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SUPORTES TEÓRICOS

3 TEORIA SOCIAL DO LETRAMENTO, ANÁLISE DE DISCURSO CRÍTICA E IDENTIDADES

3.1 Modelos Funcionalistas de Letramento

Em uma concepção geral de letramento, as teorias do letramento têm como objetivo entender como as pessoas leem e escrevem e que processos utilizam na leitura e compreensão de textos (BARTON, 2009, p. 3). Nos anos setenta e em boa parte dos anos oitenta, teóricos funcionalistas do letramento consideravam que essa atividade estava ligada a determinadas habilidades de raciocínio que, por sua vez, eram desenvolvidas de forma individual. Para esses teóricos, ligados à área da cognição, texto, significado e pensamento estão diretamente relacionados às maneiras com as quais diferentes tipos de textos demandam uma menor ou maior complexidade de pensamento. Assim, nessa linha teórica, existiria uma hierarquia entre tipos de textos e níveis de uso das habilidades de raciocínio: em um texto que tem seu significado ligado (pelo menos à primeira vista) somente a ele, isso exigiria do leitor um alto nível de habilidade de raciocínio; ao passo que textos que aparentemente requerem do leitor apenas a decodificação de palavras, e onde o contexto ajuda em seu significado (como os sinais de entrada e saída de prédios), somente o uso de baixos níveis de habilidades de raciocínio seriam necessários (BELFIORE et al, 2004).

Goody (1968; 1986; 2005), um dos mais destacados teóricos funcionalistas dos anos setenta e oitenta, entende o letramento como sendo composto de habilidades transferíveis, que seriam diretamente responsáveis pelo sucesso financeiro e profissional de alguém, pois dotariam o ser humano de capacidades mentais mais abstratas e complexas. Segundo Schofield (apud GOODY, 2005 [1968], p. 318-319), essas habilidades poderiam ser perfeitamente medidas para fins de estudos que tivessem como objetivo quantificar o número de pessoas consideradas letradas. Ele afirma que muitos desses estudos estatísticos, realizados nos Séculos XVIII e XIX, na Inglaterra, faziam uma relação direta entre uma educação deficitária e a pobreza e a falta, até mesmo, de uma suposta moral da população. No Século XX, o teor dessas pesquisas continua sendo o mesmo, agora com contornos mundiais, visto que muitas delas são encabeçadas pela UNESCO, que coloca o letramento como sendo uma precondição para o desenvolvimento econômico das nações (SCHOFIELD apud GOODY, 2005 [1968]), p. 312-314).

Para fortalecerem seus argumentos nesse sentido, Goody e Watt (p. 27-68 apud GOODY, 2005 [1968]), embasam toda sua argumentação teórica por meio de comparações

entre as sociedades letradas e as sociedades não letradas. Os autores chamam as sociedades não letradas (possuindo eminentemente uma cultura oral) de homeostáticas em relação a como trabalham com a memória, ou seja, com o hoje e com o ontem: a linguagem seria desenvolvida em associação com a experiência do indivíduo na sociedade, onde aprende por intermédio da interação face a face.

Ainda segundo os autores, uma das mais lamentáveis consequências para essas sociedades homeostáticas é que possuiriam pouca percepção acerca do passado, somente em referência ao presente, já que os pesquisadores da época acreditavam que o que não interessava mais àquela sociedade, o que não era mais falado era, como consequência, esquecido como se nunca houvesse existido. Faltou a esses pesquisadores perceber, que a marca da oralidade constituí-se simplesmente em uma característica daquela sociedade, que não a tornava “inferior” frente às outras; somente seu registro do passado era diferente, como as tradições orais e mitos.

