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SUPORTES TEÓRICOS

3 TEORIA SOCIAL DO LETRAMENTO, ANÁLISE DE DISCURSO CRÍTICA E IDENTIDADES

3.2 Novos Estudos do Letramento

Os Novos Estudos do Letramento (BARTON, 2009; GEE, 2012) incluem uma quantidade considerável de pesquisas que foram desenvolvidas nos anos oitenta e que se contrapuseram às noções tradicionais de letramento há pouco discutidas. Destacam-se nesse contexto, as pesquisas de Scribner e Cole (1981), as de Heath (1983) e as de Street (1984), que foram de fundamental importância para a chamada virada nos estudos em torno do letramento (GEE, 2012, p. 55; BARTON, 2009). Destaco a seguir as contribuições de Heath (1983) e Street (1984).

A contribuição de Heath (1983) para essa nova forma de se entender o letramento também passou pela compreensão de que ele é extremamente complexo por cobrir uma multiplicidade de significados e visões, destacando aí suas funções – o que o letramento pode fazer pelas pessoas individualmente – e seus usos – o que as pessoas individualmente podem fazer com as habilidades de letramento. Essa dupla potencialidade do letramento, cada uma abrindo um leque enorme de possibilidades de se entender o letramento, influenciou muitas das pesquisas que surgiriam na área (BARTON, 2009, p. 27). As pesquisas de Heath também chamaram a atenção para os variados usos sociais da leitura e da escrita que ocorrem diariamente nas vidas das pessoas, aos quais chamou de eventos de letramento41 (HEATH, 1983, p. 386).

Um ano depois, Street (1984) chama o modelo comumente usado e aceito no contexto escolar de Modelo Autônomo de Letramento. Este modelo autônomo tem como características gerais a descontextualização da produção escrita – como se em sua produção só

o que exercesse influência fosse a informação contida no texto –, assim como a relação que estabelece entre escrita e raciocínio lógico, transformando, assim, a escrita em uma mera tecnologia neutra. Ocorre aí também a dicotomização entre a oralidade e a escrita, dando-se grande ênfase a esta última.

Contrapondo-se a essa noção, Street (1984) propõe uma abordagem ideológica para o letramento, chamada por ele de Modelo Ideológico de Letramento, que percebe o processo de letramento como estando envolvido por ideologias e práticas culturais, não podendo ser, portanto, encarado como algo neutro, ligado à tecnologia. Nesse sentido, o autor destaca como aspectos cruciais no processo da leitura e da escrita a presença de atitudes, crenças, valores e ideologias, aspectos que estão presentes de formas diferenciadas nas variadas culturas, nas relações sociais e nos diversos contextos sociais (STREET, 1984, p. 130).

Essas pesquisas, segundo Barton e Hamilton (1998, p. 3) voltaram-se para uma gama de práticas de letramento42, que estão presentes no dia a dia das diversas comunidades pesquisadas, estabelecendo os Novos Estudos do Letramento como uma sólida corrente de pesquisa nos estudos da linguagem e da educação. Portanto, o foco direcionou-se naquele momento para a interação social, na qual a pesquisa qualitativa se mostrava mais apropriada para análise do que uma análise simplesmente quantitativa, visto que esta não conseguiria dar conta de todo o complexo contexto social envolvido nas interações diárias.

Esse impacto que os Novos Estudos do Letramento trouxeram para as pesquisas nas áreas da linguagem, educação e mesmo às ciências sociais diz respeito à metodologia, pois os pesquisadores começaram a conjugar suas pesquisas, em torno do letramento em diversas comunidades, a métodos etnográficos43. Esse uso conjugado do modelo ideológico de letramento com a metodologia etnográfica mostrou-se muito frutífero para o entendimento das práticas de letramento das comunidades pesquisadas, visto que era somente convivendo naquela comunidade que o pesquisador ou pesquisadora conseguiria compreender essas práticas de forma mais profunda e significativa.

Essa forma de se ver o letramento existindo além dos muros da escola e tendo relação direta com o contexto sociocultural e histórico de determinada comunidade necessita, então, de uma nova forma de pensar, demandando uma nova definição para essa prática

42 Ver definição na Seção 3.2.1.

(BARTON, 2009). A seguir, será apresentado o desenvolvimento teórico-metodológico que alguns pesquisadores imprimiram mais recentemente aos Novos Estudos do Letramento44.

