• Nenhum resultado encontrado

2.2 OS NOVOS MOVIMENTOS SOCIAIS: CONTEXTUALIZANDO A POLÍTICA

2.2.3 Categorias analíticas para definição dos movimentos sociais

Por estarmos tratando de um campo teórico sem interpretações fechadas, a definição de um movimento social não pressupõe consensos. É interessante, no entanto, que deixemos claras as nossas percepções sobre este fenômeno para que, através dos postulados teóricos que o refletem, possamos encarar nosso objeto de pesquisa sob uma perspectiva aproximada dos mesmos. Atemo-nos, aqui, em considerar os movimentos sociais a partir das proposições teórico-analíticas de Alain Touraine, Alberto Melucci e Manuel Castells. Dessa maneira, apresentamos teoricamente as percepções de cada autor para depois delimitarmos os conceitos analíticos que nos ajudarão a refletir a constituição de nosso objeto de empírico.

Com um olhar voltado a ação dos sujeitos, na perspectiva de Touraine (2009), a teoria dos movimentos sociais deve ser construída a partir do comportamento dos atores que o conduzem. Segundo ele, “um movimento social se define pelos atores que o animam e querem mudar o uso que é feito dos principais recursos de uma sociedade” (TOURAINE, 2009, p.172). Em termos gerais, a relevância do espectro da ação está localizada na ênfase que o autor transfere a categoria de figuração libertária do indivíduo/sujeito, o conceito de ator social. Gohn (2011, p. 143) afirma que, para Touraine, um movimento social deve

apresentar-se enquanto um tipo particular de ator coletivo, isto é, é necessário que os sujeitos em movimento estejam posicionados em relação a seu opositor e que “situem suas reivindicações a um grupo adversário no interior dos problemas da sociedade”.

Touraine propõe que, para a percepção analítica de um movimento social, é necessário que possamos identificar três elementos: 1) o ator, aquele que se estabelece a partir de seu reconhecimento enquanto sujeito e das questões referentes a um processo de identificação coletiva; 2) o adversário, contra qual o movimento social realiza sua oposição; e 3) o conflito, a partir do qual se estabelecem relações de embate e questionamento sobre demandas ideológicas e utilização de recursos socioculturais.

O conflito seria, assim, a base de enunciação de um movimento social. Para Touraine (2009), é somente através da expressão de um conflito que os indivíduos constroem um espaço de ação para sua prática enquanto sujeitos. Os conflitos estão baseados na ideia de resistência e divergência para com os sistemas de dominação, porém, sua simples determinação não aponta a existência de um movimento social, a saber: “existem muitos conflitos sem movimentos sociais, e muitos movimentos sociais, que mesmo comportando uma dimensão de conflito, atribuem um papel mais forte à afirmação das questões culturais do que o conflito propriamente dito” (TOURAINE, 2009, p. 175).

Um conflito, nesse sentido, partirá do embate e do enfrentamento de dois polos contrários, este embate, no entanto, longe de tensões concretas é simbólico. Ele busca ser construído em um processo de reestruturação ou negociação de condutas e decisões normativas de uma dada sociedade por meio de processos de visibilidade e representação. Por exemplo, em aproximação ao nosso estudo, podemos refletir brevemente como se desenvolve a esfera do conflito no movimento feminista: com uma luta que é eminentemente simbólica, o conflito do movimento feminista é fomentado através de uma relação de oposição ao sistema de dominação masculino. O movimento, assim, busca desenvolver este conflito penetrando no comportamento pessoal dos sujeitos, indagando, refletindo e agindo nos processos de educação e luta por direitos, ou seja, em processos de subjetivação socioculturais. Assim, o conflito não se furta a predisposições estruturais, mas a níveis de interação e contestação de práticas normativas naturalizadas, como, por exemplo, no questionamento dos binarismos sexistas propostos já na infância através de produtos culturais. O feminismo se propõe, dessa forma, a construir um conflito sobre essas práticas para poder desconstruir uma opressão imposta.

