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SUPORTES TEÓRICOS

4 PESQUISA ETNOGRÁFICO-DISCURSIVA

90 Tradução minha “Reflexivity, broadly defined, means a turning back on oneself, a process of self-reference.

4.3 Pesquisa etnográfico-discursiva

4.3.3 Análise de discurso crítica

De acordo com o que já foi apresentado aqui e no Capítulo 2, Fairclough (1999, 2003) trabalha com a perspectiva multifuncional da linguagem, desenvolvendo as metafunções de Halliday (HALLIDAY; MATHIESSEN, 2004) em significados. Para a ADC,

a vida social é composta por de três níveis: as estruturas sociais – correspondendo aos aspectos mais abstratos e, portanto, mais fixos da sociedade, como o sistema linguístico (destacando aí a linguagem), as estruturas econômicas e as instituições educacionais; tendo como seu extremo, os eventos sociais – que constituem os aspectos mais concretos, sendo assim, mais flexíveis, no sentido de mudanças da sociedade, por exemplo: uma determinada aula, uma sessão do tribunal do júri, um texto (manifestação multimodal da linguagem), apresentando também início e fim.

O terceiro e mais importante nível da vida social para os estudos da ADC é o nível intermediário, que constitui a ponte entre as estruturas e os eventos. São chamados de práticas sociais, ou seja, as maneiras habituais nas quais as pessoas levam suas vidas e fazem usos de recursos simbólicos e materiais. Para Fairclough (1999, p. 21), as práticas são constituídas nos diversos domínios da vida cotidiana, como os domínios da economia, da política e da cultura, de acordo com o tempo e os lugares. Eles constituem o que Fairclough chama de ordens do discurso (1999, p. 114-115; 2003, p. 24). Para ele, as ordens do discurso estão relacionadas a redes de práticas sociais com os seguintes elementos correspondendo, por sua vez, aos seguintes significados: discursos (significado representacional), gêneros (significado acional) e estilos (significado identificacional): sendo que esses elementos controlam e organizam a linguagem nas diversas áreas da vida social. Dois desses significados serão investigados nesta pesquisa: o Significado Representacional e o Significado Identificacional.

4.3.3.1 Significado representacional

Para Fairclough (2003, p.27) o Significado Representacional tem relação com os discursos. De acordo com ele (2003), discursos são modos de representar o mundo e são expressos, muitas vezes imperceptivelmente, através de valores, crenças e ideias. Identificar os variados discursos nos textos que serão analisados (advindos das transcrições das entrevistas) auxiliará na percepção dos múltiplos letramentos presentes nos discursos das profissionais do AEE e ajudará, consequentemente, na identificação da formação de suas identidades profissionais. O estudo dessas representações presentes nas falas das mães sobre o letramento e a inclusão também será importante na formação e reformulação diária de suas identidades maternas.

Para analisar essas falas, recorro ao sistema de transitividade conforme proposto por Halliday (HALLIDAY; MATHIESSEN, 2004), ligado originalmente à metafunção ideacional, e mais tarde desenvolvido por Fairclough (2003) no que agora chama de

Significado Representacional109. O sistema de transitividade está ligado à representação das ideias em relação às nossas experiências no mundo. Os três elementos experenciais básicos são elencados por Halliday (HALLIDAY; MATHIESSEN, 2004, p. 175) como sendo um determinado processo que se desenrola ao logo do tempo, os participantes envolvidos no processo e as circunstâncias do processo.

As ideias que representam nossas experiências no mundo são materializadas através dos seguintes tipos de processos (verbos ou grupos verbais), sendo que “(...) cada tipo de processo provê seu próprio modelo ou esquema para construir um domínio particular da experiência como uma imagem de um determinado tipo” (HALLIDAY; MATHIESSEN, 2004, p. 170, 171), a saber: materiais, mentais e relacionais110. Esses processos são tratados de forma mais detalhada nos Capítulos 5 e 6.

