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Assim como no Brasil e na Venezuela, a campanha de 2009/2010 no Chile também recorreu aos três tipos clássicos de mitos políticos, mas com diferente enfoque.

O mito da Idade de Ouro foi o que prevaleceu. Todos os candidatos, mesmo o governista, apregoaram o caminho para um Chile melhor, com mais empregos, mais justiça e oportunidades para todos.

O mito do herói foi menos recorrente. Para Piñera, o herói é o povo, buscando gerar um sentido de participação popular. Na campanha dos demais, o próprio candidato seria o condutor da nação rumo ao país desejado. Nenhuma campanha recorreu à figura de Allende (que preferiu se suicidar a entregar o país às forças militares) como inspirador do ideal de socialismo. Nem mesmo o candidato da coalizão que combateu a ditadura recorreu a ele. O sonho socialista não esteve presente nas propostas, a não ser na de Arrate (que ficou com 6,21% dos votos). Frei também não recorre ao mito “maternal” que Bachelet representa. Sua campanha se apóia nele mesmo, o herói cujo passado o credenciaria para a Presidência.

No Chile, o desejado não é mais a “via chilena do socialismo”, mas sim uma ideologia do desenvolvimento, que promova a solução de questões privadas, como educação, saúde, emprego, crédito, impostos: uma soma de demandas individuais que devem ser bem

150 Tradução livre: Porque ele deve muito a seus colegas empresários, a direita pinochetista. E, por casualidade, muitos são construtores.

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gerenciadas pelo mais competente. O “herói” atual é o executivo bem sucedido que promove o progresso. Quando o “povo fala” nas peças publicitárias, é para expressar justamente seus anseios particulares. O “Eu” (individual) é o centro do discurso. Não há um sentido de coletivo.

O mito do complô também se fez presente em todas as campanhas. Cada candidato colocava os demais como símbolo da não-mudança. Piñera atacou diretamente apenas a Concertación. No segundo turno, buscou apoio de Marco, integrando em sua campanha membros de seu comando. Arrate buscou diferenciar-se dos demais, mas apoiou Frei no segundo turno. Marco “bateu” em todos, colocando-se como o único capaz de conduzir o país para a mudança desejada. Só se manifesta a favor de Frei às vésperas do segundo turno. Frei atacou prioritariamente a Piñera como o grande inimigo. Mas foi de dentro da própria Concertación que recebeu as maiores críticas.

A campanha chilena viu também a ascensão de novas formas de comunicação dos candidatos, com o uso das redes sociais digitais tanto como recurso de propaganda, como de ataque aos adversários. Páginas na internet também surgiram como espaço para debate entre as propostas dos candidatos151. Ainda que não tenham sido objeto deste estudo, esses novos espaços reiteram a percepção de que os meios de comunicação de massa não são os únicos porta-vozes dos atores políticos na atualidade. É o que discutirei a seguir, ao relacionar as campanhas do Brasil, Venezuela e Chile.

151 Alguns sites independentes: Fundación Ciudadano Inteligente: www.votainteligente.cl (no ar em 2011); Fundación para Superación de la Pobreza: www.tedoymivoto.cl (fora do ar em 2011); e Universidad de la Frontera: www.presidencialestic.ciisoc.cl (fora do ar em 2011).

201 CONSIDERAÇÕES FINAIS

CONVERGÊNCIAS E DIVERGÊNCIAS NO DISCURSO MIDIÁTICO DAS CAMPANHAS PRESIDENCIAIS NA AMÉRICA LATINA

Neste início do segundo decênio do século XXI, há pelo menos três estratégias discursivas que criam as representações simbólicas da democracia representativa na América Latina: uma mais focada no Estado, como no caso do Brasil, outra na comunidade, como no caso da Venezuela, e uma terceira, no mercado, sendo o Chile o exemplo paradigmático. Para além da percepção de que, com a ascensão de presidentes considerados progressistas, a América Latina se dividiria em dois blocos (pró ou contra a Alca), vê-se uma clivagem com variadas nuanças.

