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SUPORTES TEÓRICOS

SEIS PROPOSIÇÕES SOBRE O LETRAMENTO COMO PRÁTICA SOCIAL 48 O letramento é melhor entendido como um

3.2.2 A Teoria Social do Letramento e a Questão do Local e do Global

Uma das críticas que os Novos Estudos do Letramento vêm recebendo, diz respeito ao fato de a maioria de seus estudos restringirem-se às comunidades pesquisadas, como se suas práticas de letramento também não sofressem influências externas dos diversos contextos sociais que as rodeiam. Assim explicam Brandt eClinton (2002, p. 342):

Essa perspectiva gerou uma série de estudos etnográficos de eventos de leitura e escrita a partir dos quais, inferências sobre práticas poderiam ser derivadas. Esses estudos geralmente focavam nos indivíduos e em famílias, ou em pequenos grupos de pessoas em atividades da vida diária. Inventários de eventos de letramento ou de gêneros em uso tornaram-se formas comuns de pesquisa. Estudos de caso de indivíduos, incluindo observações, entrevistas e, em alguns casos, analises de textos também se tornaram comuns (...). A atenção voltou-se para o que os indivíduos liam ou escreviam, quando, onde, como e por quê: o fluxo de letramento nas atividades cotidianas e em torno delas e sua relação com (...) outras práticas sociais. Na melhor das hipóteses, tais estudos contextualizados poderiam capturar os processos regulatórios nos quais o letramento era incorporado na estrutura social, como ele era afiliado à construção da identidade do grupo ou à desigualdade política como potencialmente poderoso (...). Esse acúmulo de pesquisas forneceu muitas evidências empíricas para derrubar cada argumento sobre o letramento oferecido pelo chamado modelo autônomo54 (BRANDT; CLINTON, 2002, p. 342).

Segundo as autoras, não é possível negar a importância de estudos localizados e circunscritos a determinadas comunidades quando se deseja conhecer profundamente, por meio de suas práticas de leitura e escrita, suas práticas sociais. Como as autoras ressaltam, esse tipo de pesquisa contribuiu sobremaneira para invalidar o modelo autônomo de letramento. No entanto, defendem que as pesquisas sobre os letramentos não devem perder de vista o potencial que as tecnologias55 também exercem na desestabilização dos usos, dos

54 Tradução minha: “This perspective bred a host of ethnographic studies of reading and writing events from

which inferences about practices could be derived. These studies typically focused on individuals and families, or small groups of people as they went about the business of ordinary life. Inventories of literacy events or genres in use became common forms of report. Case studies of individuals, including observations, interviews, and, in some cases, text analyses, also became common (…). Attention focused on what individuals read or wrote, when, where, how, and why: the flow of literacy in and around daily activity and its relationship to (…) other social practices. At their best, such contextualized studies could capture the regulatory processes by which literacy was incorporated into social structure, how closely it was affiliated with group identity-making or political inequity-making, how potentially powerful it was (…) This accumulating body of research provided lots of empirical evidence to overturn just about every claim about literacy offered in the so-called autonomous model (for instance, Barton & Hamilton, 1998; Barton, Hamilton & Ivanic,2000; Barton & Ivanic, 1991; Besnier, 1995; Fishman, 1988)”. (BRANDT; CLINTON, 2002, p. 342).

55 Quando as autoras se referem às “tecnologias”, estão aludindo à teoria de Latour (1993; 1996) que considera

“objetos” como itens que normalmente atuam como mediadores em nossas interações, por exemplo, arquivos, documentos, livros e computadores (BRANDT; CLINTON, 2002, p. 347). Apoiando-se, então, na teoria de Latour (1993; 1996), que considera que um dos papeis que os objetos exercem em nossas vidas é o de agregar e mediar eventos de modo a realocá-los em uma rede de eventos, elas chamam a atenção para o fato de que quando

valores e dos significados que são atribuídos ao letramento fora do contexto local, visto possibilitarem a ampliação do foco de análise ao realizarem conexões da comunidade estudada com o seu exterior e por reconhecerem essas influências globais.

