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SUPORTES TEÓRICOS

SEIS PROPOSIÇÕES SOBRE O LETRAMENTO COMO PRÁTICA SOCIAL 48 O letramento é melhor entendido como um

3.3 Análise de Discurso Crítica

3.3.3 Atualização e Novas Influências

Na atualização de sua teoria, Fairclough mantém as três dimensões do discurso; contudo, a prática social é agora central à teoria. Nesse novo contexto, o discurso passa a ser

68 Esses dois significados são explorados mais detalhadamente no Capítulo 4, especificamente nas Seções 4.3.3.1

visto como um dos momentos das práticas sociais e, nelas, como um dos elementos das ordens do discurso.

Outro ponto importante a destacar é que ele desenvolve a abordagem da ADC, chamada agora de Abordagem Dialético-Relacional (WODAK; MEYER, 2009; FAIRCLOUGH, 2010), na qual se destaca sua proposta de transdisciplinaridade nas pesquisas sociais. Ele define assim transdisciplinaridade (FAIRCLOUGH, 2010, p. 231): “O que a distingue é que, ao reunir disciplinas e teorias com o objetivo de tratar de questões de pesquisa, ela entende esse “diálogo” entre elas como uma fonte para o desenvolvimento teórico e metodológico de cada uma delas69.

Pode-se perceber aí como ele deixa clara sua preocupação em sempre ultrapassar as barreiras linguísticas de seu campo de pesquisa, expandindo-as, como se verá a seguir, para as Ciências Sociais críticas, objetivando compreender melhor o complexo quadro social, histórico e econômico da chamada modernidade tardia (GIDDENS, 1991, 2002)70. Fairclough deixa claro que seu objetivo com isso é ler esses textos em uma perspectiva linguística a fim de formar um quadro sobre a situação da linguagem na contemporaneidade para, a partir daí, propor uma pesquisa transdisciplinar de estudos que ultrapassem uma teoria em particular e, sim, que englobe uma área de pesquisas críticas, que poderia mesmo conter teorias que, em outros contextos, seriam conflitantes (CHOULIARAKI; FAIRCLOUGH, 1999, p. 75; FAIRCLOUGH, 2010, p. 231).

O primeiro autor de que tratarei é Harvey que, segundo Chouliaraki e Fairclough (1999, p. 77) baseia suas análises sobre a modernidade tardia nas mudanças econômicas no capitalismo. Por esse motivo, seu trabalho oferece um quadro importante para o desenvolvimento de outras teorias.

Para Harvey, as mudanças econômicas relacionadas ao aceleramento da produção, trouxeram mudanças culturais profundas. A mais significativa delas é que as sociedades contemporâneas são caracterizadas pelo que é volátil, efêmero e descartável, não só no que se refere a bens de consumo, mas também a valores, estilos de vida e relações sociais. As noções

69 Tradução minha: “What distinguishes it is that in bringing disciplines and theories together to address

research issues, it sees ‘dialogue’ between them as a source for the theoretical and methodological development of each of them” (FAIRCLOUGH, 2010, p. 231).

70 É importante salientar, nesse momento, que não é meu intuito aqui apresentar de modo detalhado e abrangente

todos os autores e as teorias que têm influenciado os últimos trabalhos de Fairclough, visto que isso excederia os objetivos desta pesquisa. De forma que me deterei em dois autores – David Harvey e Anthony Giddens – que contribuíram, significativamente, para seus estudos relacionados à modernidade tardia e às identidades contemporâneas. Para aprofundar o tema e conhecer outros autores que o influenciaram, recomendo a leitura do livro: “Discourse in Late Modernity – Rethinking Critical Discourse Analysis”, de Chouliaraki e Fairclough (1999).

de tempo e espaço têm ficado cada vez mais compactadas, tanto porque os custos para se deslocar de um lugar para outro no mundo ficaram mais acessíveis, mas também por conta da própria Internet, que desestabiliza as barreiras espaciais.