Voltando à teoria, em uma perspectiva similar a de Touraine, em Castells (1999) percebemos a proposição de dois caminhos para pensar os movimentos sociais: em primeiro lugar, eles devem ser compreendidos por seus próprios termos, ou por sua autodefinição; em segundo lugar, é preciso estabelecer uma relação entre os movimentos, conforme suas práticas, valores e discursos, com os processos sociais em que estão associados. Para o autor, os movimentos sociais devem ser caracterizados em relação a suas dinâmicas e interações para com os processos que os mantêm, segundo ele, os “movimentos sociais são ações coletivas com determinado propósito cujo resultado tanto em caso de sucesso como de fracasso, transformam os valores institucionais da sociedade” (CASTELLS, 1999, p. 20).

Castells não realiza demasiados esforços para construção de uma categoria sociológica para a definição de movimento social, como os demais autores, porém estabelece um cuidadoso diagnóstico sobre o cenário e a constituição dos movimentos sociais contemporâneos. Sua principal contribuição para esta pesquisa está na observância dos processos de comunicação e informação articulados pelas ações sociais no cenário da sociedade em rede, como veremos no capítulo IV. Tomando emprestada a definição de Touraine, Castells (1999, p. 95-96) irá construir sua adaptação analítica para a interpretação dos movimentos sociais. Segundo ele, podemos definir uma ação coletiva também através de três princípios: 1) a identidade que “refere-se à autodefinição do movimento, sobre o que ele é, e em nome de quem se pronuncia”; 2) o adversário, que irá se referir “ao principal inimigo do movimento social, conforme expressamente declarado pelo próprio movimento”; e 3) a

meta social/projeto18, que “refere-se à visão do movimento sobre o tipo de ordem ou

organização social que almeja no horizonte histórico da ação coletiva que promove”.

Em suas análises, Castells dá grande destaque, em similaridade ao contexto desta pesquisa, ao poder da expressão identitária dos movimentos sociais, conceituada como princípio unificador e articulador das ações coletivas em nosso século. Com vistas a precisar nossa abordagem, tomamos emprestada sua definição no ponto de vista analítico de que “não existem movimentos sociais “bons” ou “maus”. Todos eles são sintomas de nossas sociedades, e todos causam impacto nas estruturas sociais, em diferentes graus de intensidades e resultados distintos que devem ser determinados por meio de pesquisa” (CASTELLS, 1999, p. 95).

18

O autor se utiliza das duas expressões, meta social e projeto, para definir aquilo que um movimento social busca objetivar, preferimos nos utilizarmos da expressão projeto, pois ela está intimamente relacionada a um tipo de identidade coletiva, proposta aproximada as reflexões que objetivam esta pesquisa.

Com um olhar sobre uma vertente mais psicossocial do que os outros autores, Melucci (1989) dá aos movimentos sociais um enfoque analítico. Para o autor, “o que é empiricamente chamado de “movimento social” é um sistema de ação que liga orientações e significados plurais” (MELUCCI, 1989, p.56). Assim como na teoria de Touraine, Melucci concebe que, para fundamentar a análise dos movimentos sociais como objetos guarnecidos de sentido, é preciso olhar para eles através de uma teoria que contemple os sentidos da ação. Em suas palavras, “só a partir de uma teoria que dê fundamento à especificidade e à autonomia do agir social coletivo, ganha significado um campo do conhecimento que assume como objeto os movimentos sociais” (MELUCCI, 2001, p. 30). É interessante que busquemos uma aproximação ao que propõe o autor. Assim, perceber como se configura um movimento social hoje requer que nossas análises cumpram um exercício dinâmico de interação com as ações que envolvem esse movimento.

Definindo um movimento social como “uma ação coletiva, baseada na solidariedade, desenvolvendo um conflito, rompendo os limites em que ocorre a ação” (MELUCCI, 1989, p.57), Melucci avalia que as dimensões analíticas, conflito, solidariedade e rompimento dos

limites do sistema, nos ajudam a diferenciar os movimentos sociais de outras formas de ação

coletiva comumente associada a eles, como protestos e reivindicações. Como conflito entende-se “uma relação entre atores opostos, lutando pelos mesmos recursos aos quais ambos dão valor” (MELUCCI, 1989, p. 57). Já a solidariedade seria “a capacidade de os atores partilharem uma identidade coletiva” (MELUCCI, 1989, p. 57). Os limites do sistema consideram, para tanto, a variação das ações toleradas pelo sistema, e seu rompimento, o que extrapolaria as dimensões aceitáveis entre essas variações.

