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Debate teórico e analítico complexo e de grande relevância para o campo das teorias

sociais, as reflexões acerca das práticas e do comportamento dos movimentos sociais têm sido tema de grandes discussões e debates entre seus estudiosos. Assim como o tema, as abordagens conceituais que o versam se concebem sobre paradigmas diversos, alinhados a perspectivas que contemplam os aspectos situacionais, históricos e socioeconômicos em que ocorrem as ações coletivas. Em busca de organizar um quadro conceitual e sistemático sobre o estudo dos movimentos sociais, alguns autores realizam o esforço de agrupar suas correntes de pensamento em diferentes conjuntos, tendo em vista, principalmente, as singularidades predominantes tanto em linhas teóricas quanto em relação aos critérios geográfico-espaciais em que se realizaram. Tentaremos, aqui, elencar os principais aspectos dos múltiplos olhares

deste campo de pesquisa a partir das subdivisões encontradas em Alexander (1998) e Gohn (2011).

Partindo de uma primeira abordagem, Alexander (1998) irá realizar uma divisão entre concepções teóricas de paradigmas divergentes. Ele as denomina de modelo clássico e seus

deslocamentos, linha de pensamento predominantemente europeia, que preconiza o

pensamento marxista em um período histórico clássico e posteriormente se detém as suas reinterpretações; e teoria de mobilização de recursos, referente a uma linha de pensamento norte-americana que irá se ocupar do estudo organizacional dos atores coletivos. Já em outra categorização, Gohn (2011) nos ajuda a constatar a existência de quatro grandes paradigmas para pensar as ações coletivas, divididos por critérios geográficos eles são denominados pela autora de: paradigma norte-americano, paradigma dos novos movimentos sociais, paradigma

marxista (ambos europeus) e paradigma latino-americano.

Ao resgatar as abordagens clássicas sobre a ação coletiva, Alexander (1998) ressalta que essa linha de pensamento seguiu um quadro de referência estabelecido por uma interpretação histórica das revoluções. Nessa perspectiva, os movimentos sociais são vistos enquanto mobilizações de massa que direcionam suas lutas em antagonismo ao poder do Estado. A partir dessa abordagem, as ações coletivas estão relacionadas fortemente à ideia de revolução de classes sociais oprimidas. Para o autor, “o modelo clássico de interpretação dos movimentos sociais é fortemente impregnado de materialismo ontológico e realismo epistemológico, e de uma especial inflexão conferida a esse empirismo filosófico pela emergência da sociedade industrial” (ALEXANDER, 1998, p. 5).

Das palavras de Alexander podemos constatar a importância de Karl Marx como

ideólogo dos movimentos sociais revolucionários. A principal contribuição de Marx13 para a análise das ações coletivas se dá com o estabelecimento da relação entre o universo da teoria e ação empírica através do conceito de práxis social. Para Scherer-Warren (1984), a noção de

práxis, enquanto ação para um determinado fim, irá contribuir para o entendimento dos

movimentos sociais do início do século XX como produtores de transformações sociais. Ainda de acordo com a autora, um movimento social, partindo da concepção marxista clássica, é definido como:

uma ação grupal transformadora (práxis), voltada para a realização dos mesmos objetivos (o projeto), sob orientações mais ou menos conscientes de princípios

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Como esclarece Gohn (2011), sabe-se que Marx não se dedicou a criar uma teoria sobre os movimentos sociais, “ele desenvolveu um estudo sobre a sociedade capitalista, a partir da sua gênese histórica e localizou o estudo da mercadoria como ponto de partida para a compreensão de todo o processo de acumulação e desenvolvimento das relações sociais capitalistas” (GOHN, 2011, p.176).

valorativos comuns (a ideologia) e sob uma organização diretiva mais ou menos definida (a organização e sua direção) (SCHERER-WARREN, 1984, p.20).

São os elementos fundamentais presentes na teoria de Marx – práxis; projeto;

ideologia e direção – que irão, segundo esta teoria, definir a dinâmica dos movimentos

sociais. De acordo com o prisma marxista, as ações coletivas irão se referir, portanto, aos processos de transformação de alguma realidade social oprimida. Como nos esclarece Gohn (2011), o marxismo não é apenas encarado enquanto uma teoria especulativa sobre os movimentos sociais, mas sim enquanto uma teoria que irá fundamentar a ação prática dos mesmos – dada a importância do conceito de práxis, articulador entre o universo da ação e da teoria em um conjunto de atores coletivos.