3.2.1 Teoria Social do Letramento

Entre os estudiosos que adotaram as concepções de letramento dos Novos Estudos

do Letramento em suas pesquisas etnográficas, ressalto os trabalhos do “Literacy Research

Discussion Group45”, localizado na Universidade de Lancaster, Reino Unido. O grupo, que

desde seu início até hoje conta com a orientação de David Barton, aprofundou os conceitos envolvidos no Modelo Ideológico de Letramento proposto por Street (1993, p.7) e desenvolveu o que Barton e Hamilton chamam de Teoria Social do Letramento (1998), elaborada a partir dos conceitos de eventos de letramento (HEATH, 1983) e de práticas de letramento (STREET, 1984), já definidos na Seção 3.2. Nos parágrafos seguintes, detalharei o segundo conceito que é de grande interesse para esta tese.

A noção de práticas de letramento é uma confirmação de que o letramento é uma

prática social46 e, como tal, cria a possibilidade de fazer uma relação entre as atividades de

leitura e escrita e as estruturas sociais nas quais elas estão situadas. Desse modo, elas podem atuar de forma dinâmica na constituição dessas estruturas, mas, ao mesmo tempo, são moldadas por elas. Barton e Hamilton (1998, p. 6) assim complementam sua definição:

Nosso interesse é nas práticas sociais onde o letramento exerce um papel; por isso, a unidade básica de uma teoria social do letramento é aquela das práticas de letramento. As práticas de letramento são as maneiras culturais gerais de utilização da linguagem escrita a que as pessoas recorram em suas vidas. No sentido mais simples, as práticas de letramento são o que as pessoas fazem com o letramento. No entanto, as práticas não são unidades observáveis de comportamento já que também envolvem valores, atitudes, sentimentos e relações sociais (BARTON; HAMILTON, 1998, p. 6)47.

44 É importante salientar nesse momento que reconheço a existência de outros importantes pesquisadores da área

que muito contribuíram para o seu desenvolvimento; contudo, por conta das limitações acadêmicas impostas a um trabalho desta natureza foi preciso fazer escolhas.

45 Tradução minha: “Grupo de Discussão de Pesquisa sobre Letramento”.

46 Noção trabalhada por Chouliaraki e Fairclough (1999, p. 21, 22) que definem prática social como permeando

toda a vida social: a esfera econômica, política, cultural e política, enfim, a vida diária. Conceito trabalhado com base na teoria de Harvey (1996). Esse conceito de prática social também é adotado por Rios (2009, p. 65, 66).

47 Tradução minha: “Our interest is in social practices in which literacy has a role; hence, the basic unit of a

social theory of literacy is that of literacy practices. Literacy practices are the general cultural ways of utilising written language which people draw upon in their lives. In the simplest sense literacy practices are what people do with literacy. However practices are not observable units of behavior since they also involve values, attitudes, feelings and social relationships” (BARTON; HAMILTON, 1998, p. 6).

Relacionar então práticas sociais a práticas de letramento potencializa este último conceito, visto que as práticas sociais conectam as pessoas umas com as outras. Essas conexões são regidas por ideologias que acabam por regular a distribuição de textos, determinando quem pode produzi-los e quem pode lê-los (FAIRCLOUGH, 2001). Pelo fato de as práticas de letramento serem eminentemente sociais é que Barton e Hamilton (1998, p. 7) sugerem que elas são mais bem compreendidas nos contextos das relações entre as pessoas, entre grupos ou comunidades, e não de forma individual.

Com essa noção em mente, é possível entender mais claramente a relação feita por Barton e Hamilton entre eventos de letramento (HEATH, 1983) e de práticas de letramento porque, já que os eventos de letramento são atividades nas quais o letramento está envolvido, os eventos constituem-se então em episódios pontuais, portanto, observáveis; além disso, são influenciados pelas práticas, contribuindo também para elas. Para Barton e Hamilton as práticas de letramento somente existem em um contexto social, daí considerarem o letramento como situado.

Barton e Hamilton (2000, p. 8; RIOS, 2009, p. 51) desenvolveram sua teoria com base em seis proposições apresentadas no quadro a seguir:

Tabela-1: Seis proposições sobre o letramento como prática social.

SEIS PROPOSIÇÕES SOBRE O LETRAMENTO COMO PRÁTICA SOCIAL