Esse processo de diferenciação trazido por Melucci, mas também argumentado por Castells e Touraine, é de suma importância, na medida em que o esforço de categorizar os conceitos precede a percepção desses fenômenos como ações que formam e são formadas por níveis complexos de reflexão e manutenção do empoderamento coletivo. Podemos nos voltar aqui à Marcha das Vadias, para assim exemplificarmos a complexidade deste processo. A ação de protesto que o movimento realiza, a marcha em si, não poderia por nós ser considerada como um movimento social propriamente dito, visto que ela se desenvolveria através de uma dinâmica combativa mais espontânea e concreta. No entanto, o processo que envolve a criação, organização e reflexão sobre as ações da Marcha das Vadias, tanto em

nível local como global19, bem como a ocupação urbana em formato de protesto, são, como um todo, o que poderíamos denominar analiticamente de movimento social.

Em uma proposição mais recente, Melucci (2001, p. 35) acrescenta a nossas reflexões que um movimento social também é “a luta contra um adversário para a apropriação e o controle de recursos valorizados por ambos”. Uma ação conflituosa está relacionada ao comportamento de atores divergentes em um mesmo sistema social. Portanto, partindo desse ponto de vista, sempre haverá um adversário para um movimento social e dessa relação de oposição é que se estabelecem as diretrizes para um processo de configuração de uma identidade coletiva e de um projeto de luta.

Aproximando-nos das definições dos autores acima referidos é perceptível que elas possuem aspectos particulares, às vezes mais centrados no âmbito da ação libertária do sujeito em conflito, como em Touraine, ou na perspectiva organizacional de um projeto comum, como em Castells, e até mesmo na questão do processo de oposição, como em Melucci. No entanto, nos é perceptível também que essas definições confluem no sentido similar de buscar a construção de postulados analíticos para a compreensão dos movimentos sociais conformados essencialmente em torno de questões culturais.

Por hora, doravante a apreensão das categorias analíticas propostas pelos autores, as tomamos emprestadas para análise de nosso objeto empírico. Sendo assim, buscaremos perceber o movimento social Marcha das Vadias a partir de quatro elementos constitutivos: o

conflito; a oposição; o projeto de reconhecimento e a identidade coletiva, como expressos em

nosso problema de pesquisa. Objetivamos verificar a pluralidade de significados, as potencialidades e os limites deste movimento social, preocupando-nos, especialmente, com a constituição de sua identidade coletiva a partir dos processos de comunicação em rede estabelecidos entre os ambientes em que esse movimento interatua.

Concebemos assim, a Marcha das Vadias como um movimento social que tem base constitutiva em elementos caracterizadores como a defesa de uma identidade coletiva e de um projeto de luta em relação a situações de oposição. As categorias analíticas trazidas aqui nos ajudam a sistematizar este estudo, mas não nos permitem enquadrar nosso objeto de pesquisa de maneira objetiva. Com o avanço de diferentes estudos na área, vide as atualizações teóricas de Castells (2013) e Gohn (2013), é pertinente considerar até mesmo que a própria teoria dos movimentos sociais passa a ser ressignificada a partir da emergência de outras lógicas de ação coletiva e outros movimentos sociais. Nesta problematização, destacamos a contribuição dos

19

autores para pensar além da constatação analítica também as dinâmicas de organização como constituintes dos movimentos sociais.

Reforçamos, dessa forma, a pluralidade de ações que precisam ser compreendidas e complexificadas para refletirmos a atuação e a organização de um movimento social. Entendemos, a partir disso, que as orientações coletivas possuem base em relações de significação originadas por processos de identificação em constante exercício de negociação para a construção compartilhada de uma unidade reflexiva de sujeitos que visam projetos comuns. Para tanto, é necessário que busquemos traçar também uma reflexão teórica a respeito da legitimidade e importância do processo de construção das identidades em movimentos sociais.

2.3 DE QUEM É A IDENTIDADE NO MOVIMENTO SOCIAL? UMA REFLEXÃO