Nessa mesma linha, cabe discutir o efêmero e o descartável, pois a publicidade torna tênue a linha entre o que é real e o que é simulado, passando a veicular imagens de pessoas ou de lugares ou mesmo de objetos como sendo desejáveis ou ideais. Tudo então passa a ser uma mercadoria, que poderia ser fabricada em determinado lugar e vendida em vários outros lugares. Para Harvey, todo esse contexto está na origem de uma crise generalizada de representação que desestabiliza, por sua vez, a noção de identidade - tanto a identidade coletiva quanto a individual. Isso então gera lutas, nas diversas esferas que compõem a modernidade tardia, para estabelecer identidades nesse contexto do efêmero, como é notório no comércio, que comumente pressiona organizações e pessoas a projetarem imagens diferentes dependendo do contexto no qual se encontrem.

Assim como Harvey, Giddens (CHOULIARAKI; FAIRCLOUGH, 1999, p. 78; GIDDENS, 2002) também estuda a modernidade tardia, enfatizando suas características culturais e as maneiras nas quais as vidas das pessoas e, consequentemente, suas identidades, são diariamente modificadas por elas.

Giddens destaca o fenômeno da globalização, que relativiza o significado de tempo e espaço por “desencaixar” as relações sociais, que antes eram travadas em lugares e contextos particulares, transformando-as agora em eventos sem precedentes, visto cruzarem constantemente as fronteiras espaciais e temporais (GIDDENS, 2002, p. 27). Assim, ao considerar a globalização como se constituindo, eminentemente, de uma relação dialética entre o local e o global, o autor destaca que, nesse contexto, as identidades sofrem uma influência profunda dos processos globais e das tendências comportamentais que lhes são impostas, pois ao mesmo tempo que as pessoas são instadas a tomar posição, também acabam impondo, em algum grau, suas identidades, contribuindo assim para essa interpenetração do local e do global (CHOULIARAKI; FAIRCLOUGH, 1999, p. 81).

Para Giddens (2002, p. 25), outra característica fundamental da modernidade tardia que está intimamente relacionada à noção de globalização, definida há pouco, é a reflexividade. Ele assim a define:

A modernidade é essencialmente uma ordem pós-tradicional. A transformação do tempo e do espaço, em conjunto com os mecanismos de desencaixe, afasta a vida social da influência de práticas e preceitos preestabelecidos. Esse é o contexto da consumada reflexividade (...). Ela se refere à suscetibilidade da maioria dos aspectos da atividade social, e das relações materiais com a natureza, à revisão intensa à luz

de novo conhecimento ou informação. Tal informação ou conhecimento não é circunstancial, mas constitutivo das instituições modernas – um fenômeno complicado, porque existem muitas possibilidades de se pensar sobre a reflexividade nas condições sociais modernas (GIDDENS, 2002, p. 25).

Isso porque, ainda segundo o autor, diferentes das ciências e da filosofia iluministas, que ofereciam ao mundo respostas certas para suas questões, “(...) a reflexividade na modernidade de fato solapa a certeza do conhecimento, mesmo nos domínios centrais da ciência natural” (GIDDENS, 2002, p. 26).

O descrédito sofrido pelas tradições e pelas instituições tradicionais, como a família, ocasiona a reconstrução das identidades no contexto da reflexividade, onde as relações interpessoais, por exemplo, de amizade ou amor, perderam muito de sua profundidade ligada às características éticas que as normalizavam e se tornaram comumente vazias, pautadas muitas vezes por possíveis ganhos materiais (CHOULIARAKI; FAIRCLOUGH, 1999, p. 82).

Chouliaraki e Fairclough (1999, p. 83), consideram que as teorias tanto de Harvey quanto de Giddens podem servir de base para muitos temas significativos para a ADC relacionados à modernidade tardia, especificamente o que está implícito nelas em relação à linguagem. Os temas propostos por Chouliaraki e Fairclough (1999, p. 83) são a hibridização, a globalização, a identidade, a reflexividade e a comodificação.