O estudo dos movimentos sociais sobre a esteira do paradigma clássico marxista recai, principalmente, na análise do movimento operário e de classes europeu na sociedade industrial dos séculos XIX e XX. Estes estudos decorrem não de Karl Marx, mas de alguns de seus leitores e teóricos mais árduos, que sobre sua teoria se debruçam e trazem o entendimento da práxis revolucionária para a compreensão sociológica no início do século XX. Como principais contribuições desse pensamento podemos citar os trabalhos de Gramsci, Lukács, Rosa de Luxemburgo e Marcuse (GOHN, 2011; SCHERER-WARREN, 1984). Em definição sobre o ponto de vista sociológico da importância da teoria marxista para pensar os movimentos sociais Scherer-Warren afirma que:

Marx foi um dos mais importantes criadores de um projeto de transformação

radical da estrutura social, projeto este de superação das condições de opressão de

classe. Para a realização deste projeto, além do amadurecimento das condições estruturais propícias, exige-se também uma práxis revolucionária das classes exploradas (SCHERER-WARREN, 1984, p. 35, grifos do autor).

Quanto às reinterpretações mais recentes da teoria marxista para pensar os movimentos sociais, os estudos referem-se mais a uma perspectiva da cultura política. Para Gohn (2011), a nova abordagem “não trata de um estudo das revoluções em si, mas do processo de luta histórica das classes e camadas sociais em situação de subordinação” (GOHN, 2011, p. 171). A ênfase dada a esses novos estudos, denominados neomarxistas, destaca a espontaneidade dos movimentos sociais e a mobilização sobre interesses recorrentes de problemas do cotidiano. Sob este ponto de vista “o que gera os movimentos sociais são organizações de cidadãos, de consumidores, de usuários de bens de serviço” (GOHN, 2011, p. 174). As problemáticas de classe social, nessa perspectiva, são vislumbradas para refletir as

origens do movimento social bem como os interesses ideológicos que fundamentam suas ações.

Em outra perspectiva, a teoria da mobilização de recursos (MR) ou paradigma norte-

americano pensa as ações coletivas como um conjunto de ações sociais em âmbito

organizacional. Esta teoria tem como base explicativa a abordagem dos movimentos sociais como grupo de interesses. Ela foi difundida nos Estados Unidos a partir da década de 1960, levando em consideração o rompimento com percursos teóricos anteriores, como os da sociologia clássica norte-americana14. Para Alexander (1998), a teoria da MR enxerga os movimentos sociais como “exercícios calculistas que visam à “fabricação do descontentamento” a fim de mudar a ‘infraestrutura da sociedade’” (ALEXANDER, 1998, p. 8).

Sobre a ótica dessa teoria, difundida e utilizada para a compreensão dos movimentos

de luta civil na América do Norte, as ações coletivas não são observadas de forma distinta a qualquer outro grupo social de interesse, como partidos políticos, por exemplo. De forma contrária, como nos esclarece Gohn (2011, p. 51), elas são percebidas como membros de uma disputa por adeptos e financiadores em um mesmo campo e “competem entre si pelas mesmas fontes de recursos e oportunidades”. Assim, a MR está fortemente amparada na racionalidade dos processos organizacionais das ações e, dessa forma, mais importante do que identificar os motivos de uma mobilização seria explicar seu processo de organização. De acordo com Alonso (2009), a teoria da MR assegura a presença dos recursos humanos (ativistas) e materiais (financeiros) aplicando a sociologia das organizações ao seu objeto e,

definindo os movimentos sociais por analogia com uma firma. A racionalização plena da atividade política fica clara no argumento da burocratização dos movimentos sociais, que, gradualmente, criariam normas, hierarquia interna e dividiriam o trabalho, especializando os membros, com os líderes como gerentes, administrando recursos e coordenando as ações (ALONSO, 2009, p. 52).

Conforme Gohn (2011), os teóricos da MR argumentam que os movimentos sociais devem ser entendidos como organizações em conflito envolvidos em relações que demandam práticas de poder e disputa por recursos comuns. Dessa forma, a principal lógica para a compreensão dessa abordagem requer a identificação do processo de organização e

racionalidade das ações coletivas.

