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Intertextualidade e écfrase

No documento – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 83-103)

4 INTERTEXTUALIDADE ENQUANTO HERMENÊUTICA TEXTUAL

4.2 Intertextualidade e écfrase

No capítulo Para uma tipologia da intertextualidade dantesca139, do livro que acolhe de certa maneira o legado intelectual da professora Corti, a estudiosa se pergunta “come le fonti agiscono sulla struttura di un testo letterario”140 e, referindo-se ao tratado IV do

Convivio, nos mostra que quando Dante escreve essa parte da obra, “qualcosa é mutato a

livello interiore nello scrittore”141

e, com essa mudança, mudaram também seus “programmi di lavoroν come dire, é mutato il suo punto di vista”142.

Così nel IV trattato del Convivio si inseriscono fonti con ruolo primario diverse e di un diverso ambito letterario, ideologico oppure si accentua il ruolo di una fonte che era in funzione secondaria. In altre parole, è entrato in crisi il sistema precedente di fonti pertinenti.143

O ponto de vista de Dante ou perspectiva a partir da qual o poeta constrói seu texto é mutável por natureza, no sentido que embora a pessoa seja sempre a mesma e o argumento se mantenha o mesmo, acontece que mutatis mutandis, ou seja, uma vez efetuadas as necessárias mudanças, se verifica um deslocamento na escolha das citações que traz um novo sentido ou uma nova perspectiva para o mesmo argumento. Com efeito, as auctoritates que tinham uma função secundária nos primeiros três tratados do Convivio se tornam principais. Este assunto é bem argumentado por Corti no capítulo V da terceira parte de seu livro sobre Dante,144 onde vem demonstrada a mudança das escolhas que Dante faz no panorama cultural e filosófico de seu tempo: no quarto tratado do Convivio, as opções caem de forma evidente e numericamente importante sobre auctoritates ético-filosóficas de origens religiosas contra as de Aristóteles, que predominava nos outros tratados do Convivio.

σeste IV tratado “le citazioni esplicite da Aristotele sono 41 di fronte a 18 di Salomone e a 25 da testi sacri e patristici”145

. Ao comparar este quarto tratado com o terceiro,

139 CORTI, Maria. Scritti su Cavalcanti e Dante. La felicit{ mentale. Percorsi dell invenzione e altri saggi. Turim: Einaudi, 2003, pp. 83-94.

140)bidem, p. : de que forma as fontes agem na estrutura de um texto liter|rio [traduç~o minha]. 141)bidem, loc. cit.: no escritor algo mudou no seu nível interior [traduç~o minha].

142)bidem, loc. cit.: programas de trabalho; ou seja mudou o seu ponto de vista [traduç~o minha].

143)bidem, loc. cit.: Assim no )V tratado do Convivio se instalam fontes diversas com papel primário e de um diferente âmbito literário, ideológico ou se acentua o papel de uma fonte que estava em posição secundária. Em outras palavras, entrou em crise o sistema anterior de fontes pertinentes. . [tradução minha].

144 Idem. Distanza testuale e cronologica del trattato IV. In: ____. Scritti su Cavalcanti e Dante..., op. cit., pp. 145-166.

que é aquele que lhe se aproxima mais pelo argumento, resultando então comparável, de acordo com Corti,

“le citazioni di fonti religiose sommate superano le aristoteliche, mentre nel III trattato erano meno della metà. Secondo dato: si verifica un incremento di altre auctoritates testamentarie e di varie neotestamentarie.”146

Eis uma possível motivação de tamanha diferença entre os primeiros três tratados e o quarto em termos de estrutura textual, de conteúdo ideológico e temático. Com efeito, ler e analisar as obras de Dante é como olhar um rubi multiface, pois o poeta apresenta uma capacidade de argumentar poliedral e em contínua metamorfose. Ele não para diante das possibilidades de mudança, segue em frente, e é por isso

Che la crisi del sistema dell‟opera diventi crisi del sistema delle fonti (ma vale anche il contrario, la freccia della direzione invertita) significa omologia o addirittura isomorfismo fra i due sistemi; si tratta di due sistemi semiotici complementari.147 As mudanças enriquecedoras da experiência vivenciada levam o poeta a não limitar a sua própria capacidade imagética e de comunicação com o uso apenas da língua. Em direção invertida, come disse Corti, Dante atua com a complexidade das relações entre sistemas semióticos. Para demonstrar a mudança e a complementaridade dos sistemas semióticos, Corti pega como exemplificação o canto X Purgatório, (130-39) em que a similitude dantesca utilizada para comparar os soberbos aos telamones, que na arquitetura românica e gótica sustentavam os entablamentos, tem como fonte não somente a afiguração icônica dos mesmos telamones, mas também a inscrição subjacente. A este respeito, Fallani148 lembra duas inscrições que acompanham duas cariátides na porta do Duomo de Civita Castellana (agora na Igreja de Sant‟Antônio da mesma cidade) em forma de diálogo: uma que invoca “aiutame” (me ajude), e a outra que lhe responde “non possum quia crepo” (não posso porque estou morrendo).

