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A tentativa de golpe midiático-militar e a guerrilha informativa

O início de 2002 a imprensa se torna o campo de batalha entre governo e oposição. Maringoni afirma que “o que se via em programas de TV e de rádio e nos jornais estava longe de ser apenas uma coleção de notícias esparsas contra o presidente. Tratava-se de uma verdadeira campanha. Não era necessário ser chavista para avaliar as coisas dessa maneira” (MARINGONI, op. cit., p. 123). O jornalista venezuelano Adrián José Padilha Fernández, lembra que:

Já na época da campanha eleitoral de 1998, o embate simbólico contra Chávez foi brutal. Desde um processo de “demonização” até o uso do discurso norte-americano da “guerra fria” ao falar da ameaça castro- comunista. Após o triunfo da proposta bolivariana, grandes batalhas se desenvolvem nos espaços midiáticos. El Nacional e El Universal, entre os principais jornais, emissoras de rádio espalhadas pelo território nacional e, principalmente, canais de televisão como Venevisión, Globovisión, RCTV, entre outros, não dão quartel para a ação governamental. A cobertura para os opositores do governo é total, as críticas têm grande destaque, aos poucos, os comunicadores da grande mídia vão assumindo um protagonismo, como agentes públicos. (FERNÁNDEZ, 2010, p. 59-60).

Segundo relato de outra jornalista, Blanca Eekhout, uma das peças anti-Chávez mostrava uma cabeça humana cortada e jogada numa frigideira, com óleo quente, com um

113 Segundo o governo, a manifestação teve alguma expressão na capital, mas não repercutiu no interior. A oposição, entretanto, alega que 90% das atividades econômicas foram paralisadas. (Cf. MARINGONI, 2009, p. 121).

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locutor que anunciava “Se Chávez ganhar, muita gente vai perder a cabeça” (ROVAI, 2007, p. 23). A partir da eleição, “o discurso dos meios é unificado por um instrumento de padronização da cobertura, conhecido pelos venezuelanos como ‘uma sola voz’. Trata-se de um processo de concentração de conteúdo (...) em que um repórter faz o trabalho para todos os veículos e o tom editorial é formatado verticalmente” (idem, p. 29).

De sua parte, o governo responde com o programa de rádio “Alô, Presidente”, veiculado semanalmente pela emissora Rádio Nacional de Venezuela, posteriormente encampada pelo canal Venezolana de Televisión, indo ao ar aos domingos a partir das 11h. Conduzido pelo próprio presidente, o programa se constitui em um dos lugares sociais primordiais da construção do discurso bolivariano. Chávez atua “como um animador de auditório. Bebendo café, conversa por telefone com os telespectadores e anota seus problemas. Aborda questões do governo e ataca adversários, em meio a citações de feitos de Simón Bolívar, a quem costuma evocar em todos os seus discursos” (idem, p. 31).

Foi a edição do dia 7 de abril desse programa que serviu de estopim para o golpe quatro dias depois. Ao vivo, Chávez demite parte da diretoria da PDVSA (Petróleos de Venezuela S.A.), usando um apito após anunciar cada um dos nomes dos demitidos. O ato é considerado ditatorial114 e pretexto para a convocação de uma greve geral, amplamente anunciada pelos meios de comunicação para o dia 11.

Naquele dia, uma multidão se concentra em frente à sede da empresa, com cobertura ao vivo pelos principais veículos comerciais. Pedro Carmona, presidente da Fedecamaras (Federação de Câmaras e Associações de Comércio e Produção da Venezuela), e Carlos Ortega, da Central de Trabalhadores da Venezuela, conduzem o movimento e anunciam a passeata rumo o Palácio de Miraflores, sede do governo, para pedir a renúncia do presidente.

Ao mesmo tempo, lideranças governistas convocam apoiadores para manifestarem-se em frente ao Palácio. O confronto seria inevitável. Chávez tira do ar os canais de televisão, por incitarem a provocação. Sua estratégia dá errado. As emissoras continuam a transmitir pelos canais a cabo, exibindo imagens da marcha sendo recebida por franco-atiradores,

114 O próprio Chávez viria a fazer a mea culpa, afirmando posteriormente que aquele fora um abuso de sua parte (MARINGONI, 2009, p.125).

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atribuídos a chavistas, o que ficou posteriormente demonstrado não corresponder à realidade: de outro ângulo, podia-se perceber que os manifestantes chavistas estavam a pelo menos 1,5 quilômetro de distância de onde ocorreram os tiros. A edição tendenciosa das imagens foi amplamente documentada115.

Mas naquele momento, as emissoras comerciais difundem intensamente o “massacre” e tomam o único meio de contato do governo com a população, o canal estatal 8. A situação fica insustentável com a ocupação do Palácio por militares que não mais reconhecem Chávez como presidente. Ele não renuncia, mas é detido e levado pelos generais.

