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A SURDEZ: VISÃO CLÍNICA X VISÃO SOCIOANTROPOLÓGICA

Segundo o Decreto 5.296, de 2 de dezembro de 2004, deficiente auditivo é aquele que tem “perda bilateral, parcial ou total, de quarenta e um decibéis (dB) ou mais, aferida por audiograma nas frequências de 500HZ, 1.000HZ, 2.000Hz e 3.000Hz” (art. 70). Já a pessoa surda é aquela

que, por ter perda auditiva, compreende e interage com o mundo por meio de experiências visuais, manifestando sua cultura principalmente pelo uso da Língua Brasileira de Sinais – Libras (BRASIL, 2004. Art. 70)

Pode-se perceber que a legislação já apresenta diferentes definições para cada termo. Enquanto a deficiência auditiva é definida a partir da perda auditiva, a surdez é definida pelo uso de uma língua visual – a Libras – e por formas visuais de interagir com o mundo.

Gesser (2009b) fez um estudo detalhado sobre os termos corretos para denominar as pessoas surdas e os preconceitos que cada nomenclatura exprime. Preconceitos esses que são inconscientes para as pessoas que os utilizam, mas que uma vez esclarecidos podem trazer reflexões que servirão para a construção de novos paradigmas.

31 [...] surdos são aqueles que usam a língua de sinais para se comunicar e deficientes auditivos aqueles que com uma prótese podem reconhecer pelo som as palavras. Os surdos são aquelas pessoas que utilizam a comunicação espaço-visual como principal meio de conhecer o mundo em substituição à audição e à fala. A maioria das pessoas surdas no contato com outros surdos desenvolve a Língua de Sinais (LIBRAS). Já outros, por viverem isolados ou em locais onde não existe uma comunidade surda, apenas se comunicam por gestos (SASSAKI, 2002 apud LAGES; MARTINS, 2006, p. 3).

O termo “surdo-mudo” é apresentado no trabalho de Lages e Martins (2006) como inadequado, pois a perda auditiva e a deficiência na fala não tem nenhuma relação uma com a outra.

Nos principais meios de comunicação é comum o uso do termo surdo-mudo quando se refere ao surdo, o que está incorreto, uma vez que o fato de uma pessoa ser surda não significa que ela seja muda. A mudez é uma outra deficiência, totalmente desagregada à surdez. Existe a possibilidade de um surdo falar, através de exercícios fonoaudiológicos, são os chamados surdos oralizados, ou por falta de exercícios, um surdo nunca ter falado. Por isso, o surdo só será também mudo se, e somente se, for constatada clinicamente deficiência na sua oralidade, impedindo-o de emitir sons. Fora isto, é um erro chamá-los de surdo-mudo (SASSAKI, 2002 apud LAGES; MARTINS, 2006, p. 3-4)

Com treinamento feito junto a profissionais de fonoaudiologia, é possível que as pessoas surdas falem uma língua oral, se assim desejarem. Porém, os tratamentos fonoaudiológicos são, muitas vezes, motivo de polêmica dentro da comunidade surda, devido à filosofia oralista que imperou nas escolas a partir do Congresso de Milão, que forçava os alunos a aprenderem a falar a língua oral.

O termo “deficiente auditivo” à princípio pode parecer ser o mais adequado, mas os próprios surdos preferem não utilizá-lo, pois a ideologia que o termo imprime é a de surdez como patologia, a surdez vista sob o viés da deficiência, do déficit, da falta (GESSER, 2009b).

Já o termo “surdo” desloca a questão das discussões sobre deficiência, trazendo à baila outro discurso: o da diferença linguística e cultural. Como afirmam Padden e Humphries (1988, apud GESSER, 2009b), quando os próprios surdos discutem sobre a surdez, eles não falam sobre a perda auditiva em si, mas sim sobre sua língua, sua comunidade, seu passado em comum.

Sendo assim, pessoas com surdez que se identificam com a comunidade surda e a língua de sinais são chamados de surdos. Pessoas com perda auditiva

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baixa, que ainda conseguem recuperar a audição com aparelhos auditivos e que, principalmente, se identificam com a comunidade ouvinte são denominadas deficientes auditivos.