No trecho em destaque, o narrador descreve a cena utilizando o sistema semiótico da

de Salom~o e {s de textos sagrados e patrísticos. . [tradução minha].

146 CORTI, Maria. Scritti su Cavalcanti e Dante. La felicità mentale. Percorsi dell invenzione e altri saggi. Turim: Einaudi, , p. : as citações das fontes religiosas somadas superam as aristotélicas, enquanto neo tratado III eram menos da metade. Segundo dado: verifica-se um acréscimo di outras auctoritates testament|rias e neotestament|rias. [traduç~o minha].

147)bidem, pp. : Que a crise do sistema anterior de fontes se torne crise do sistema das fontes (mas vale também o contrário, a flecha da direção invertida) significa omologia ou até isomorfismo entre os dois sistemas; trata-se de dois sistemas semióticos complementares. [tradução minha].

148 FALLANI apud CHIAVACCI LEONARDI, Anna Maria. In: ALIGHIERI Dante. Commedia. Purgatorio…, op. cit., pp. 241-242.

arte e compara os corpos dos aflitos exatamente às cariátides.

Come per sostentar solaio o tetto, per mensola talvolta una figura si vede giugner le ginocchia al petto,

la qual fa del non ver vera rancura nascere ‟n chi la vedeν così fatti vid‟io color, quando puosi ben cura.

Vero è che più e meno eran contratti secondo ch‟avien più e meno a dosso; e qual più pazienza avea ne li atti, piangendo parea dicer: „Più non posso‟.

[E tal, às vezes, a suster um teto

vê-se de um corpo a cópia forcejar,

que, unindo o peito aos joelhos, no conspecto

algo suscita em nós do mal-estar que o cremos afligir, posto inventado - assim o bando vi, lento, a chegar.

Um era menos, outro mais curvado, segundo os fardos, neles, desiguais; e dentre todos o mais conformado

parecia bradar: “σão posso mais!”]

(Pur. X, 130-139)

A significação através de obras esculturais era bem notória nos leitores medievais e Dante utiliza esse meio para representar as almas dos soberbos. A similitude criada pelo poeta não entende ressaltar apenas a diferença entre o que é verdadeiro (vera rancura, ou seja, angústia ou sofrimento) e o que verdadeiro não é (non ver), mas também que essa não veridicidade é mesmo capaz de produzir um sentimento verdadeiro (a rancura, ou seja, a angústia ou sofrimento). A performance emocional que surge da representação escultural pela

similitude é muito forte, justamente pela figura realista que representa. À figura se une com extrema genialidade poética a palavra que os soberbos aflitos chorando dizem: “não aguento mais”. A esse respeito, vale um comentário da Chiavacci Leonardi que fornece dados interessantes para uma melhor compreensão do trecho.

L‟indicazione è del Fallani (ad locum; e cfr. per il testo Contini in «Lingua Nostra» XXVII, 1966, 1, p. 14 e XXXII, 1971, 1, p. 15). Non è certo detto che Dante le abbia viste (anche se è da ricordare che Civita Castellana è citata in Vulg. El. I, XIII 2), ma il riscontro è importante, anche perché altre simili scritte potevano esservi altrove. Se questo verso le ricorda, esso aggiunge una singolare determinazione all‟immagine delle cariatidi, uno dei molti esempi dei tanti caratteristici aspetti di città o paesaggi dell‟Italia di allora che, per via di similitudine, costruiscono la fisionomia dell‟oltremondo dantesco.149

É exatamente a partir dessa intertextualidade, que não é apenas textual, mas se fundamenta em dois sistemas semióticos complementares, que é construída a arquitetura textual do poema. A língua de Dante é muito rica de imagens. Do começo até o fim. Intermináveis espaços diferentes em contínua mudança percorridos por imagens em movimento. Constelações de sentidos. Mas qual é o processo de composição de sentidos para um escritor que, poderíamos dizer, traduz a imagem em palavras? E qual é a origem destas imagens? A escrita imagética de Calvino comprova esse cruzamento de limites, criando uma espécie de fronteira comum e indo além da beira da mimese. Um lugar onde palavra e imagem estão juntas pela capacidade mágica que a palavra tem de evocação imagética, tanto para com o escritor quanto em relação ao leitor. Calvino mesmo nos introduz em seu trabalho criativo de escritor que pensa, imagina e escreve através de suas lições americanas, publicadas no Brasil com o título Seis propostas para o próximo milênio. Na lição intitulada “visibilidade” Calvino descreve o começo de sua atividade de escritor:

