou seja, como algo independente do processo que as produziu, ele está vivendo no mundo da “pseudo-concreticidade”. Ele toma como essência aquilo que é apenas fenômeno, isto é, aquilo que é manifestação da essência. [...] ele toma por problema aquilo que é apenas manifestação do problema. (SAVIANI, 1989, p. 21).

Sabe-se que não é de hoje que tem sido negada à população negra a possibilidade de uma vida pautada pelos critérios éticos e humanitários, e como sociedade, não se pode continuar a “tapar o sol com a peneira” e negar as evidências do problema exposto. É necessário, portanto, perguntar qual é a essência do problema, quando se trata da discriminação racial ou de práticas de racismo.

Os conceitos de preconceito racial e racismo se distinguem na forma como, na prática, se apresentam. Enquanto o preconceito racial fica mais na esfera individual, o racismo engloba a discriminação na esfera individual, institucional e cultural. Trazer essa distinção conceitual e ressaltar a importância de maior reflexão sobre a presença do racismo

21 Termo utilizado por Freire (2005) para demonstrar sua concepção de ser humano - um ser inacabado. O ser

humano é um ser inacabado, portanto, um ser que na sua singularidade tem possibilidades de construir sua história, na história em que vive. A possibilidade de vivenciar o devir (vir a ser) tem um caráter positivo, pois é o contínuo movimento do ser humano inacabado e inconcluso, em direção ao fazer-se humano na história e com a historicidade de cada um, presente na e com a realidade, também inconclusa e inacabada, portanto, possível de ser transformada. É importante lembrar que na concepção freiriana, essa possibilidade do vir a

ser, não descarta a possibilidade das trágicas desistências de ser, por isso, enquanto seres humanos, temos a

impregnado na cultura hegemônica é problematizar a presença de uma cultura em detrimento de invisibilizar e/ou negar as demais, ou seja, não reconhecer socialmente sua existência.

Há quase três décadas “[...] a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão”, conforme previsto no Inciso XLII do Artigo 5º da Constituição Federal de 1988; portanto, o racismo no Brasil é crime. Mesmo o governo brasileiro tendo assumido, legalmente, que o país é racista, pode-se acompanhar de forma (não tão) velada, a reprodução de práticas racistas no cotidiano da sociedade brasileira. As várias manifestações de racismo e intolerância racial explicitadas nas redes sociais e nos diferentes espaços públicos demonstram que a sociedade brasileira, ainda, vivencia os ideais da branquitude e, com medo de perder os privilégios que a cor da pele branca garante, deixa- se “escapar” o racismo enraizado e naturalizado no imaginário social, manifestado nas falas, olhares, nas ações, como quando uma pessoa se autodeclara não racista, mas se surpreende diante de uma pessoa negra ocupando uma posição social pré-estabelecida para brancos e diz: “ quem ele/ela pensa o que é para ocupar aquele espaço?” Prova disso, são as estatísticas de denúncias de injúria racial e racismo22 que dobraram nos últimos anos. De acordo com a SEPPIR (Secretaria de Políticas Públicas de Promoção da Igualdade Racial), secretaria do governo federal com status de ministério:

Os registros de denúncias de injúria racial e racismo na Ouvidoria da SEPPIR foram aumentando na mesma proporção em que a população se mostrou mais encorajada a denunciar. Se em 2011, a instância recebeu 219 denúncias, em 2012 esse número pulou para 413 e em 2013 chegou a 425. No ano de 2014, a Ouvidoria recebeu 567 denúncias de racismo e, em 2015, 626. (BRASIL, 2017, n.p.).

O acréscimo de denúncias realizadas pela população negra é resultado de ações e políticas, tanto no plano social como educacional, que contribuíram para que a população negra ampliasse as estratégias de resistência contra o racismo. Destaca-se aqui, a Lei 7.716/89, conhecida como a Lei Caó, em homenagem a seu autor, deputado e ativista do movimento negro23 Carlos Alberto de Oliveira, que estabelece penas para os delitos

resultantes de preconceito racial ou de cor. Porém, mesmo com as normativas sociais com

22 Ressalta-se que a injuria racial é “qualificada pelo preconceito de cor está, sobretudo, no elemento

subjetivo. O praticante do racismo da Lei nº 7716/89 age com o intuito de menosprezar, inferiorizar, de forma genética, determinado grupo étnico, raça ou cor. Não há um destinatário específico” (BRASIL, 2017). Sobre as diferenças conceituais e legais entre racismo e a injúria racial, ver quadro apresentando no site da Ouvidoria da SEPPIR.

23 O uso da expressão movimento negro refere-se aos grupos organizados que defendem a identidade negra e

recorte racial, fica-se a mercê da resistência branca de homens e mulheres que estão no poder em todas as esferas da sociedade, cabendo a eles/elas o julgamento, a execução e fiscalização dessas normativas24. E como explicitado anteriormente, à população branca tem sido facilitada a ocupação desses cargos de poder, e quando esses cargos são ocupados por não brancos, corre-se o risco de serem pessoas que assimilaram a branquitude, o que as leva, na maioria das vezes, à não percepção das injustiças e a reprodução de mecanismos excludentes para com a própria população negra. Ao focar o olhar para o perfil daqueles e daquelas que têm ocupado a gestão escolar, seja em nível nacional, regional ou local, observa-se a permanência e manutenção dos privilégios resultantes da branquitude.

Problematizar - a história, a cultura e a política impostas, ao longo dos tempos, à sociedade brasileira; as políticas educacionais que contribuem com a hegemonia da classe dominante; o sistema educacional brasileiro que tem reproduzido as ideologias engendradas pelas teorias raciais, branqueamento e mito da democracia racial - é um meio de resistência às manifestações dos problemas vivenciados pela população negra, a partir da essência do problema, que é o que o mantém ativo.

Ao concluir este capítulo, ressalta-se que, a partir do aporte teórico defendido nesta tese, somado a intenção de sistematizar os discursos dos sujeitos envolvidos nesta pesquisa, foi realizada uma leitura crítica de todo o material colhido em campo e definido o branqueamento, como categoria de análise do conteúdo desta pesquisa.