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SUPORTES TEÓRICOS

6 MÃES DA INSTITUIÇÃO IDENTIDADES EM UM CONTEXTO ESPECIAL

6.2 Eventos de letramento nas residências

Com respeito ao letramento diário nas residências das mães participantes, eles acontecem principalmente nas residências daquelas que possuem o letramento formal e são direcionados a seus filhos e filhas. Em sua fala, a maioria delas demonstra preocupação em ensinar alguma coisa para seus filhos e filhas em casa. Isso foi surpreendente para a pesquisa, porque contribuiu para a interpretação de que os letramentos formais ou escolares são importantes para essas mães, de acordo com o que é apresentado a seguir.

Essa realidade ficou evidenciada, mesmo tendo a maioria das mães afirmado não saber ao certo quais atividades são desenvolvidas nas salas do AEE. Por exemplo, Márcia, que tem seu filho recebendo atendimento na parte da instituição direcionada à preparação para o mercado de trabalho, diz que desde que ele foi para lá ela está alheia ao que é desenvolvido:

1Márcia: (...) na parte escolar ele fica lá pro outro lado; enquanto ele 2tava pro lado de cá que dava pra mim vê, eu via o que ele fazia, é, 3mas aí depois de algum tempo mudou, né. Aí é assim: as mãezinha 4fica prum lado, os filho fica pro outro. Ninguém tem direito de entrar 5praquele outro lado. Então, eu creio que elas ensina a ele coisas 6boa, né.

Márcia usa o verbo de Processo Material ‘ver’ parecendo indicar que sabia, que conhecia o que acontecia com seu filho na instituição. Com isso, ela indica que costumava ter acesso ao filho, com mais facilidade, quando ele estava no AEE. Esse ‘ver’, então, assume no contexto uma conotação positiva ligada ao acesso ao seu filho: “(...) dava pra mim vê, eu via o que ele fazia (...)” (linha 2).

Como já destacado ao longo desta tese, assumo a posição de Fairclough (2003, p. 164) de que “aquilo ao qual as pessoas se comprometem nos textos é uma parte importante de como se identificam, da textura de suas identidades”. Uma das maneiras de se perceber esses comprometimentos nos textos é pelas análises da modalidade e das trocas de atividades que estão envolvidas nelas, a saber: Modalidade Epistêmica (Trocas de conhecimento: Declarações e Perguntas) e Modalidade Deôntica (Trocas de Atividades: Obrigações e Ofertas)149. Nesse sentido, Márcia se refere ‘ao outro lado’, no qual seu filho se encontra agora, como um lugar onde “(...) Ninguém tem direito de entrar (...)”. Ela usa a Modalidade Deôntica, relacionada aqui às obrigações que, no caso aqui é do tipo proscritiva, estando assim, no imperativo. Ao usar essa forma para contar como é agora o acesso à parte da instituição onde seu filho recebe atendimento, ela parece estar usando o discurso indireto para reproduzir o que lhe foi dito por alguém da instituição. Esse aspecto intertextual de sua fala, usando o discurso indireto - pois ela não menciona especificamente quem lhe deu essa ordem -, sugere alto grau de comprometimento seu em relação a essa proibição (FAIRCLOUGH, 2001, p. 155). Ou, pelo menos, indica a representação que ela faz desse novo lugar como sendo vedada sua permanência. De qualquer forma, posso considerar que, ao reproduzir essa informação, usando o imperativo sem nenhum modalizador, ela indica com isso aceitação dessa imposição da instituição.

Márcia parece reforçar essa postura, ao completar logo em seguida: “(...) Então,

eu creio que elas ensina a ele coisas boa, né (...)” (linhas 5, 6). De acordo com o que já foi

comentado na seção anterior sobre o sistema de coesão, especificamente, as relações funcionais entre as orações através da coesão por conjunção, ele revela como o falante desenvolve as relações lógicas entre as orações. Assim, é interessante perceber a escolha de Márcia para ligar duas orações que, aparentemente pelo menos, expressam ideias diferentes, pois o que se esperaria a seguir seria uma conjunção adversativa como “mas”. No entanto, ela opta pela conjunção por intensificação de causa - “então -, reforçando que não considera

negativo o fato de não poder mais “ver” o que seu filho faz em sala. Finaliza, usando uma oração com um verbo de Processo Mental Afetivo ‘crer’.