Quando comecei a escrever histórias fantásticas, ainda não me colocava problemas teóricos; a única coisa de que estava seguro era que na origem de cada um de meus contos havia uma imagem visual. Por exemplo, uma dessas imagens era a de um homem cortado em duas metades que continuavam a viver independentemente; outro exemplo poderia ser a do rapaz que trepa numa árvore e depois vai passando de uma a outra sem nunca mais tocar os pés no chão; outra ainda, uma armadura vazia que se movimenta e fala como se alguém estivesse dentro dela.150 [grifo meu].

149 ALIGHIERI Dante. Purgatorio. In: Commedia... op. cit., pp. 241- : A indicaç~o é do Fallani ad locum; e veja-se o texto de Contini in: «Lingua Nostra» XXVII, 1966, 1, p. 14 e XXXII, 1971, 1, p. 15). Não é certo que Dante as viu (embora deve ser lembrado que Civita Castellana é mencionada in: Vulgari Eloquentia I, XIII 2), mas a descoberta é importante, também porque outras inscrições semelhantes poderiam estar em outro lugar. Se este verso as lembra, ele acrescenta uma determinação singular à imagem das cariátides, um dos muitos exemplos dos multíplices aspectos das cidades ou paisagens da Itália de então que, via similitude, constroem a fisionomia do ultramundo dantesco. . [traduç~o minha].

Na origem da escrita, então, há uma imagem visual ou mental. Isso nos introduz mais facilmente naquele contexto medieval em que prevalece a função performativa da palavra oral e, até mesmo quando escriturada em poesia, permanece ligada às qualidades sonoras, rítmicas e visuais de uma performance. Tradição e influência de um espaço oral que Zumthor151 pesquisa através dos manuscritos que chegaram até nós. Uma poesia que antes de ser escrita é poesia vocal, ligada indissoluvelmente à performance. Daí o processo do “verbi-voco- visualizar” (termo cunhado por Haroldo de Campos152

) para um texto que,

A seconda dei luoghi, delle epoche, delle persone implicate, [...] rimanda ora a un‟oralità che funziona in zona di scrittura, ora (e fu senza dubbio la regola nel XII e XIII secolo) a una scrittura che funziona nell‟oralità.153

Ainda no século de Dante (XIII), o sentido do termo escritura não é uniforme, tanto que W. τng “situa o manuscrito na continuidade da oralidade, enquanto a ruptura não acontece – progressivamente – senão com a imprensa”154. A escolha de determinado léxico que o poeta faz, como no caso dos soberbos relacionados às cariátides no canto X do Purgatório (130-39) que vimos antes e que está ligado a uma arte, a escultura, e a uma epígrafe, é

un insieme solidale di icona e iscrizione [che] è divenuto fonte di un testo scritto e ha prodotto in questo testo scritto un senso nuovo, la metafora o simbolo del

superbo. Il lettore contemporaneo della Commedia certo coglieva più di noi il

travaglio dell‟intertestualità e il passaggio da un senso proprio a uno figurato, simbolico. Daccapo due sistemi semiotici divengono complementari. 155 [negrito meu]

O recurso à metáfora através da complementaridade dos dois sistemas semióticos permite ao poeta suprir de certa maneira à indizibilidade da experiência vivenciada – tanto como autor quanto como personagem - no encontro e no reconhecimento das mais variadas

das Letras, 1990, p. 104.

151 ZUMTHOR, Paul. La lettera e la voce. Sulla letteratura medievale. Bolonha: Il Mulino, 1990, pp. 47-72 (o espaço oral) e pp. 129-155 (a escrita).

152 CAMPOS, Haroldo de. Pedra e Luz na Poesia de Dante. Rio de Janeiro: Imago Ed., 1998, p. 81.

153ZUMT(OR, Paul. op. cit., p. : Dependendo do lugar, das épocas e das pessoas envolvidas, [...] ora remete a uma oralidade que funciona em zona de escritura, ora remete a uma escrita (e foi sem dúvida a regra no século X)) e X))) que funciona na oralidade. [traduç~o minha].

