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A TRAMA LUMINOSA DO PARAÍSO NA VIA ANAGÓGICA

No documento – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 121-137)

No Paraíso, à guisa das outras duas cantigas, o primeiro canto é o prólogo que introduz o tema. O poeta nos conduz em uma realidade totalmente diferente em relação ao Inferno e ao Purgatório. O ambiente do Paraíso é diferente, não mais terreno, mas celestial, cheio de luz, música e movimento, bem como são diferentes as condições do peregrino, cuja transumanação será descrita no seu primeiro canto.

O primeiro canto se abre com a introdução tanto do sujeito quanto do objeto da cantiga: “colui che tutto muove” (quem tudo o mais comove) é retomado no desfecho do poema: “l‟amor che move il sole e l‟altre stelle” (do Amor que move o sol e move estrelas). Depois do solene prólogo, o canto se desenvolve através de um conjunto de três grandes elementos: o primeiro se refere ao ambiente em que se encontra o peregrino: o Empíreo; o segundo concerne à ação que, resumidamente, é uma contemplação e o último elemento tem a ver com a reflexão teológica. Entretanto, mutatis mutandis, mudada a matéria do discurso poético, muda também a maneira de expô-la: a língua do Paraíso é uma língua sublime que se funda principalmente na metáfora e em uma linguagem superlativa. O ambiente celestial onde o peregrino se encontra é perpassado constantemente por luz, música e movimento. “Fatto

avea di là mane e di qua será / tal foce, e quasi tutto era là bianco / quello emisperio, e l‟altra parte nera” (Essa luz repartindo-se fizera / noite aqui, dia lá, e agora branca / alumiava uma parte, e enegrecera / a outra...) (Par. I, 43-45); um ambiente quase todo branco pela luz solar. Em seu ensaio “Luz: a escrita paradisíaca”, Haroldo de Campos intitula seu primeiro capítulo exatamente assim: “τ branco no branco” e afirma que

O Paraíso, terceiro e último lance (Cantica) do Poema Sacro, poderá então ser visto, numa dimensão essencial, como a expansão gradativa daquela metáfora sobre a luz, irrigada agora de teologia aquiniana.237

Com efeito, a linguagem metafórica dantesca é o meio primário, príncipe da figuração da luz paradisíaca. É na linguagem metafórica que o poeta consegue expressar sua linguagem mística que lida com as fronteiras da língua e da comunicabilidade. O poeta põe à prova a língua in fieri por ele criada e Diego Sbacchi nota que

è attraverso la lingua che Dante, sulla scorta dell‟Aeropagita, riesce a rendere tale sforzo: il linguaggio superlativo costituisce il tentativo di avvicinarsi a Dio, quello gerarchico ne puntualizza e sottolinea l‟impossibilità, essendo la gerarchia umana

diversa e altra rispetto a quella divina.238

Nesse meio da metáfora, a linguagem anagógica dantesca utiliza o superlativo como meio linguístico para construir sua poética, pois essa forma gramatical permite expressar o mais alto nível da qualidade, seja em termos absolutos seja em termos relativos. Na tentativa de expressar o Absoluto a quem Dante almeja, ele tensiona a língua. No Empíreo, Dante elabora o desfecho da questão mais importante do poema: a comunicabilidade do incomunicável ou a tradução em palavras de uma experiência inefável. Nessa trajetória de uma viagem ascensional, a metáfora da luz toma o espaço principal na questão da tradução do visto e do ouvido.

A declaração de que “è corto il dire e come fioco / al mio concetto! e questo, a quel

ch‟i‟ vidi, / è tanto, che non basta a dicer „poco‟.” (Curto o dizer! Dele quão sobranceiro /

dista o conceito, e deste ao contemplado / como dizer com “pouco” o quanto, inteiro?) (Par. XXXIII, 121-124) não cala a alta fantasia que consegue ainda nomear a coisa vista. Não se trata de memória limitada ou fraca, mas de distância entre o contemplado e o comunicável. A essência espiritual da experiência vivenciada é comunicada na linguagem poética e na metáfora da luz.

