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3.2 SEGUNDA FASE DA PESQUISA – TURISTAS SURDOS

4.1.1 Hilza

Hilza é casada, mãe de três filhas adultas, das quais a mais nova é surda. Sua filha mais moça será denominada neste trabalho como Rute, e também foi entrevistada na segunda fase desta pesquisa, contando, ela mesma, suas experiências e impressões com turismo e viagens.

Rute nasceu ouvinte, mas ensurdeceu aos 2 anos de idade, o que foi um choque para a mãe e para a família. Foi preciso buscar alternativas. E, com certeza, não foi fácil. Hilza disse na entrevista, que é atendida por uma psicóloga, que a ajuda a lidar com essas questões. “Mas também foi assim: eu assinei... Eu

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falei pra minha psicóloga que ali naquela viagem eu assinei meu atestado de...de... Dei a liberdade pra ela!” (Hilza)

Passados mais de 20 anos, não só Rute, mas também Hilza sabe Libras fluentemente. Ela lidera o Ministério de Surdos na igreja evangélica que frequenta, com o apoio da filha, que atua ativamente em atividades do Ministério de Surdos e da igreja como um todo. A igreja, onde, inclusive, foi realizada a entrevista, fica há algumas quadras de sua residência, em Jacarepaguá, no Rio de Janeiro. Mãe e filha já fizeram várias viagens pela igreja.

Eu já viajei muito com ela17, né? Duas, assim, foram especiais. Foi pra São Paulo, pela Haggai. E foi pra Eloi Mendes, que esse já foi pela... Foi um trabalho missionário aqui da igreja que foi, assim, inesquecível! E aí foi inesquecível mesmo! E nós íamos agora pro Amazonas. [...] Sempre eles estão viajando. Fazendo uma vez no ano... O pastor sempre faz assim. Nós íamos pra África. Senegal. Mas aí houve a necessidade, né? O pastor... Esse pastor lá de... das regiões... é... regiões ribeirinhas... Teve contato com ele, eles apresentaram que lá tem muita carência... Estiveram no Cariri. Eu não pude ir por causa do trabalho. Aí agora vão pro Amazonas. Inclusive estão viajando agora em junho, mas o povo trabalha né? (Hilza)

Em uma dessas viagens missionárias, elas e o grupo de surdos e ouvintes que viajavam com eles foram apresentados a uma surda que, aos 33 anos de idade, não tinha língua alguma: nem Libras, nem a língua portuguesa – seja na modalidade escrita ou oral (leitura labial).

Entrevistadora: Mas como é que vocês se comunicavam com ela?

Hilza: Não, elas fizeram gestos... [...] Pra você ver: até o surdo que sabe língua de sinais, né? Nessa hora, a língua de sinais não serve.

E: Não adianta...

H: A gente vê que não adianta de nada. Então, foi através de gestos. Aí falaram de Jesus. Mas quem é Jesus pra ela? Aí num [sic.] adiantava fazer sinal né? Aí falaram... Eu sei que ela foi... fazendo... só com gestos. Mostraram o céu, aí perguntaram assim: quando ela morresse, o que que ia acontecer? Aí ela ficava assim né? Aí a Renata fazia como se fosse cavando o chão. Deitava no chão! Você precisava ver! [...] Super teatro! (Trecho da entrevista com Hilza)

Este relato nos mostra a incrível habilidade de comunicação desenvolvida pelas pessoas surdas, talvez por terem de passar desde cedo por diferentes situações em que é preciso vencer a barreira da língua oral.

17 Quando a entrevistada diz “ela”, está se referindo a sua filha surda Rute, que também foi entrevistada nesta pesquisa.

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Verifica-se aqui a parte triste da história de alguns surdos, que passam a vida toda privados de comunicação. Afinal, como exprimir sentimentos e emoções profundas sem uma língua, seja ela qual for? Ninguém precisa de uma língua para comprar um produto ou serviço, ou para transmitir informações simples e corriqueiras: um pouco de boa vontade e gestos bem simples podem dar conta disso. Mas para exprimir pensamentos abstratos, sentimentos e necessidades bastante subjetivas da mente humana, só conhecendo alguma língua, seja ela qual for, seja oral ou de sinais, conforme Gesueli (2006) ressaltou em seu trabalho.

Vygotsky (1981, 1984, 1989a, 1989b, 1993) concebe o homem como um ser sociocultural, afirmando que seu desenvolvimento se dá inicialmente no plano intersubjetivo (das relações sociais) e depois no plano intrasubjetivo (envolvendo o processo de internalização). No desenvolvimento assim concebido, a linguagem terá um papel fundamental, como mediadora das interações e da significação do mundo, ou ainda, a concepção de que o sujeito não significa o mundo para, a partir de então, representá-lo pela linguagem, mas, sim, que essa significação se constrói também pela própria linguagem. (GESUELI, 2006, p.280)

Hilza relata que sempre se preocupa bastante com os filhos, mas com Rute a preocupação é um pouco maior, não por ela ser surda, mas por saber que a sociedade não é totalmente inclusiva e acessível como ela acha que deveria ser.

Hilza: Claro que eu sempre fico... “Não, tá tudo bem...” Isso por fora! Entrevistadora: (risos) Mas por dentro...

H: Por dentro, Dafny... Acho que não só porque ela é surda, não. Acho que qualquer coisa... É questão de filho... Mas na questão do surdo...

E: Você fica assim com seus outros filhos... que são ouvintes? H: Fico. Mas assim... Mas com ela eu fico muito mais.

E: Uhum.

H: Por essa questão... Que a gente sabe que num [sic.] tem acessibilidade a tudo! (Trecho da entrevista com Hilza)

Ela salienta a importância de os surdos conhecerem a língua portuguesa, para poderem interagir com o mundo. “Surdo tem que conhecer um pouco da língua portuguesa. Porque como? Só Libras, só Libras, só Libras... Num [sic] pode! O mundo não é surdo, né? A gente sabe disso...” (Hilza)

Em outras ocasiões, Hilza relatou que só ingressou na faculdade por incentivo de Rute. Hilza havia concluído o Ensino Médio e já estava há anos sem estudar. Em 2006, Rute iniciou seus estudos em uma instituição pública, no curso de Pedagogia. Então, estimulou a mãe a tentar o vestibular no ano seguinte.

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Seguindo os conselhos da filha, mas com poucas esperanças de sucesso, Hilza prestou o vestibular para o mesmo curso e passou. Atualmente, Hilza já cursou todas as disciplinas referentes a esta graduação e está em fase de elaboração de sua monografia. Rute já teve sua colação de grau.