Já para as sociedades possuidoras da leitura e da escrita, acreditava-se que elas seriam capazes de desenvolver raciocínios mais elaborados e questionadores da realidade, pois por possuírem documentos de seu passado poderiam exercer um senso crítico sobre sua realidade. Com base nisso, Goody e Watt chegaram a afirmar que a distinção entre as duas sociedades mencionadas seria “as diferenças intelectuais entre sociedades simples e

complexas”37 (GOODY; WATT, p. 68 in GOODY, 2005 [1968]), incluindo aí, como

características das sociedades ditas “simples”, o “pensamento mítico” e entre as ditas “complexas” o “pensamento lógico”, sendo que a ponte para se chegar ao lado lógico seria por meio do uso da leitura e da escrita.

Em um trabalho posterior, Goody (1986) faz uso de uma contextualização histórica para justificar o desenvolvimento econômico de civilizações do chamado antigo oriente próximo, como o Egito e a Mesopotâmia, como possuindo sua origem no uso da escrita, auxiliando no armazenamento de informações e nos cálculos matemáticos achados nos livros de contabilidade, que descreviam as inúmeras relações comerciais travadas naquele contexto. Nessa análise, ele faz um contraponto direto com as comunidades africanas que, com exceção daquelas localizadas na Costa Leste - que receberam influência direta dos muçulmanos e estrangeiros -, segundo ele, desenvolveram limitadamente práticas comerciais pelo fato de não possuírem a escrita. Nessa mesma linha de raciocínio, ele usa a seguinte

37 Tradução minha: “the intellectual differences between simple and complex societies” (GOODY; WATT, p. 68

justificativa para a existência do que nomeia como: “fenômeno chamado de capitalismo38 (GOODY, 1986, p. 86):

De fato, parte do fenômeno chamado neocolonialismo tem de ser visto em termos mesmo da grande abertura que é associada à ausência de uma forte tradição escrita que possa fazer frente às culturas letradas do sistema mundial. (…) Enquanto que as maiores sociedades do continente asiático foram fortemente afetadas pela expansão dos europeus, elas foram em menor número, ‘colônias’ no sentido africano, americano e oceânico; nem são hoje neocolônias do ponto de vista cultural. Suas tradições escritas lhes proveram de uma base de resistência cultural mais sólida do que no caso da maioria das culturas orais (GOODY, 1986, p. 86)39.

Ao justificar a dominação econômica e cultural de países como a Inglaterra sobre as colônias que estiveram por muitas décadas sob seu jugo - alegando, para isso, serem elas de culturas predominantemente orais e, com isso, possuindo uma base de resistência social mais fraca -, ele está flagrantemente assumindo que é aceitável a dominação de um povo sobre outro, já que existiria nesse contexto uma suposta superioridade de um sobre o outro. Não é preciso comentar quão prejudiciais foram essas relações forçadas de colônia e metrópole para as então colônias, que até hoje sofrem as consequências danosas dessa dominação, como instabilidade social, instabilidade política, pobreza e corrupção. Justificar a existência desse tipo de organização político-social e econômica é concordar com a exploração e o desrespeito ao próximo que existiram em um momento histórico tão triste da humanidade.

Além disso, ao estabelecer uma dicotomia entre a oralidade e a escrita dessa forma, Goody acabou por reforçar o que Graff (1979) chamou de “mito do letramento”, ou seja, a noção preconceituosa de que o letramento, de modo inerente, traz consigo consequências positivas, como uma maior capacidade cognitiva, e, consequentemente, abre possibilidades para a ascensão social, tanto em relação à ampliação do leque de relações sociais como em relação à ascensão econômica de seu possuidor. Sobre isso, Gee (2012, p. 47) também elenca algumas falácias em relação a essa concepção de letramento que alcançaram grande aceitação nas décadas e 70 e 80:

38 Tradução minha: “Phenomenon called neo-capitalism” (GOODY, 1986, p. 86).

39 Tradução minha: “Indeed part of the phenomenon called neo-colonialism has to be seen in terms of the very

openness which is associated with the absence of a strong, written tradition that can stand up against the written cultures of the world system. (...) While the major societies of the Asian continent were strongly affected by the expansion of Europeans, they were more rarely ‘colonies’ in the African, American and Oceanic sense; nor are they today neo-colonial from the culture standpoint. Their written traditions have provided them with a more solid basis for cultural resistance than in the case with most oral cultures” (GOODY, 1986, p. 86).