Com efeito, no terceto seguinte “τ luce etterna che sola in te sidi / sola t‟intendi, e da

te intelletta / e intendente te ami e arridi!” (Ó lume eterno, a sós em te sediado, / só te

entendendo e de ti intelecto, / e no entender-te amante deleitado!) (Par. XXXIII, 124-126), a metáfora do lume eterno representa novamente a Trindade que pouco antes, em dois tercetos (Par. XXXIII, 85-90 e 115-120), tinha descrito com palavras como “s‟interna” (v. 85), com a metáfora do livro do mundo: “legato con amore in un volume” (ligado com amor num só volume) (v. 86); com “squaderna” (escaderna) (v. 87), com verbos como “conflati” (unidos) (v. 89). A primeira coisa que Dante viu (v. 85-90) é nomeada com a imagem do livro que pretende representar o Arquétipo, em uma linguagem teológica, que reúne tudo com amor. Mas a alta fantasia dantesca vai além. A linguagem filosófica medieval se torna linguagem literária e as “sustanze e accidenti e lor costume” (Substância, acidente e o seu costume) (v. 88) são “quasi conflati insieme” (unidos entre si), ou seja, soprados juntos. A palavra cunhada por Dante é composta pela preposição „com‟ + „flati‟, plural de „flato‟, oriundo do latim

238 SBACCHI, Diego. Il linguaggio superlativo e gerarchico del Paradiso. In: L Alighieri. número XXXI. Ravenna: Longo, 2008, pp. 5-22. A citação é extraída de p. . é através da língua que Dante, na esteira do pseudo-Dionigi, consegue expressar tal esforço: a linguagem superlativa constitui a tentativa de se aproximar a Deus, enquanto a linguagem hierárquica precisa e sublinha a impossibilidade, sendo a hierarquia humana diferente e outra em relaç~o {quela divina. [tradução minha].

„flatus‟ que significa sopro. τu, talvez, do termo latino „conflatio‟, que entre os vários significados tem o de “fusão de metais” e “ardor da fé”.239τ „quase‟, marcando a prudência, é utilizado pelo poeta como recurso de uma linguagem metafórica. No sentido anagógico, o poeta nos quer levar, embora a exatidão da metáfora seja relativa, ao sopro divino criador descrito no livro do Gênesis. Na segunda descrição da visão (Par. XXXIII, 115-120), Dante utiliza termos como “profonda” (profunda) (v. 115), “alto lume” (alta luz) (v. 116), “tre giri” (três giros) (v. 117), “tre colori” (três cores) (v. 118) e “d‟una contenenza” (numa só circunferência). Trata-se da visão da Trindade, escandida pelos números um e três: três pessoas iguais e distintas. Poeticamente, a imagem sublime do íris eleva a linguagem na representação, contida na oração do Credo cristão católico do Pai e do Filho dos quais a terceira pessoa é criada a partir do sopro (“spiri”) como um fogo.

De um ponto de vista linguístico, o poeta recorre duas vezes ao superlativo: com „profunda‟, que é uma forma de superlativo como „extremo‟, e „alta‟, que é um superlativo relativo. Seguindo as considerações de Sbacchi,

uno degli strumenti con cui Dante affronta la sua scommessa è l‟uso del superlativo, che tenta di rendere lo sforzo verso il sublime vissuto dal poeta. Questo espediente è tipico di un altro scrittore, ovvero Dionigi Aeropagita, i cui scritti abbondano di “superlativi”, volendo le virgolette indicare che in tale categoria grammaticale ricadono non solo i superlativi stricto sensu, ma anche qualsiasi aggettivo, nome, verbo, avverbio e loro combinazioni che servono a innalzare il discorso, poiché manifestano nel significato stesso un‟idea espressa al massimo grado logico.240

Em seu estudo, Sbacchi analisa as ocorrências do superlativo na Comédia. O dantista expõe detalhadamente as ocorrências de vários tipos de superlativos: absolutos, relativos ou aqueles definidos como orgânicos, ou seja, com forma autônoma em relação ao grado positivo. Estão presentes adjetivos como extremo, ínfimo, sumo, último e não faltam advérbios combinados com adjetivos como em “lieto assai” (muito feliz) (Par. X, 24) ou advérbios que expressam o alto grau em que se manifesta uma ação como em “ciel sempre

quieto” (céu sempre quieto) (Par. I, 122). Além do superlativo, Sbacchi indaga também a

239 MABILIA, Valentina e MASTANDREA, Paolo (orgs.). Vocabolario Latino-Italiano / Italiano-Latino. Bolonha: Zanichelli, 2005, p. 139.