154. Ibidem, p. 133 [tradução minha].

155 CORTI, Maria. Scritti su Cavalcanti e Dante. La felicit{ mentale. Percorsi dell invenzione e altri saggi. Turim: Einaudi, , p. : um conjunto solid|rio de ícone e inscriç~o [que] se tornou fonte de um texto escrito e produziu neste texto escrito um sentido novo, a metáfora ou símbolo do soberbo. O leitor contemporâneo da Comédia certamente captava, mais do que nós, o trabalho da intertextualidade e a passagem de um sentido próprio a um sentido figurado, simbólico. De novo dois sistemas semióticos se tornam complementares [traduç~o minha].

figuras que encontra ao longo de sua viagem e, sobretudo, ao longo da experiência mística durante a subida ao Paraíso.

Por ser um conjunto de ícone e inscrição, o trecho do Purgatório posto em destaque leva também a refletir sobre o nexo que o texto poético estabelece com a função discursiva da écfrase. A écfrase é inicialmente definida por Hermógenes nos Progymnasmata156 como “um enunciado que apresenta em detalhe, como dizem os teóricos, que tem a vividez e que põe sob os olhos o que mostra”. Ruth Webb, no começo da introdução em seu livro sobre a écfrase na retórica clássica, propõe a definição ensinada nas escolas gregas e romanas nos estudos de retórica, chamando a atenção do leitor para a perspectiva discursal relacionada à capacidade visiva: “A speech that brings the subject matter vividly before the eyes”157

. Trata-se, evidentemente, de discurso pronunciado por meio da palavra escrita e isso é diferente do discurso pronunciado perante o ouvinte, pois a palavra escrita produz efeitos diferentes da palavra proferida oralmente.

Na écfrase, tanto na tradução de Michel Patillon como na definição proposta por Webb, é trazido algo de visual diante dos olhos do leitor/ouvinte por parte do escritor/orador.

À medida que o tempo passou, desde a Antiguidade até os nossos dias, o conceito de écfrase mudou, passando do relato sobre objetos (o mais antigo, retomado pelos críticos, é a descrição do escudo de Aquiles na Ilíada de Homero) à relação entre artes verbais (poesia, por sinal) e artes visivas (ou visuais, como pintura, escultura, entre outras), entrelaçando-se, por vezes, com a tradição da ut pictura poesis.158. A Comédia, como um quadro, possui aquela ἐνάργεια (evidência representativa) capaz de atirar o leitor através da imagem ( αν α ια) construída com alta fantasia e a cada leitura é cada vez mais apreciada, pois tem

156 HERMÓGENES. Progymnasmata (Les Exercices Préparatoires). In: L Art Rhétorique. Tradução française intégrale, introduction et notes par Michel Patillon. Préface de Pierre Laurens. Paris: L Âge d (omme, 1997, pp. 10-23 apud HANSEN, João Adolfo. Categorias epidíticas da ekphrasis. Revista USP, n. 71, pp. 85- 105. São Paulo: set-nov. 2006, p. 85.

157 WEBB, Ruth. Ekphrasis, Imagination and Persuasion in Ancient Rhetorical Theory and Practice. Farnham: Ashgate Publishing Limited, , p. : Um discurso que traz o assunto vividamente diante dos olhos do sujeito traduç~o minha .

158 HORÁCIO (Quinto Horácio Flaco). Epistula ad Pisones. Tradução e Org. Júlia B. C. Avellar, Sandra Bianchet, Bruno F. S. Maciel e Darla G. Monteiro. Belo Horizonte: FALE/UFMG/ Viva Voz, 2013, pp. 42-43. Consultável em: http://150.164.100.248/vivavoz/data1/arquivos/epistula-site.pdf (Consultado em 29/01/2016). O contexto em que aparece a expressão são os versos 361- : Vt pictura poesis; erit quae, si propius stes, / te capiat magis, et quaedam, si longius abstes; / haec amat obscurum, uolet haec sub luce uideri, / iudicis argutum quae non formidat acumen; / haec placuit semel, haec deciens repetita placebit. . Em português brasileiro: A poesia é como a pintura: haverá uma que, se mais perto permaneceres, / mais te cativará, e outra se mais distante ficares; / esta ama o escuro, aquela, que não teme o aguilhão arguto / do crítico, quer ser vista sob a luz; / aquela uma só vez agradou, esta, apreciada dez vezes, agradar|. .