No dia seguinte, Carmona se auto-proclama chefe do país. Os meios de comunicação comemoram116. Mas a população não se conforma e vai às ruas. O caos se instala por dois dias e a televisão local nada mais veicula a não ser filmes e desenhos animados. Como relata Rovai, populares cercam os jornais em busca de informação, mas a operação editorial que estava em vigor era “Zero chavismo” (idem, p. 56). Jornais, rádios e TVs comunitárias são fechados pelo governo golpista. É aí que a criatividade da população aflora: telefone, internet e até mesmo postes de luz são usados como meios de comunicação. “Os motoboys passavam com barras de metal batendo neles e fazendo um barulho ensurdecedor. Era a senha para que as pessoas saíssem para receber informação” (ROVAI, 2007, p. 59). Assim, a população se organizou e virou o jogo. Na noite do dia 13, Chávez volta a Miraflores, onde é esperado por milhares de pessoas. O golpe acaba, mas não a batalha com a imprensa. “Nenhum dos meios comerciais de comunicação da Venezuela realizou a cobertura da volta de Hugo Chávez ao Palácio Miraflores” (idem, p. 81).

Rovai denomina a tentativa de golpe de 11 de abril de 2002 como midiático-militar, para diferenciá-la de outra que se seguiu naquele mesmo ano e início do seguinte, que ele prefere designar como midiático-econômica:

Entendo e defendo que, nos meses de dezembro de 2002 e janeiro de 1003, teve lugar outra investida golpista, mais complexa, mas nem por isso menos totalitária. Com a mídia capitaneando o processo, realizou-se por dois meses uma ação de desabastecimento de bens essenciais de consumo, principalmente para a população mais pobre, combinada com uma paralisação na produção de petróleo – que representa em torno de 50% da

115 Vide documentários A revolução não será televisionada e Otro Modo es possible... en Venezuela. 116 Vide reprodução das manchetes políticas do jornal El Universal no Anexo E. Nenhuma delas faz referência a golpe, mas reiteram a legitimidade do governo de transição.

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arrecadação fiscal do Estado venezuelano – e uma campanha de sonegação tributária. Tratou-se de um golpe midiático-econômico, a meu ver muito mais apropriado, por sua forma, à lógica e às dinâmicas daquilo que os neoliberais convencionaram chamar de “capitalismo moderno”. (ROVAI, 2009, p. 13).

Segundo o jornalista, esta foi a maior guerra informativa dos tempos modernos, em que as emissoras comerciais suspenderam a programação normal e veicularam milhares de anúncios publicitários contra o governo, com slogans e frases de efeito como: “Não vamos esquecer do dia 11 de abril”, “Eleições já”, “Não aceitamos um governo castrista”, “Natal sem Chávez”.

A oposição apelava, portanto, a um dos motes do discurso chavista: o nacionalismo. A resposta de Chávez foi a denúncia, pelos meios que dispunha, da parcialidade da imprensa (como fez Lula na campanha de Dilma, em 2010, como visto no capítulo anterior). O resultado foi o acirramento do confronto, que culminou com a paralisação da produção nacional por 63 dias. Resultado: “interrupção da produção de petróleo, sabotagens, fuga de capitais, brutal queda da atividade econômica e retração das exportações” (MARINGONI, 2009, p. 139). Este paro empresarial, mesmo sem os apelos midiáticos no golpe anterior, causam danos profundos ao governo, pelo impacto que tem sobre o cotidiano da população, uma vez que passam a faltar comida, bebida, gasolina e gás. Shopping centers fecham e escolas particulares suspendem as aulas.

O bloqueio econômico acaba com a retomada pelo governo do navio petroleiro Pilín León, que permaneceu 17 dias dominado pelos grevistas. Rovai relata depoimento de Chávez, em 2003, em que diz ter havido naquele momento uma “guerra eletrônica. Enquanto os trabalhadores fechavam manualmente as válvulas, os gerentes as abriam por computadores e à distância. Eu, que sou um militar treinado para o combate, tive de me cercar de jovens de 15 anos, esses hackers, para guerrear contra essa sabotagem eletrônica” (CHÁVEZ apud ROVAI, 2007, p. 99).

Foi um clima de guerra, com sabotagens que envolviam desde a destruição de plantações e a interrupção de estradas até a paralisação dos empresários (e não dos trabalhadores). Mas nessa guerra, Chávez já contava com uma arma: os meios de comunicação alternativa.

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Mesmo sem o poderio dos grandes conglomerados de mídia, rádios, TVs e sites comunitários tiveram um papel fundamental na difusão da contra-informação predominante117.