240 SBACCHI, Diego. Il linguaggio superlativo e gerarchico del Paradiso, in: L Alighieri. número XXXI. Ravenna: Longo, 2008, pp. 5- . A citaç~o é extraída de p. . um dos instrumentos que Dante usa no enfrentar seu desafio é a utilização do superlativo, o qual tenta expressar o esforço enquanto sublime vivenciado pelo poeta. Este expediente é típico de outro escritor, o pseudo-Dionigi, cujas obras estão repletas de superlativos , querendo as aspas indicar que nesta categoria gramatical entram n~o apenas os superlativos stricto sensu, mas também qualquer adjetivo, nome, verbo, advérbio e suas combinações que servem para elevar o discurso, pois no próprio significado manifestam a ideia expressa ao máximo grau lógico. [tradução minha].

construção de neologismos e de palavras afixadas. É o caso do prefixo super e suas variantes que dão termos como “supremo”, “superno”, ora identificando uma qualidade, ora uma hierarquia. Em “E fosse il cielo in sua virtù supprema” (fosse o céu em sua virtude suprema) (Par. XIII, 74), o adjetivo qualifica o substantivo. É o momento em que Dante é esclarecido por Tomás de Aquino em relação à luz do celo, ou seja, a luz da ideia divina (“la luce del

suggel”) (a luz do selo) (Par. XIII, 75), que se manifestaria na sua transparência completa se o

céu estivesse na sua condição melhor, ou seja, ao máximo de sua capacidade de influência, enquanto a natureza a reflete sempre de forma imperfeita. Enquanto que em “raggeran sì

questi cerchi superni” (raiarão estes círculos supernos) (Par. XXVII, 144), o adjetivo indica a

posição hierárquica dos céus que estão em uma posição mais alta em relação à Terra. Outros prefixos sinalizados por Sbacchi241, via Scazzoso242, são “arc-” que dá “archimandrita” (arquimandrita) (Par. XI, 99) e “arcangeli” (arcanjos) (Par. XXVIII, 125)ν o prefixo “olo-” que faz usar a Dante o termo “olocausto” (holocausto) (Par. XIV, 89); o prefixo “proto-” está presente em termos como “principio” (princípio), “princìpi” (princípios) “principe” (príncipe), “principi” (príncipes), “primizia” (primazia), “primipilo” (primipilo). Enfim, vale ressaltar que Sbacchi indica três verbos usados por Dante para expressar “a sublimidade inalcançável por parte do homem e sua consequente apofasia”243: “soprapuose” (sobrepôs) (Par. XV, 42), ou seja, põe-se sobre algo, além do limite da capacidade intelectiva humana; “superillustrans” (Par. VII, 2), que significa iluminar com abundância; e “superinfusa” (Par. XV, 28) dito em relação à graça que excede. Nesse sentido, Chiavacci Leonardi sinaliza que os verbos poderiam ser formados a partir da semelhança como o verbo “superabundare” (superabundar) utilizado pelo Apóstolo Paulo (Rom. 5, 20; Ehp. 1, 8; 1 Tim. 1, 14).244

É nessa língua superlativa e com a faculdade imagética ( αν α ια) que

L‟ingegnosità di Dante nel coniugare estasi mistica e totale controllo razionale sull‟impossibile materia dell‟assunto è ogni volta fonte di meraviglia.245

241 SBACCHI, Diego. La presenza di Dionigi Areopagita nel Paradiso di Dante. Florença: Leo S. Olschki Editore, 2006.

242 SCAZZOSO, Piero. Ricerche sulla struttura del linguaggio dello pseudo-Dionigi Areopagita. Milão: Vita e Pensiero, 1967.