Segundo Fairclough (2003, p. 173), esse tipo de oração marca, de forma explícita, a avaliação que o falante faz de determinado acontecimento, nesse caso, a avaliação de Márcia em relação à falta de acesso a seu filho dentro da instituição. Ela indica com essas escolhas textuais que confia na instituição - aqui na figura das professoras, que lhe ensinarão coisas boas - e que concorda com o formato oficial do letramento escolar, o qual possui como uma de suas práticas o isolamento entre pais e mães durante o tempo de aprendizado formal na sala de aula.

Independente do que é ensinado a seu filho na instituição, ela tem a preocupação de, em casa, ensinar-lhe alguma coisa que considera importante, como escrever seu nome completo. Essa preocupação assume contornos formais ao ponto de ela ter colocado uma lousa no quarto dela e de ter comprado livros didáticos, indicando uma tentativa de passar uma ideia mais próxima de sala de aula, sinalizando, dessa maneira, uma valorização do ensino formal: “Márcia: eu ensino ele, tanto que lá no quarto dele tem uma lousa. Eu sempre ensino, eu quero que ele junte as palavras (...). A leitura, assim, ele já aprendeu fazer o nome

dele todim (...)”.

É importante perceber em sua fala que o fato de não saber exatamente o que seu filho vê na escola não a desestimula ou mesmo a impede de continuar ensinando-lhe em casa. Nesse sentido, Barton (2007, p. 182) observou em uma pesquisa sua um comportamento semelhante por parte dos pais e mães. Apesar de não mencionar se eles ou elas sabiam ou não a respeito das atividades desenvolvidas por seus filhos e filhas, ele diz que o letramento que esses pais e mães davam a eles e elas antes de entrarem na escola, nem acaba nem se modifica quando ingressam ali: continua seguindo seu ritmo e práticas que já lhe eram próprias anteriormente. O que vai determinar essas características dos letramentos em casa, portanto, são as representações dos pais e das mães sobre os letramentos, e não a escola, como foi possível perceber a partir da fala da Rosana.

Também com respeito aos eventos de letramento em casa, Rosana demonstrou ter uma preocupação muito grande em criar momentos para isso, principalmente, aqueles relacionados a tentar ensinar as letras para sua filha:

1Lissa: e em casa, vocês tentavam desenvolver alguma atividade da 2escola em casa, com ela?

3Rosana: Sempre, sempre. Ainda hoje eu tento, mas é difícil – ela

4não aceita. Interessante, ela não aceita nenhuma atividade, eu 5tento, eu faço rabisco, eu tenho livri/ comprei livrinhos de de letra...

6Lissa: eu sei, pra estimular...

7Rosana: Pra estimular, mas ela não quer. E faz sob chantagem sob: 8“taqui ó, só vai comer biscoito se fizer”. Aí ela faz tudo direitinho (...)

9tendeu? Mas ela não quer de jeito nenhum. Aí também num, eu 10num, aí também já tava estr/ já tava ficando muito estressada (...) 11tava, precisava desopilar (...).

Apesar de reconhecer que essa é uma tarefa cansativa, devido à resistência oferecida pela criança (linhas 10, 11), ela reconhece que tentou repetidas vezes. Note que, para explicar-me o que aconteceu, na tentativa de colocar-me a par de como esse processo foi difícil para as duas, mãe e filha, ela constrói sua narrativa em forma de embate, explorando os dois lados simultaneamente, como pode ser visto nas linhas 3 - 5, 7 -10. Ela inicia usando o advérbio de tempo “sempre” (linha 3), duas vezes seguidas, dando uma ideia de que essas tentativas haviam começado há muito tempo atrás e que ainda vão continuar acontecendo.

Ao descrever suas atitudes, Rosana usa predominantemente a Modalidade Epistêmica, usando declarações afirmativas. Ao aliar esse recurso aos verbos de Processo

Material, como “eu tento” (linhas 3, 5), “eu faço” (linha 5), “comprei” (linha 5), ela

consegue imprimir um grau de comprometimento muito significativo no que diz respeito ao quê o aprendizado formal – com livro e lousa – , por exemplo, significa para ela. Ao contrapor suas atitudes com as de sua filha, ela também usa a Modalidade Epistêmica, mas a forma Negativa para imprimir contraste em sua fala: “ela não aceita”, usada duas vezes consecutivas (linhas 3, 4), e “ela não quer” (linhas 7, 9), também repetida duas vezes. Dessa forma ela constrói dois pares contrastivos idênticos entre o verbo de Processo Material ‘aceitar’ e o verbo de Processo Mental ‘querer’, indicando, novamente, seu grau de comprometimento com seu enunciado.