Ainda que prevaleça o modelo neoliberal na economia em todo o continente, há diferentes matizes de posicionamento frente à hegemonia do livre mercado, com foco no fortalecimento dos mercados internos de consumo popular, na integração regional e nas políticas sociais. A Venezuela é o exemplo mais contundente desse posicionamento e, não por menos, seu presidente Hugo Chávez enfrenta uma “guerra” midiática tanto nacional como internacionalmente. No Brasil, Lula também foi criticado, durante a campanha de Dilma Rousseff, em virtude de seu posicionamento em relação à liberdade de imprensa. E, mesmo no Chile, que desde o retorno à democracia pós Pinochet mantém claramente uma política econômica neoliberal, vê-se uma busca da população por uma maior participação nos destinos políticos do país e a demanda por programas sociais. Nos três países, novos caminhos estão sendo buscados.

Percebe-se, nos três casos, o uso dos mitos políticos, tanto na propaganda dos candidatos como na cobertura da imprensa tradicional. Os três tipos clássicos de mito são recorrentes nas três tendências verificadas, mas há uma maior prevalência de um tipo sobre outro em cada país.

Na Venezuela, a propaganda chavista recorre fundamentalmente ao mito do herói. No caso, o herói nacional é Simón Bolívar, a quem Chávez tenta configurar-se como continuador. Daí que a propaganda e a imprensa anti-chavista apelam justamente para a desconstrução

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deste mito, por meio de qualificações como um canastrão, bufão, manipulador, ditador, populista ou mesmo tirano. Não se questiona em primeira instância o projeto socialista proposto (ainda que este possa ser o ponto fundamental da divergência), mas fundamentalmente a figura de Chávez. Por meio da desqualificação do “herói”, desqualifica- se consequentemente o ideal de sociedade a ser construída.

No Brasil, ainda que a figura do salvador da pátria tenha sido um recurso também utilizado em 2010, este mito foi muito menos importante agora do que na campanha de 1989, quando Collor foi eleito, construindo sua identidade como a do “caçador de marajás”. O que mais prevaleceu nos discursos midiáticos, seja na propaganda dos candidatos, seja na imprensa, foi a lógica do complô: escândalos, acusações mútuas, ameaças, desqualificação do projeto adversário. A “estratégia do medo” esteve presente durante toda a campanha. Após a representação da ocupação do poder por parte do povo na figura de um presidente operário oriundo das classes mais pobres da população, as lutas simbólicas passam a se dar no campo do gerenciamento da res pública. Privilegia-se, assim, o discurso da capacidade tecnocrática e busca-se apontar os interesses privados dos grupos políticos, enfatizando a imagem do complô.

No Chile, nem o herói salvador da pátria, nem o complô foram os mitos dominantes. Aqui, o que se viu foi o discurso da Idade de Ouro, com apelo para a esperança num futuro melhor, mais feliz, mais rico, sem ameaças.

Reiterando: ainda que os três tipos de mitos tenham sido recorrentes nas campanhas dos três países, é possível identificar a primazia em cada caso. Nesse sentido, é plausível ainda estabelecer uma possível relação entre as lógicas de regulação apregoadas por Boaventura de Sousa Santos e o mito político clássico que prevaleceu em cada campanha eleitoral para a Presidência da República nos três países analisados, como indicado no Quadro 21.

QUADRO 21 – Relação entre a lógica de regulação e o mito político prevalente

País Lógica de regulação Mito clássico prevalente

Brasil Estado Complô

Chile Mercado Idade de Ouro

Venezuela Comunidade Herói, salvador da pátria

Fonte: Síntese elaborada a partir da análise das campanhas presidenciais e de sua relação com as lógicas de regulação de Boaventura de Sousa Santos e mitos políticos (Cf. capítulo 2).