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Mídias governamentais ou públicas?

A discussão que se coloca, portanto, é se os investimentos desses novos governos latino-americanos em comunicação não estariam se reduzindo a mero recurso publicitário, para perpetuação no sistema.

Vejamos, então, alguns casos. A Telesur (canal criado em 2005 e financiado pela Venezuela, Cuba, Argentina, Uruguai, Equador, Nicarágua e Paraguai) tem como compromisso difundir os valores desta ampla região, divulgar sua imagem, debater suas ideias e transmitir seu próprio conteúdo (e não apenas de um país e de um governo). A emissora se autoproclama, em seu site29, como:

TeleSUR es un multimedio de comunicación latinoamericano de vocación social orientado a liderar y promover los procesos de unión de los pueblos del SUR (concepto geopolítico que promueve la lucha de los pueblos por la paz, autodeterminación, respeto por los Derechos Humanos y la Justicia Social).

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Somos un espacio y una voz para la construcción de un nuevo orden comunicacional. (Autoapresentação disponível no site da Telesur).30

O próprio caráter associativo desta iniciativa já derruba o argumento de se tratar de mero recurso propagandístico e eleitoral. Além de contar com mais de 80% de conteúdo informativo em sua programação, a cobertura jornalística prioriza questões sociais, comunitárias e culturais na América Latina.

O Brasil criou seu próprio projeto de comunicação com o Canal Integración31 (vinculado à TV Brasil), que objetiva estimular o intercâmbio de informações culturais, jornalísticas e institucionais entre os países da região, de modo a favorecer sua integração.

Outras experiências são o Vive TV e o Encuentro, canais educativos criados pelos governos da Venezuela e Argentina, com conteúdos educativos, culturais e informativos. Sua premissa é que “o cenário midiático substitui o espaço público”32. Sua proposta é de “recuperar a comunicação como um espaço para o encontro verdadeiro [....], ligado à participação protagonista do povo”, pois leva em conta sugestões discutidas com organizações comunitárias para definição de sua programação.

Além desses exemplos de ação pró-ativa dos governos progressistas para estimular uma comunicação alternativa, verifica-se também várias iniciativas para minimizar a contração monopolítica e mercantil dos meios. No Equador, foram instituídas várias leis para impedir a livre associação entre meios de comunicação e poder econômico. A nova Constituição do país, de 2008, estabelece o “direito dos cidadãos à comunicação livre, equitativa e includente”.

30 Tradução livre: “A Telesur é um multimeio de comunicação latino-americano de vocação social orientado para liderar e promover os processos de união dos povos do Sul (conceito geopolítico que promove a luta dos povos pela paz, autodeterminação, respeito pelos direitos humanos e pela justiça social). Somos um espaço e uma voz para a construção de uma nova voz comunicacional.” A própria autodefinição traz implícita uma ideia de ampliação, potencial, dos espaços para vozes até então excluídas. Nesse sentido, contrapõe-se à hegemônica norte-americana CNN (Cable News Network), que, segundo o jornal Enquirer, é líder absoluta em termos de audiência. (Fonte: http://www.enquirer.com/editions/2000/05/28/loc_kiesewetter.html)

31 http://www.canalintegracion.ebc.com.br/tvbrasil.html

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Ainda que seja precipitado asseverar que as novidades que estamos presenciando na América Latina venham a se concretizar como mudanças efetivas nas relações entre mídia e política (pelo menos nos parâmetros amalgamados ao longo do século XX), parece que, de fato, se vislumbra uma nova perspectiva de realização de políticas públicas focadas em comunicação.

Nesta travessia rumo ao pós-neoliberalismo, caberia ao Estado um papel regulador, para harmonizar os direitos à informação e à diversidade cultural, frente aos ainda vigentes valores de sucesso econômico a qualquer custo e ao uso da mídia como estratégia de poder e manipulação de uma massa incauta para alcançar tais fins.

Cabe, agora, avaliar mais detidamente se essas novas políticas comunicacionais não apenas reforçam o mercado cultural e a lógica do espetáculo, como apregoa Guy Debord (1991), transformando a realidade em simulacro, ou se criam novos sentidos, permitindo que vozes dissonantes sejam ouvidas, com a inserção de novos atores no cenário político latino- americano. É nesse sentido que se buscará, a partir da análise das mensagens dos candidatos à Presidência da República do Brasil, Chile e Venezuela e da cobertura jornalística realizada nesses países, verificar as possíveis convergências e divergências midiáticas nas campanhas eleitorais, como será visto a seguir. Mas, antes, convém resgatar os pressupostos conceituais e metodológicos da análise.

65 CAPÍTULO 2

PRESSUPOSTOS CONCEITUAIS E METODOLÓGICOS

Este trabalho se insere numa reflexão mais ampla sobre o momento em que vivemos e os caminhos que se vislumbram para a sociedade contemporânea. Assim, antes de proceder à análise propriamente dita do material empírico (as campanhas eleitorais dos candidatos à presidência da República no Brasil e em outros países da América Latina, bem como a cobertura jornalística que os principais jornais desses países fizeram sobre elas), cabe aqui localizar e posicionar epistemologicamente minha reflexão, bem como os referenciais teóricos que utilizei na aplicação analítica.

Nesse sentido, apresentarei em seguida este contexto, a partir do debate sobre conceitos de modernidade e pós-modernidade, visitando autores como Rouanet, Harvey, Giddens, Touraine e Bauman, buscando identificar como a lógica do mercado prevalece na sociedade atual, para então contrapô-los33 à visão de Boaventura de Sousa Santos, que dirigiu minha percepção na análise desenvolvida34. Ou seja, os três princípios que regulam a sociedade atual – Mercado, Comunidade e Estado – estão mais ou menos presentes em todos os discursos, seja dos candidatos, seja da imprensa, mas há mais a prevalência de um sobre outro em determinados países: no Brasil, o Estado; no Chile, o mercado; e na Venezuela, a comunidade. Dessa maneira, aqui aprofundo esses conceitos, cujas evidências serão buscadas empiricamente nos próximos capítulos, por meio da identificação dos mitos construídos midiaticamente, seja pela propaganda, seja pela imprensa. O conceito de mito, portanto, merecerá um tópico exclusivo, onde explicitarei seu significado enquanto narrativa que constrói valores e sistemas simbólicos que explicam o mundo.

33 Mais do que contrapô-los, como se estivesse a refutar suas visões e propostas, o que intento aqui é a ampliação de suas ideias, destacando especialmente as convergências com a linha adotada, ainda que busque apontar as divergências. Essa reflexão deve, portanto, ser vista como o resgate de uma trajetória pessoal, que se pretende compartilhar com o leitor.

34 Parte dessas reflexões já foi discutida no artigo “A supremacia do mercado na política e os

movimentos sociais emergentes na América Latina: questões comunicacionais e midiáticas”, de minha autoria, publicado na Revista Ponto e Vírgula, nº 2, 2º semestre de 2007.

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Aqui também caberá resgatar a metodologia empregada na análise dos textos da propaganda e do jornalismo, como a semiótica, utilizada como instrumento para investigar os movimentos de sentido das mensagens publicitária e jornalística. Especificamente em relação à cobertura jornalística, recorri ainda aos conceitos de agenda-setting e enquadramento de mídia. Esses referenciais serão, neste capítulo, melhor discutidos, bem como descritos os procedimentos empreendidos na análise do corpus.