Outro paradigma que Gohn (2011) destaca é o dos Novos Movimentos Sociais (NMS). Esta é também a corrente de pensamento que Alexander (1998) denomina de deslocamento da

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teoria marxista clássica. Este paradigma é difundido primeiramente na Europa a partir de novas perspectivas sobre o social que, de acordo com seus autores, não poderiam mais ser amparadas pelo materialismo histórico. Conforme Alonso, a teoria dos NMS nasce do extenuante debate sobre as possibilidades de revolução histórica e se coloca “contra explicações deterministas e economicistas da ação coletiva e contra a ideia de um sujeito histórico universal” (ALONSO, 2009, p. 53). Através desse “novo” olhar, este paradigma parte de explicações alicerçadas em uma teoria da mudança cultural, em vista disso, localiza seu enfoque analítico nos microprocessos políticos e na vida cotidiana dos atores sociais. Conforme destaca Gohn (2011), esta teoria busca em seus recortes da realidade observar a atuação de novos atores sociais e, por assim ser, “as categorias básicas deste paradigma são: cultura, identidade, autonomia, subjetividade, atores sociais, cotidiano, representações, interação política etc.” (GOHN, 2011, p.15).

Já na corrente de pensamento denominada por Gohn (2011) de paradigma latino-

americano, observa-se que o tema dos movimentos sociais sofre abordagens múltiplas, que

recorreram, principalmente, aos postulados teóricos europeus entre as décadas de 1970 a 1990. Conforme a autora, “falar de um paradigma latino-americano sobre os movimentos sociais é mais um colocação estratégica do que real” (GOHN, 2011, p.211). O que existia, na realidade, eram lutas e movimentos sociais peculiares aos que ocorriam na Europa no mesmo período, isto devido ao momento de ruptura das democracias políticas e da forte militarização dos países através de golpes ditatoriais. Scherer-Warren (2011) nos explica que, para pensar a teoria dos movimentos sociais na América Latina, é preciso estar atento a, no mínimo, dois fatores: (1) a história do desenvolvimento econômico, político e cultural latino-americano; e (2) a articulação entre o pensamento social constituído nesses países e o pensamento teórico internacional. Como parâmetros para desenvolver análises sobre movimentos sociais na América Latina, os pesquisadores aportavam-se aos postulados neomarxistas, para pensar as lutas populares, e para teoria dos Novos Movimentos Sociais, quando buscavam o entendimento dos movimentos de base cultural e identitária (GOHN, 2011). Posteriormente as análises passaram a realizar novas interpretações e até mesmo críticas a essas teorias, incorporando os aspectos mais significativos do contexto social ao qual ocorriam as ações coletivas.

Talvez a perspectiva analítica de maior relevância para o pensamento dos movimentos sociais na América Latina tenha ocorrido a partir da década de 1990, quando os pesquisadores aspiram à emergência de novos temas e passam a pensar os modelos de comunicação e

organização dos movimentos sociais. Nesse sentido, destacam-se os trabalhos que pensam os movimentos sociais sobre a perspectiva global e suas redes de interações. No Brasil, evidenciam-se as pesquisas desenvolvidas por Scherer-Warren (2005; 2006; 2013), Gohn (2013) e Machado (2007) com teorias em constante transformação, impacto de novas lógicas de organização como situado pelo contexto da sociedade em rede, como abordaremos no próximo capítulo.

Aproximamo-nos, assim, brevemente das diferentes abordagens do pensamento social que buscam recair seu olhar sobre os movimentos sociais e, a partir destas leituras, criamos um panorama geral sobre a vasta teoria que os compreende. As correntes de pensamento aqui elencadas nos possibilitam sistematizar, de acordo com enfoques particulares, o estudo dos movimentos sociais contemporâneos, levando em consideração as singularidades e adaptações, bem como as filiações teóricas através das quais eles são observados.

No sentido situacional e paradigmático que propõem os autores acima referenciados, filiamos nossos apontamentos sobre a Marcha das Vadias, em um primeiro momento – aquele de foco contextual – a partir da teoria dos Novos Movimentos Sociais. Sobre essa perspectiva teórica buscaremos sustentação para abordar nosso objeto de pesquisa em campo, visto que a Marcha das Vadias, enquanto um movimento autodenominado feminista, pressupõe a continuação e até mesmo a atualização de alguns processos históricos e organizacionais intimamente relacionados à mesma.

2.2 OS NOVOS MOVIMENTOS SOCIAIS: CONTEXTUALIZANDO A POLÍTICA