Além disso, ao mencionar o tipo de atividade que tenta desenvolver com sua filha - “faço rabisco eu tenho livri/ comprei livrinhos de de letra” (linha 5) -, demonstra com isso o interesse que tem de que sua filha consiga ler. Essa também parece ser a preocupação da Márcia quando afirma em outro momento da entrevista: “sempre ensino, eu quero que ele

junte as palavras”. Essa preocupação sinaliza a aceitação e a valorização por parte de muitas

das mães participantes daquilo que Kleiman (2008, p. 34), citando Graff (1979), chama de “mito do letramento”, ou seja, a concepção de que o letramento traz consigo, automaticamente, diversas consequências positivas, como melhor raciocínio, maior usufruto das tecnologias contemporâneas, independência e ascensão social.

Essa percepção vai diretamente ao encontro do que também percebeu Magalhães (2004-2005, p. 106-118) quando desenvolveu uma pesquisa sobre o letramento adulto no

lugar de trabalho. Os entrevistados - alfabetizandos que trabalhavam no Ministério da Agricultura e no Ministério da Educação, que trabalhavam como copeiras, vigias, porteiros e atendentes - quando eram indagados a respeito do que mudou em suas vidas depois que começaram a frequentar o Programa de Alfabetização de Adultos no local de trabalho, demonstraram com suas respostas que para eles o letramento estava relacionado a “(...) um

campo de poder, associado com a variedade padrão do português (...)”, pois entendiam “que

o letramento ampliou seus recursos comunicativos(...)”, assim como também “(...) seu

desempenho mudou e que melhorou sua autoestima (...)”, tornando-os mais confiantes para

comunicarem-se com os outros. As mães entrevistadas em minha pesquisa também pareceram ter uma expectativa semelhante a essa no que diz respeito aos seus filhos e filhas pelo fato de desejarem vê-los alfabetizados.

Nicole destoa um pouco desse grupo, porque ela não usa em sua casa recursos de ensino como lousa ou livros. Isso, provavelmente, pelo fato de seu filho frequentar a escola regular e possuir livros didáticos, como se observa a seguir:

1Nicole: quando tem, eu, eu pergunto a ele: “Manuel, veio tarefa pra

2você?”, aí ele disse que veio, aí eu ensino junto com ele e ensino a

3tarefa dele. Agora, eu não tenho aquele hábito de pegar e ensinar, 4sabe, eu não tenho.

5Lissa: Essas tarefas são da escola regular ou daqui? 6Nicole: Não, de lá.

7Lissa: ah tá, aí, são todas as matérias, né? 8Nicole: É matemática, português...

Ao dizer que não possui o hábito de ensinar seu filho (linha 3) ela parece com isso querer dizer que se restringe a ensinar sua tarefa de casa, somente aquilo que é pedido pelo professor. É significativo aí perceber que em seu cotidiano existe a preocupação em fazer as tarefas escolares com seu filho, indicando assim uma preocupação em reforçar em casa os letramentos escolares.

6.3 Conclusões

Foi possível perceber, através das análises, como suas concepções de letramento estão ligadas à representação tradicional da escola como uma instituição excludente, na medida em que definem, a priori, que comportamentos devem ser esperados e os que não podem ser tolerados. Aliado a esse discurso, suas falas também indicam a reprodução de

discursos tradicionais da deficiência, quando ressaltam negativamente o que pode ser considerado, simplesmente, como características de seus filhos e filhas.

Ao mesmo tempo, revelam determinação e vontade de dar aos seus filhos e filhas os melhores tratamentos, quando contam sobre sua luta e persistência em conseguir o que consideravam bom de seu ponto de vista. Nesse sentido, a fala de Nicole é significativa quando reconhece e critica a falha da escola regular em ser incapaz de dar ao seu filho o mesmo tratamento que é dado aos demais.