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3.1 TRAVESSIAS SOBRE UM CONCEITO: O GÊNERO E SUAS

3.1.1 Identidade, gênero, corpo e performance

Conforme vimos suscintamente, preocupados com a mulher, os primeiros estudos de gênero, concentraram-se em desvelar as formulações ideológicas impostas na ordem do natural e do biológico para justificar determinados comportamentos enquanto masculinos ou femininos. De acordo com Chanter (2011, p.15), “os primeiros argumentos feministas enfocavam a injustiça do fato de as mulheres serem excluídas de algumas atividades centrais, fundamentais da humanidade às quais os homens pareciam estar destinados por alguma ordem natural”. Este debate fez emergir inúmeras reflexões e problemáticas, requisitando junto ao campo teórico que estava sendo construído o endossamento crítico de seus posicionamentos e explicações que dessem conta da complexidade de seu terreno analítico.

Concordamos com Chanter (2011, p.09) quando declara que “o gênero é sempre já vivido, gestual, corporal, culturalmente mediado e historicamente constituído”. Para autora, não existimos através de uma masculinidade ou de uma feminilidade centralmente definidas, ao contrário, nos construímos e somos construídos culturalmente enquanto gênero na medida em que nos apropriamos de códigos historicamente estabelecidos. Assim, tão logo nascemos somos “sistematicamente treinados de acordo com nosso gênero”, ou, por aquilo que supõe nossa existência sexual: “expectativas são formadas, ideologias culturais são absorvidas, e se

espera que aquelas que sejam anatomicamente identificadas como garotas ajam como garotas, e que aqueles que sejam identificados como garotos ajam como garotos”. No interior desses códigos residem as disposições de dominação e poder que nos definem enquanto seres humanos em situação com o universo social.

Em um importante sentido, não se pode traçar o gênero como algo definitivo, pode-se dizer, no entanto, que tanto o gênero quanto o sexo são inteiramente culturais, já que o gênero é uma maneira de existir no corpo e o corpo é a situação social, ou seja, o campo de possibilidades culturais recebidas e reinterpretadas (SAFFIOTI, 1992). Assim, as construções de gênero só podem ser compreendidas quando elevadas ao espectro situacional dos sujeitos em relação às tramas sócio simbólicas com as quais eles negociam, interpretam e reproduzem o seu status de gênero. Para Saffioti (1992, p.189), identificar-se com uma posição de gênero demanda “de um impulsivo e ainda atento processo de interpretação da realidade cultural carregada de sanções, tabus e prescrições”. Nesse sentido, empreender uma política de identidade de gênero, não tem relação prescritiva com o papel sexual dos corpos, mas sim, com o modo de situar-se em corpo no interior de uma estrutura reguladora que organiza as práticas, os atos e as vivências, cabendo ao ser humano interpretá-las, organizá-las e performatizá-las.

É interessante destacar que a identidade de gênero está colada em nossas sociedades a corporificação. Butler (2013) nos diz que a identidade é característica descritiva de nossas experiências. Entendendo o gênero como um complexo in fluxo no interior de um discurso, esta autora assegura-se na ideia de que as identidades de gênero são cognoscíveis através da constituição performática dos corpos sociais. Assim, a identidade, por ser culturalmente inteligível, demanda a percepção do gênero não como a denotação de “um ser substantivo, mas como ponto relativo de convergência entre conjuntos específicos de relações, cultural e historicamente convergentes” (BUTLER, 2013, p.29). Nesse sentido, a identidade de gênero está relacionada à performatividade construída sobre o discurso do gênero.

Conforme pensa Louro (1997), o gênero é constituinte da identidade dos sujeitos assim como a classe social, a etnia e a nacionalidade. Refuta-se, aqui, a ideia da essencialidade classificatória do gênero na construção de uma identidade perene. Ao contrário, o ideal que recorre sobre as identidades de gênero compreende, assim como discutiu Hall (2011), as identidades dos sujeitos como plurais, mutáveis, por vezes, contraditórias e em constante processo de construção. Historicamente situadas e culturalmente vividas, as identidades de gênero transcendem a ideia dos papéis sociais e fazem parte de um

extenuante processo sobre o qual o sujeito se constrói e é construído em relação a suas práticas com o mundo. Identificar-se enquanto um gênero, portanto, tem relação com o que social e historicamente percebemos enquanto masculino e feminino. Para Louro (2007) as identidades de gênero:

estão continuamente se construindo e se transformando. Em suas relações sociais, atravessadas por diferentes discursos, símbolos, representações e práticas, os sujeitos vão se construindo como masculinos ou femininos, arranjando e desarranjando seus lugares sociais, suas disposições, suas formas de ser e de estar no mundo. Essas construções e esses arranjos são sempre transitórios, transformando-se não apenas ao longo do tempo, historicamente, como também transformando-se na articulação com as histórias pessoais, as identidades sexuais, étnicas, de raça, de classe ... (LOURO, 1997, p.28).

A identidade de gênero como estamos tratando aqui têm relação, em primeiro lugar, com o reconhecimento do sujeito, sempre em diálogo interpretativo com o Outro sobre sua posição de gênero e sobre a incorporação ou questionamento das normas, regras e estilos de ver e agir em situação ao ser mulher ou ao ser homem, bem como, ao viver no corpo da mulher ou do homem em performance com o mundo. Conversando minimamente com o que sabemos sobre a identidade coletiva24, a identidade de gênero configura-se, aqui, como o resultado inacabado da prática e da experiência individual dos sujeitos sobre seu gênero para a construção coletiva e ontológica do ser. No caso de nosso objeto de estudo sobre o que é ser um sujeito feminista atuante da Marcha das Vadias – SM.

Assim, ao aceitarmos a definição de que o gênero é uma construção in fluxo, incessante e inacabada, entendemos que as relações entre as posições de gênero (de homens e de mulheres) fazem-se através de discursos e representações situadas cultural e politicamente, as quais também estão em processo de mudança, seja para manutenção da ordem dominante ou para constituição do devir emergente:

isso supõe que as identidades de gênero estão continuamente se transformando. Sendo assim, é indispensável admitir que até mesmo as teorias e as práticas feministas — com suas críticas aos discursos sobre gênero e suas propostas de desconstrução — estão construindo gênero (LOURO, 1997, p.36).

Entende-se, assim, o gênero como uma categoria relacional de caráter arbitrário, e, portanto, construída social e culturalmente. Em meio à multiplicidade de concepções sejam elas, culturalistas, construcionistas ou desconstrucionistas, percebe-se que, a análise de gênero tem vocação em desmistificar a ordem social que a “naturaliza, ocultando sua própria

arbitrariedade” (PEREIRA, 2004, p.183). Fundamentado por um sistema simbólico e psicossocial, o gênero não deve, aqui, ser compreendido de acordo com conceituações fechadas. Assim, seu entendimento está configurado e inscrito histórico, social e culturalmente em meio a regras e normas de manutenção estrutural de ordem subjetiva (consciência) e objetiva (modos de ação) sobre o que é ser mulher, e o que é ser homem em nossas sociedades (BOURDIEU, 2007).