algo que a torna um texto clássico, pois conforme Lombardi:

un testo classico, di fatto, ci contiene. Un testo classico è un qualcosa nel quale noi viviamo. Un testo veramente classico, inoltre, deve permetterci di rigirarci tra le righe, mantenendo la nostra libertà (interpretativa) e così, ad ogni lettura, ci si presenta differente, o ci dà l‟illusione di averne scoperto sfaccettature nuove, angoli reconditi poco esplorati, cammini evidenti, ma finora gelosamente celati, percorsi avventurosi nella linearità delle parole, ghirigori apparenti dietro ai quali si riflette un‟antica (e a noi tanto necesssaria) saggezza.159

Na écfrase, a descrição do objeto, visto ou não pelo autor, real ou imaginário que fosse, era intimamente ligada ao discurso. E isto desde sempre. A palavra eloquente gerada pelo pensamento já na aurora da cultura ocidental – de Platão, que na República diferencia

mimesis icástica e mimesis fantástica, a Aristóteles, que teoriza a identificação entre mimesis

e poiesis –, leva a uma mundividência baseada na experiência visiva e na imitação. Com efeito, sabemos que a écfrase, enquanto recurso da ars rhetorica, vinha sendo empregada pelos retores gregos e romanos como modalidade de discurso epidíctico. De certa maneira, esta divisão entre filosofia e poesia e entre ética e estética, introduzida por Platão, continua permanecendo até hoje. Todavia, será Aristóteles, com a invenção de sua lógica, a definir que a poesia é imitação das ações humanas, estas classificadas entre nobres e vulgares. Na tentativa de resgate da poesia, Aristóteles logicizou seu estudo, criando normas e categorias, separando os gêneros e valorizando o estilo da tragédia como o mais “elevado”. A este gênero é dado mais valor porque representa as ações nobres dos homens, os heróis, ao passo que no gênero da comédia o papel representativo é atribuído às ações vulgares dos homens comuns.

Sucessivamente será pseudo-Longino a discorrer sobre o assunto, dedicando particularmente o capítulo XV de seu tratado sobre o sublime à problemática da imagem e ao processo de transformação que da palavra conduz à imagem. Em seu comentário introdutório, Donati assinala que “o efeito, na fantasia oratória, consiste na evidência representativa”160

, (ἐνάργεια), termo grego que, além de „evidência‟, também indica „vividez‟. Evidência, para

159 LOMBARDI, Andrea G. Una traduzione agonistica. A proposito della traduzione del nome di Dio. In: La Traduzione. Saggi e documenti II. Suplemento a Libri e Riviste d'Italia, nº 535-538, set-dez 1994. LAGES, Susana K., LOMBARD), Andrea G. et alii Orgs. . Esperienze e prospettive della traduzione in Brasile . Roma: Istituto Poligrafico e Zecca dello Stato / Ministero per i Beni Culturali e Ambientali, 1995, pp. 137-153. A citaç~o é extraída de p. : um texto clássico, de fato, nos contém. Um texto clássico é algo dentro do qual nós vivemos. Um texto verdadeiramente clássico deve também nos permitir girar entorno das linhas, mantendo nossa liberdade (interpretativa) e assim, em cada leitura, nos aparece diferente, ou nos dá a ilusão de ter descoberto novas facetas, cantos recônditos pouco explorados, caminhos evidentes, mas até agora ciosamente escondidos, percursos de aventura nas trilhas da linearidade das palavras, rabiscos aparentes atr|s dos quais se reflete uma antiga e para nós muito necess|ria sabedoria. . [tradução minha].

160 PSEUDO-LONGINO, Del Sulblime. Introdução, tradução e notas de Francesco Donati. Edição bilíngue. Milão, Rizzoli: 1991, pp. 210-223.

pseudo-Longino, não do objeto, que pode até não existir materialmente (como no caso do escudo de Aquiles), mas daquilo que é chamado de “ αν α ια” (termo traduzido como “imagem” na edição italiana e “fantasia” na edição brasileira161

),

com efeito, chamamos fantasia [ou imagem] indiferentemente todo pensamento que, de qualquer maneira, ocorra capaz de gerar uma palavra; mas hoje em dia o termo prevalece nos casos em que, inspirado e emocionado, parece-te estares vendo o de que falas e o pões sob os olhos dos ouvintes162 [grifo meu]

Sob os olhos de quem escuta o orador falar ou, ainda, sob os olhos do leitor que lê. Justamente a écfrase, como era entendida pelo retores gregos e romanos. Eis que a palavra, escrita ou oral, tanto na Antiguidade Clássica como na Idade Média, ou até na contemporaneidade dos nossos dias, resta intimamente conexa à imagem. Imagem visual ou imagem mental. Nessa esteira, o testemunho de Calvino é eloquente:

Ao mesmo tempo, a escrita, a tradução em palavras, [„resa verbale‟ in italiano]

No documento – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 83-103)