243 SBACCHI, Diego. Il linguaggio superlativo e gerarchico del Paradiso, in: L Alighieri. número XXXI. Ravenna: Longo, 2008, pp. 5-22. A citação é extraída de p. 10 [tradução minha].

244 CHIAVACCI LEONARDI, Anna Maria. In: ALIGHIERI Dante. Commedia. Paradiso…, op. cit., p. .

245 ARIANI, Marco. Lux inaccessibilis. Metafore e teologia della luce nel Paradiso di Dante. Roma: Aracne , p. : A engenhosidade de Dante no conjugar êxtase mística e total controle racional sobre a impossível matéria do assunto é cada vez mais fonte de maravilha. . [tradução minha].

Com absoluto controle racional de sua capacidade imagética, Dante nos proporciona uma poética em que a arte de combinar metáfora e sinestesia é fundamental para representar a irrepresentável luz divina, e cuja linguagem extraordinária é capaz de reportar a culminante experiência do excessu mentis. Conforme Ariani,

nella cultura medievale, la teoresi dell‟unio mystica tramite l‟excessus mentis ha assolto non solo ad una capitale funzione di deposito di immagini e metafore, a cui Dante ha attinto a piene mani, ma ha stabilito, proprio sulla base di una sistematica rilettura di Dionigi, un saldo fondamento razionalistico, assunto in pieno dal poeta nell‟ardua impresa di figurare l‟infigurabile luce e accettarne razionalmente l‟impraticabilità.246

No entanto, a árdua empreitada de Dante consegue alcançar um equilíbrio na comunicação do incomunicável. A experiência do limite do imaginário é transmudada em uma linguagem anagógica que permite, ao poeta, o alcance de um equilíbrio entre a praticabilidade e impraticabilidade da figuração. Ao final do canto XXXIII do Paraíso, Dante faz uma declaração interessante que se relaciona diretamente à memória e à palavra. Com a consueta linguagem sublime do Paraíso, o poeta afirma que:

A l‟alta fantasia qui mancò possaν (Par. XXXIII, 142)

E na transcriação de Haroldo:

A fantasia agora está calada;

A declaração de impotência é analisada por Pierluigi Lia com o intuito de aprofundar a experiência atestada a fim de entender de que forma ela se combina com a construção do imaginário, que fundamentou o poema, e em que medida se possa confirmar “la teoria linguistica di Dante che lega rivelazione della verità, costituzione dell‟immaginario, opera della lingua e della scrittura”247

. Em seguida, Lia comenta esse passo destacando que

la ragione che il poeta confessa è del tutto inedita: non è la povertà della parola dello scriba e nemmeno un difetto di memoria del poeta, è invece il venir meno dell‟«alta fantasia» del pellegrino. Il poderoso meccanismo di produzione dell‟immaginario di

246 ARIANI, Marco. Lux inaccessibilis. Metafore e teologia della luce nel Paradiso di Dante. Roma: Aracne , p. : na cultura medieval, a teorese da unio mystica por meio do excessus mentis tem respondido não apenas a uma capital função de depósito de imagens e de metáforas, às quais Dante recorreu plenamente, mas estabeleceu, com base mesmo numa sistemática releitura do pseudo-Dionigi, um firme fundamento racionalístico, tomado totalmente pelo poeta na árdua empresa de figurar a não figurável luz e aceitar racionalmente a impraticabilidade da mesma. [tradução minha].