Sobre isso, Street (2003, p. 80) concorda com a crítica das autoras no sentido de que muitas pesquisas sobre os letramentos acabaram, segundo ele, “enfatizando em demasia e

romantizando o local”56. No entanto, ele chama a atenção para o fato de que os objetos ou as

tecnologias não podem ser considerados autônomos57, ou seja, não podem ser considerados

como tendo seu significado chegando a nós de modo intacto, pois as pessoas, em suas comunidades, ressignificam essas práticas e as adaptam para seu contexto local. Street enfatiza, assim, o entendimento de que os letramentos, tanto no contexto local quanto no global, estão intimamente associados às questões de texto, poder e identidade.

Street (2003, p. 81) reforça sua argumentação elencando vários exemplos de pesquisas dos Novos Estudos do Letramento que, ao analisarem os letramentos em determinadas sociedades, levam em consideração a influência do contexto global, adotando como suportes teóricos para seus estudos, entre outros, Bakhtin, com o conceito de intertextualidade; Foucault, com o de discurso; Fairclough, com sua teoria da ADC; e Gee (2000), que relaciona a abordagem situada dos letramentos em relação aos movimentos sociais amplos no sentido de uma “virada social”.

De acordo com a posição de Brandt e Clinton (2002), e concordando com a ressalva de Street (2003), as questões de pesquisa que balizaram esta tese foram levantadas exatamente a partir de uma série de determinações internacionais, estabelecidas por meio de uma vasta documentação oficial, que desencadearam uma série de debates e documentos que tiveram repercussão também local, especificamente no AEE pesquisado (conforme comentado nos Capítulo 2 e 3). Essas discussões e documentos foram redimensionados e adaptados em relação ao que havia sido estabelecido na esfera global58.

uma pesquisa se fixa somente nos contextos locais, ela pode acabar tornando-se reducionista em suas análises e conclusões, exatamente por não levar em consideração que as tecnologias, a maioria das vezes, originaram-se fora desses contextos locais. Compreender isso significa entender que as características de determinado contexto podem ser reações aos letramentos originados em um outro lugar, podendo eles apresentar uma dimensão nacional ou internacional (BRANDT; CLINTON, 2002, p. 344-338).

56 Tradução minha: “(…) from over emphasizing or romanticizing the local (…)”. (STREET, 2003, p. 80). 57 Como elas sugerem ao longo do artigo e, com destaque, nas páginas 348 e 349 (BRANDT; CLINTON, 2002). 58 Isso porque, ao decidir analisar como a mudança na dinâmica de funcionamento de uma instituição de

Educação Especial contribuiu para o surgimento de novas práticas de letramento que poderiam, por sua vez, influenciar na formação das identidades profissionais de seus funcionários, isso me proporcionou extrapolar o contexto local, visto que as mudanças aconteceram devido a determinações governamentais federais que, por sua vez vieram a reboque de um movimento mundial que tem por objetivo incluir de forma mais efetiva crianças, adultos e idosos que apresentem qualquer tipo de DID, no convívio social (ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE (ECA), 1990); DECLARAÇÃO DE SALAMANCA, CONFERÊNCIA MUNDIAL DE

A Teoria Social do Discurso de Fairclough (ADC), adotada aqui em conjunto com a Teoria Social do Letramento, vem reforçar a concepção deste trabalho de que a articulação de diferentes discursos (associados a objetos e tecnologias) é central para se perceber sua presença nas atividades de letramento diárias das pessoas (STREET, 2003, p. 81).

Ainda dentro dessa questão do local e do global, no Capítulo 4, na Seção 4.4.1, apresento em detalhes a instituição pesquisada e seu funcionamento (o local). Na seção seguinte, faço uma breve apresentação sobre trabalhos desenvolvidos recentemente sobre letramentos no contexto de trabalho, procurando destacar aspectos globais sobre o tema.