(...) o letramento leva ao pensamento lógico, analítico, crítico e racional; aos usos gerais e abstratos da linguagem; a atitudes céticas e questionadoras; à distinção entre mito e história; ao reconhecimento da importância do tempo e do espaço; a governos complexos e modernos (com a separação entre Igreja e Estado); à democracia política e à maior equidade social; a baixos índices de criminalidade; a cidadãos melhores; ao desenvolvimento econômico, à prosperidade e à produtividade; à estabilidade política; à urbanização; e a uma baixa taxa de natalidade (GEE, 2012, p. 47)40.

Esse tipo de pensamento é perigoso por ser potencialmente excludente devido ao fato de que, ao longo de nossa história recente, grupos sociais tidos como não letrados ou com o nível de letramento considerado baixo, foram postos à margem da sociedade ao serem vistos como inferiores e indignos de exercerem papeis sociais valorizados pela sociedade letrada. Esses grupos estariam assim em desvantagem econômica, tecnológica e cultural se comparados aos detentores “do pensamento transformado pela escrita” (KLEIMAN, 2008, p. 34).

Um exemplo de como essa noção preconceituosa tem se perpetuado até os dias de hoje encontra-se na pesquisa realizada por Magalhães (2008b, p. 201), com mulheres pobres que participavam do curso noturno de alfabetização de adultos no Lago Paranoá, analisando como se dá a construção de identidades em relação às práticas de letramento. Para a pesquisadora, o relato de Mariana é muito revelador da valorização da escrita alcançada por meio da alfabetização:

Mariana inicia o relato com informações sobre o nome e o lugar onde nasceu. Em relação ao nome, ela contrasta dois modos de registrá-lo no papel pelos adjetivos

direitinho/bonitinho (linhas 61-62) de um lado e rabiscado (linha 57) do outro. (...)

As avaliações são carregadas de sentidos ideológicos. Nesse caso, Mariana avalia positivamente a escrita alfabética, realizada de acordo com determinados padrões de forma e estética e avalia negativamente a escrita que deixa de seguir tais padrões (MAGALHÃES, 2008b, p. 222).

É possível perceber em suas palavras uma valorização do que é comumente considerado como pertencendo às pessoas letradas, isto é, de conseguirem escrever de forma ‘direita’ e ‘organizada’ em contraste com escrever ‘rabiscos’, ou coisas sem sentido, sem valor.

40 Tradução minha: “(…) Literacy leads to logical, analytical, critical, and rational thinking; general and

abstract uses of language; skeptical and questioning attitudes; a distinction between myth and history; a recognition of the importance of time and space; complex and modern governments (with separation of church and state); political democracy and greater social equity; a lower crime rate; better citizens; economic development, wealth, and productivity; political stability; urbanization; and a lower birth rate” (GEE, 2012, p.

Ainda com relação à mesma pesquisa, outro participante (MAGALHÃES, 2008b, p. 223) compara uma pessoa que não sabe ler nem escrever a uma pessoa “(...) praticamente cega porque ele vive dependente das outras pessoas”. A metáfora é bem forte e mostra, mais uma vez, que essa noção tradicional de letramento existe em muitas sociedades e que realmente pode ser um divisor de águas entre membros de uma mesma sociedade. Apesar de ainda hoje ser possível encontrar essas concepções funcionalistas do letramento, elas absolutamente não constituem mais um consenso, visto que uma nova maneira de se entender o letramento tomou forma e é atualmente aceita como melhor dando conta desse conceito tão complexo, os chamados Novos Estudos do Letramento, que serão discutidos a seguir.