É importante salientar que a forma como cada pessoa surda se relaciona com a língua de sinais e com o mundo é diferente. A comunidade surda não é homogênea. E cada surdo tem uma história de vida diferente, uma identidade distinta, dependendo de suas experiências e sua relação com o mundo. Perlin (1998), em seu trabalho sobre as “Identidades surdas”, mapeou cinco diferentes identidades das pessoas surdas – identidades surdas, identidades surdas híbridas, de transição, flutuantes e identidades surdas incompletas – referindo-se as diferenças entre pessoas surdas que convivem com surdos e com língua de sinais desde pequenos, surdos que aprendem a língua de sinais depois de adultos, surdos que preferem a oralização, entre outros. A autora mencionou ainda que são possíveis outras formas de categorização das diferenças idiossincráticas dos surdos: surdos que nascem surdos, surdos que ficaram surdos, surdos filhos de pais ouvintes, surdos filhos de pais surdos, entre outros.

Sacks (1998) descreveu nas notas de rodapé de seu livro (p. 38) a dificuldade das pessoas surdas com a língua oral, sobretudo nas pessoas que nasceram surdas ou ensurdeceram antes de aprenderem a falar, isto é, os que têm surdez pré-linguística:

O velho termo “surdo-mudo” implica uma suposta inadequabilidade dos que nascem surdos para falar. Obviamente, os natissurdos14 são perfeitamente capazes de falar – possuem aparelho fonador idêntico ao de todos os demais; o que lhes falta é a capacidade de ouvir a própria fala e, portanto, de monitorar com o ouvido o som de sua voz. Assim, sua fala pode ser anormal na amplitude e no tom, com omissão de muitas consoantes e outros sons da fala, às vezes ao ponto de ser ininteligível. Como os surdos não conseguem monitorar sua fala usando o ouvido, têm de aprender a monitora-la usando outros sentidos – visão, tato, senso de vibração e cinestesia. Ademais, as pessoas com surdez pré-linguística não dispõem de imagem auditiva, não têm ideia alguma de como é realmente o som da fala, não têm noção de correspondência entre som e significado. O que é essencialmente um fenômeno auditivo tem de ser entendido e controlado por meios não auditivos. É isso que traz imensas dificuldades e que para ser obtido pode requerer milhares de horas de ensino individual.

Essa é a razão porque as vozes das pessoas surdas com surdez pré- linguística e das com surdez pós-linguística são em geral muito diferentes e distinguíveis de imediato: as com surdez pós-linguística lembram-se de

33 como falar, apesar de já não poderem monitorar prontamente sua fala; as com surdez pré-linguística tem de ser ensinadas a falar, sem noção ou lembrança alguma do som da fala.

Para este autor, surdez pré-linguística denomina pessoas que nasceram surdas ou que ensurdeceram muito pequenas, antes de aprender a falar uma língua oral. Surdez pós-linguística se refere às pessoas que ensurdeceram depois de já terem desenvolvido a fala. Como o autor relata em seu texto (citação acima), o fato de uma pessoa ensurdecer antes ou depois de aprender a falar revela diferentes formas de o sujeito interagir com o mundo e lidar com a própria surdez.

O trabalho de Gesuelli (2006) menciona a necessidade do ser humano de ter uma língua, seja qual for, para a construção de sua própria identidade como sujeito, e o sentimento de pertencer a uma cultura. O que leva a reflexão sobre as pessoas surdas que crescem e passam anos, talvez a vida inteira, sem contato com língua alguma – nem uma língua de sinais nem uma língua oral.

Skliar (1998) mencionou duas formas de encarar a surdez: a visão clínica ou terapêutica e a visão socioantropológica.