247 LIA, Pierluigi. Dalla visione ineffabile all immaginazione visionaria. La questione della lingua tra il «Paradiso» di Dante e la «chôra» platonica. Annali di studi religiosi. n. 16. Trento: Editore FBK-PRESS, 2015, pp. 75-94. A citaç~o é extraída de p. : a teoria linguística de Dante, que liga revelação da verdade, constituiç~o do imagin|rio, obra da língua e da escritura. [tradução minha].

cui ha goduto fin qui, giunto a questo vertice dell‟esperienza mistica viene disattivato.248

O imaginário é desativado, ou nas palavras de Haroldo de Campos,“a fantasia agora está calada”. É oportuno frisar que essa declaração negativa de Dante é o desfecho da

Comédia e que, até aqui, as afirmações de impotência proferidas no decorrer do poema

sempre foram superadas sem interromper a narrativa. Somente agora, logo depois do ápice da experiência mística, “Il nocciolo dell‟esperienza della verità di Dio e del suo interlocutore, il nocciolo dell‟esperienza mistica si vieta all‟immaginario”249

. Convém lembrar o raciocínio de Benjamin a respeito da comunicação:

toda comunicação de conteúdos espirituais é língua, linguagem, sendo a comunicação pela palavra apenas um caso particular: o da comunicação humana e do que a fundamenta ou do que se funda sobre ela (a jurisprudência, a poesia).250 A palavra, segundo Benjamin, é apenas um caso particular de comunicação. Então, se poderia também dizer que na palavra se funda a comunicação humana e a comunicação poética. Tratando-se de poesia, na Comédia, não há palavra que seja posta por acaso, acidentalmente. E toda palavra é posta com o intuito de comunicar algo. Mas, poderíamos nos perguntar com Benjamin: “τ que comunica a língua?”. É o mesmo filósofo alemão que nos responde:

Ela comunica a essência espiritual que lhe corresponde. É fundamental saber que essa essência espiritual se comunica na língua e não através da língua. Portanto, não há um falante das línguas, se se entender por falante aquele que se comunica através dessas línguas. A essência espiritual comunica-se em uma língua e não através de uma língua, isto quer dizer que, vista do exterior, ela, a essência espiritual, não é idêntica à essência linguística. A essência espiritual só é idêntica à essência linguística na medida em que é comunicável.251

O conteúdo da experiência que Dante pretende comunicar é um conteúdo espiritual e isso é comunicado na língua. Com a declaração de que a fantasia chegou a calar-se, se desativa, portanto, o mecanismo de construção do imaginário e acaba a comunicação. Vale

248 LIA, Pierluigi. Dalla visione ineffabile all immaginazione visionaria. La questione della lingua tra il «Paradiso» di Dante e la «chôra» platonica. Annali di studi religiosi. n. 16. Trento: Editore FBK-PRESS, 2015, pp. 75-94. A citação é extraída de p. : a razão que o poeta confessa é totalmente inédita: não è a pobreza da palavra do escriba e nem um defeito de memória do poeta, mas é no vir a faltar a alta fantasia do peregrino. O poderoso mecanismo de produç~o do imagin|rio do qual se beneficiou até aqui, chegado neste vértice da experiência mística é desativado. [traduç~o minha].

249)bidem, p. O cerne da experiência da verdade de Deus e de seu interlocutor, o cerne da experiência mística veda-se ao imagin|rio. [traduç~o minha].

250 BENJAMIN, Walter. Escritos sobre mito e linguagem (1915-1921). São Paulo: Duas Cidades / Editora 34, 2011, p. 50.

ressaltar que nesse desfecho do poema a escolha crucial de Dante cai na palavra fantasia e não na palavra memória como tinha feito no começo do canto I do Paraíso, dizendo “che dietro la

memoria non può ire” (que a memória não segue o seu correr) (Par. I, 9). Essa escolha é

importante para entender que na língua foi comunicado o que era comunicável. O vocábulo “fantasia” recebe a qualificação de “alta” e o advérbio de tempo “qui” (aqui) indica o momento em que aconteceu a experiência de que

Alla fantasia, a quella facoltà cioè che percepì la visione (apparsa alla sua mente in forma sensibile, e non in forma concettuale: si cfr. XIX 8-9 e nota), viene meno la possibilità di vedere ancora. Con semplice e conclusivo moto del verso, il poeta dichiara infine di aver toccato il termine del suo vedere e del suo poetare, e rinuncia, quasi posando la penna, a ridire, cioè a scrivere ancora.252