4.3.3.2 Significado identificacional

Os estilos são o aspecto discursivo das identidades. Segundo Fairclough (2003, p. 159): “Quem você é, é em parte uma questão de como você fala, como você escreve, assim como uma questão de personificação – como você olha, como você se considera, e assim por diante111”. Será observado nos textos o processo de constituição das identidades sociais das participantes dos diversos eventos que elas fazem parte ao longo de suas vidas. Analisar identidades e como elas são formadas, percebendo que, ao mesmo tempo, outras estão sendo rechaçadas, é importante em pesquisas críticas porque esse processo envolve relações de dominação: a escolha de qual identidade será aceita e de qual será rejeitada será fruto de um jogo de relações de poder entre grupos assimetricamente situados.

Observei nos textos transcritos das entrevistas e nos diários de participantes de que forma múltiplos letramentos nas relações interdisciplinares na ONG pesquisada

109 Ver Capítulo 4, Seção 4.4.2.

110 Existem ainda os chamados processos complementares ou secundários, que se encontram nas fronteiras dos

três tipos principais de processos apresentados aqui (HALLIDAY; MATHIESSEN, 2004, p. 170, 171): os

processos comportamentais (que se encontram entre os processos material e mental), que podem ser

manifestações externas de processos da consciência ou fisiológicos (como sorrir ou dormir); processos verbais (estão na fronteira dos processos mentais e relacionais), que se referem às relações de ação verbal, podendo ela ser simbólica, construída nas interações diárias ordenadas através da linguagem, como: “dizer”. Por último, o autor destaca o processo existencial (que se localiza nas fronteiras do processo relacional e do processo material) que tem a preocupação com o reconhecimento de todos os tipos de fenômenos do ser ou do existir e do acontecer, como por exemplo: “tem um livro ali na mesa” – “tem” no sentido de “acontecer”. Segundo Eggins (1996, p. 255), os processos existenciais normalmente empregam o verbo ser ou estar ou seus sinônimos, como: existir, surgir e acontecer.

111 Tradução minha: “Who you are is partly a matter of how you speak, how you write, as well as a matter of

embodiment - how you look, how you hold yourself, how you move, and so forth” (FAIRCLOUGH, 2003, p.

contribuem para as identidades profissionais ali. Como já mencionado há pouco, esta análise também se estenderá às mães no contexto dos diversos eventos nos quais participam ao longo de suas vidas e a relação deles com a formação de suas identidades.

Umas das categorias do Significado Identificacional que será usada na pesquisa será a modalidade. Ou seja, em um processo de identificação nos textos, os atores sociais poderão ou não se comprometer com o que dizem em diferentes graus – nesse contexto, seu comprometimento se torna uma questão de modalização textual. Para Fairclough (2003, p. 165-167), o processo de envolvimento das pessoas com aquilo que dizem é uma característica do que elas são ou do que podem ser, pois existem limites sociais nas escolhas da modalidade que vão além das relações sociais de textos ou de conversas particulares.

A avaliação (FAIRCLOUGH, 2003, p. 162), por sua vez, também pode auxiliar na revelação de identidades, visto ser perceptível nos discursos das pessoas ao expressarem comprometimentos implícitos ou explícitos com questões morais e de valores. Ainda segundo ele, até mesmo os pronomes escolhidos pelo falante ao se expressar podem ser significativos na elucidação desses comprometimentos ao usar, por exemplo, o nós para demonstrar sua aceitação ou aderência a alguma atitude ou modo de pensar e no uso deles/delas quando ele deseja se excluir de determinado grupo ou postura que discorde ou mesmo que execre. Na análise da avaliação, Fairclough (2003, p. 171) destaca três categorias que podem indicar comprometimento por parte do falante com questões de valor, a saber: enunciados avaliativos, enunciados com modalidades deônticas ou enunciados com verbos de processo mental afetivo e subentendidos relacionados a valores. Esses processos são tratados de forma mais detalhada nos Capítulos 5 e 6.