Segundo a primeira visão, o sujeito surdo precisa se adaptar à cultura ouvinte, pois só assim poderá viver “normalmente” (STROBEL, 2008). A surdez é então narrada como privação sensorial, como um mundo e uma vida marcados por uma ausência. (SKLIAR, 1998). Seguindo essa visão, se fazem tratamentos de oralização, uso de aparelhos auditivos e, atualmente, cirurgias de implante coclear, buscando formas de corrigir a deficiência e a perda auditiva. Em outras palavras, a visão clínica busca a naturalização dos surdos em ouvintes, busca deixá-los parecidos com os que ouvem e, portanto, aceitáveis na sociedade (SKLIAR, 1998).

Surgem diversas formas de preconceito circunscritas, consciente ou inconscientemente, nessa visão. O uso da língua de sinais, por exemplo, passa a ser considerado um fator de exclusão da sociedade majoritária (SKLIAR, 1998). As tentativas de correção da perda auditiva acabam catalogando os surdos junto a outras deficiências – isso traz implicações na construção da identidade dos surdos.

A intenção de que as crianças surdas sejam, em um hipotético futuro, adultos ouvintes, originou um doloroso jogo de ficção nas identificações e nas identidades surdas. Nesse jogo os surdos acabam, finalmente, sendo catalogados não apenas como não ouvintes, mas como autistas, psicóticos, deficientes mentais, afásicos e esquizofrênicos. Estes estereótipos sobre os surdos não podem ser considerados inocentes e, seguindo a concepção de

34 Stam e Shohat (1995), contêm formas opressivas, que permitem um controle social eficaz e determinam, exatamente, uma devastação psíquica sistemática nos surdos. (SKLIAR, 1998, p. 21)

Em oposição a esta ideologia, surge a visão socioantropológica da surdez. Esta visão aproxima as discussões sobre a surdez dos Estudos Culturais, antropologias de grupos minoritários, estudos feministas e outros semelhantes; chamando a atenção para a surdez como diferença e as assimetrias de poder e de saber desses grupos em relação à sociedade majoritária. Segundo a visão socioantropológica, “a surdez constitui uma diferença a ser politicamente reconhecida, a surdez é uma experiência visual; a surdez é uma identidade múltipla e multifacetada” (SKLIAR, 1998, p. 11)

De acordo com a concepção socioantropológica, a surdez é compreendida como experiência visual, desestabilizando ideias preconcebidas sobre a chamada normalidade. Tal experiência visual [...] não é restrita a uma capacidade de produção e compreensão especificamente linguística ou a uma modalidade singular de processamento cognitivo, mas que se traduz em todos os tipos de significações, representações e/ou produções do surdo, seja no campo intelectual, linguístico, ético, estético, artístico, cognitivo, cultural etc. (GESUELLI, 2006, p. 3)

Essa visão traz a discussão da surdez para um contexto discursivo que, segundo Skliar (1998), é mais apropriado à situação linguística, social, comunitária, cultural e de identidades dos sujeitos surdos.

Strobel (2008) explica que os surdos usuários de Libras e que desenvolvem uma identidade surda formam uma comunidade surda, da qual os ouvintes que partilham dos mesmos interesses comuns – familiares de surdos, intérpretes de Libras, professores e amigos de surdos, entre outros – também fazem parte.

Uma comunidade surda é um grupo de pessoas que vivem num determinado local, partilham os objetivos comuns dos seus membros, e que por diversos meios trabalham no sentido de alcançarem estes objetivos. Uma comunidade surda pode incluir pessoas que não são elas próprias Surdas, mas que apoiam ativamente os objetivos da comunidade e trabalham em conjunto com as pessoas Surdas para os alcançar. (PADDEN; HUMPHRIES, 2000 apud STROBEL, 2008, p. 30)

Bat-Chava (2000 apud KELMAN, 2010) realizou um estudo realizado com surdos adultos americanos, revelando que pessoas com identidade cultural surda

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apresentavam autoestima maior do que os surdos que se identificavam culturalmente com os ouvintes.

Tendo sido apresentadas as diferentes visões sobre a surdez, e diferentes construções de identidades dos sujeitos surdos, questiona-se o quanto a atividade turística envolvendo pessoas surdas se distancia da visão clínica; e em que medida o turismo tem realmente se aproximado de uma olhar socioantropológico e cultural da surdez.