A fantasia, pois, enquanto faculdade ou capacidade imagética da mente, além de inventar situações e figuras que não se dão na realidade, elabora e constrói o imaginário de uma experiência vivenciada comunicável. E essa comunicação acontece por meio de metáforas. Por isso, entender melhor a fantasia como instrumento fundamental de mediação entre experiência e língua nos faz mergulhar na importância da metáfora. A metáfora se apresenta como depositária do significado, no sentido de que ela atua criando uma tensão linguística entre significante e significado. A fantasia, enquanto capacidade imagética, constrói o imaginário, torna-se o lugar onde a experiência se torna comunicação de conhecimento. Ao reputar seu próprio poema como sacro, Dante se sente chamado a representar poeticamente a Lux inaccessibilis, (luz inacessível) 253. A possibilidade de uma experiência mística que conduza no imenso segredo divino é proporcionada pela graça de Deus que transumana a fantasia para o poeta testemunhar sua vivência. Dante autor, ao definir a Comédia “sacrato poema” (sacro poema),

chiede di essere altresì riconosciuto quale «scriba Dei» e chiede al lettore credente di accostarsi alla sua opera come a una Sacra Scrittura.254

Dante é um homem cristão que reconhece sua própria identidade e sua própria

252 CHIAVACCI LEONARDI, Anna Maria. In: ALIGHIERI Dante. Commedia. Paradiso…, op. cit., p. . À fantasia, ou seja, àquela faculdade que percebeu a visão (aparecida à sua mente de forma sensível, e não de forma conceitual: cf. XIX 8-9 e nota), vem a faltar a possibilidade de ver mais. Com simples e conclusivo moto do verso, o poeta declara, enfim, ter tocado o término de seu ver e de seu poetar, e renuncia, quase guardando a caneta, a redizer, ou seja, a escrever mais. [tradução minha].

253 ARIANI, Marco. Lux inaccessibilis. Metafore e teologia della luce nel Paradiso di Dante. Roma: Aracne 2010, p.12.

254 LIA, Pierluigi. Dalla visione ineffabile all immaginazione visionaria. La questione della lingua tra il «Paradiso» di Dante e la «chôra» platonica. Annali di studi religiosi. n. 16. Trento: Editore FBK-PRESS, 2015, pp. 75-94. A citaç~o é extraída de p. : pede que seja reconhecido também como scriba Dei e pede ao leitor crente que se aproxime de sua obra como uma Sagrada Escritura [traduç~o minha].

vocação e missão de escriba de Deus. Ao mesmo tempo, ele é ciente dos limites da linguagem, da memória e do imaginário; em suma, dos limites do homem. Mas isso não impede a consciência de que, por graça, ele foi chamado a uma experiência mística. Lia descreve Dante como um

uomo, ammesso a godere dell‟intimità teologica da uomoν il vertice di quell‟intimità sancisce questa differenza nell‟esperienza di un‟impotenza che prima che verbale è impotenza della fantasia che articola la conoscenza umana.255

No desfecho do poema se destaca, assim, que a fechar-se não é a memória do acontecido, mas o mecanismo da fantasia que chegou ao seu limite. Se, como vimos, a fantasia é o lugar de constituição do imaginário e a metáfora é o instrumento linguístico que permite a configuração da imagem, a linguagem anagógica realiza a perfeição dos sentidos possíveis do texto. Na perspectiva escatológica, ou seja, na primeira das duas “anagogias” concebidas por De Lubac, se afirma que

L‟anagogia realizza dunque la perfezione sia dell‟allegoria che della tropologia, facendone la sintesi. Essa non è né “oggettiva” come la prima né “soggettiva” come la seconda. Al di là di questa divisione, essa realizza la loro unità. Essa integra il senso totale e definitivo. Mira, nell‟eternità, alla fusione del mistero e della mistica. In altre parole, la realtà escatologica raggiunta mediante l‟anagogia è la realtà eterna, nella quale qualunque altra realtà ha la sua consumazione. Essa è nel suo stato definitivo quel “testamentutm novum quod est regnum caelorum”ν costituisce “la Pienezza di Cristo”.256

De outro lado, a anagogia é a elevação da linguagem rumo a um discurso místico no

No documento – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 121-137)