Destaco para esta tese a identidade e a reflexividade, visto que esses dois temas abordam questões relacionadas à vida social envolvendo cultura, poder, o local e o global e os usos sociais da linguagem. Para Chouliaraki e Fairclough (1999, p. 83), a modernidade tardia mina, de forma perversa, as identidades tanto individuais quanto coletivas, ocasionando constantes conflitos e lutas na vida social, em especial dentro do contexto de trabalho. Nesta tese, interessa-me o AEE, onde profissionais com letramentos de diferentes áreas do conhecimento têm de conviver entre si por conta de uma determinação governamental. Essa convivência faz aflorar questões de poder, ligadas aos letramentos, que antes não eram percebidas, visto que trabalhavam de forma isolada. As identidades maternas também são afetadas no contexto da globalização, tendo em vista que decisões tomadas nas esferas globais em torno da Educação Especial têm uma repercussão local, pois as mães se veem forçadas a tomar decisões difíceis sobre o que seria o melhor atendimento para seus filhos e filhas71. Chouliaraki e Fairclough (1999, p. 83) denomina esse fenômeno de “identificação no discurso”, ou seja, “lutas para encontrar uma voz como parte das lutas para encontrar uma

identidade”. Nesse contexto, Fairclough considera a “reflexividade linguística”, que nada mais é do que a consciência do poder da linguagem, como sendo capaz de mudar as relações sociais, conhecimento esse fundamental na luta de poder pelo reconhecimento das identidades.

A seguir, aprofundo o conceito de identidades com base nas teorias de Chouliaraki e Fairclough (1999), de Fairclough (2003), de Gee (2000-2001) e na Teoria Social do Letramento (BARTON; HAMILTON, 1998; BARTON, 2009).

3.4 Identidades

Não tenho a pretensão aqui de pesquisar as identidades em todos os seus aspectos, porque, além de exigir uma pesquisa de maior duração, isso iria extrapolar em muito os objetivos de meu trabalho. Estou interessada em entender como as identidades das participantes são construídas em um momento específico de suas histórias: no contexto das relações profissionais travadas na instituição pesquisada, relações essas que, por sua vez são influenciadas por práticas de letramento relativas às diversas áreas profissionais representadas ali e pelas práticas de letramento dessas profissionais em suas casas, tanto nos momentos de lazer como nos momentos de estudo e de preparação para o trabalho.

Quanto às mães, meu interesse está em perceber como suas concepções sobre o letramento indicam características de suas identidades maternas. Isso porque essas concepções podem me ajudar a entender posições e atitudes tomadas por elas no dia a dia que dizem respeito aos tratamentos para seus filhos; nesse caso, o dilema de incluir ou não seus filhos ou filhas na escola regular, por conta da imposição governamental de inclusão, como condição para a continuação dos atendimentos no AEE.

Dessa forma, a construção das identidades dessas participantes que extrapola esses contextos de lugar e de tempo será provavelmente diferente daquelas analisadas aqui. Isso se deve ao fato de a construção das identidades ser um processo histórico e, mesmo diferindo em função do tempo e da situação, essa mudança é progressiva e carrega consigo traços das identidades passadas, identidades essas construídas tanto coletivamente quanto pessoalmente no discurso (CHOULIARAKI; FAIRCLOUGH, 1999, p. 96). A não fixidez dessas identidades pode ser compreendida graças ao fluxo proveniente da modernidade tardia e pelo fato mesmo de essas identidades encontrarem-se situadas no interior do discurso que as constrói a partir de determinados processos negociados ao longo das interações que são travadas cotidianamente (MOITA LOPES, 2002).

Assim, apresento aqui as três teorias principais nas quais me baseio para as análises das identidades: o Significado Representacional e o Significado Identificacional, de Fairclough (2003)72; os pressupostos teóricos da Teoria Social do Letramento (BARTON; HAMILTON, 1998; BARTON, 2009)73; e a proposta de Gee (2000 - 2001; 2003) sobre identidades no contexto educacional74.

Na Seção 3.4.4, vou estabelecer relação entre as teorias mencionadas e meu estudo das identidades. Reconheço que cada uma dessas teorias possui características próprias, mas procuro integrá-las no que apresentam em comum para o estudo das identidades.