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Intertextualidade: sua origem e papel na Comédia de Dante

No documento – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 73-83)

4 INTERTEXTUALIDADE ENQUANTO HERMENÊUTICA TEXTUAL

4.1 Intertextualidade: sua origem e papel na Comédia de Dante

“A intertestualità può essere anche una avvincente forma de ermeneutica testuale”113

. É assim que Corti começa sua argumentação para propor uma tipologia de intertextualidade dantesca. Porém, antes de entrar apropriadamente no texto dantesco, é preciso percorrer, mesmo brevemente, nascimento e desenvolvimento da intertextualidade e seu papel na literatura. Com Berardinelli podemos destacar que

Il termine intertestualità si può dire che nasca ufficialmente nel 1967. In quell‟anno infatti la psicanalista e critica letteraria francese di origine bulgara, Julia Kristeva pubblica sulla rivista Critique un saggio intitolato – nella versione originale –, Bakhtine, le mot, le dialogue et le roman114

Poder-se-ia partir de uma frase de Julia Kristeva que, em sua argumentação sobre a palavra no espaço dialógico dos textos, cunhou o termo intertextualidade da seguinte maneira: “todo texto se constrói como mosaico de citações, todo texto é absorção e transformação de outro texto”.115

O pavê de blocos de pedrinhas, em que cada qual é importante e ocupa seu lugar na tessitura do mosaico do texto, se apresenta complexo. Essa imagem do mosaico nos conduz na seara da fragmentariedade do texto onde a constituição do sentido, sempre em devir, é engendrada a partir do tecido do texto em um movimento seletivo e combinatório de entrelaçamentos. Ora, a ideia de que um texto é um mosaico de textos (citações diretas ou indiretas) tecidos dentro de uma estrutura que os absorve e os transforma se liga ao conceito de autorictas enquanto fonte primária do autor que cria sua obra. O diálogo entre autores no espaço diacrônico se instaura através de textos e, portanto, conforme releva Kristeva,

113 CORTI, Maria. Scritti su Cavalcanti e Dante. La felicità mentale. Percorsi dell invenzione e altri saggi. Turim: Einaudi, , p. . A intertextualidade pode ser também uma apaixonante forma de hermenêutica textual. [tradução minha].

114 BERNARDELLI, Andrea. Il concetto di intertestualità. In: ____. (Org.). La rete intertestuale. Percorsi tra testi, discorsi e immagini. Perugia: Morlacchi Editore, 2010, pp. 9-62. A citaç~o é extraída de p. . O termo intertextualidade pode-se dizer que nasce oficialmente em 1967. É neste ano que a psicanalista e crítica literária francesa de origem búlgara, Julia Kristeva, publica, na revista Critique, um ensaio cujo título – na versão original – é Bakhtine, le mot, le dialogue et le Roman. [traduç~o minha].

115 KRISTEVA, Julia. Introdução à semianálise. Tradução de Lúcia Helena França Ferraz. São Paulo: Perspectiva, 2005, p. 68. A Kristeva publicou este ensaio qual resultado de análises dos estudos sobre a linguagem do formalista Russo Mikhail Baktin. O conceito de intertextualidade foi retomado, entre outros, por Maria Corti in: ____. Per una enciclopedia della comunicazione letteraria. Milão: Bompiani, 1997.

Em lugar da noção de intersubjetividade, instala-se a de intertextualidade, e a linguagem poética se lê pelo menos como dupla. Assim, o estatuto da palavra como unidade mínima do texto revela-se como o mediador que liga o modelo estrutural ao ambiente cultural (histórico), assim como o regulador da mutação da diacronia em sincronia (em estrutura literária).116

A literatura como sistema literário, segundo Corti, se estrutura em diferentes níveis: na ordem diacrônica por aquilo que se refere ao seu desenvolvimento na perspectiva histórica, e na ordem sincrônica quanto à sua articulação e interação dos gêneros117

. Com o intuito de focar na linguagem poética, Corti sustenta que “il primo aspetto del problema”118

não é somente de ordem linguística, porque envolve “la questione della competenza poetica”119

e o “processo di sviluppo dell‟energia creativa”120

. Isto significa identificar algo que se encontra antes do texto e que se relaciona com o texto. A energia criativa surge do texto a partir de uma análise profunda do mesmo. Então, se na poesia o problema não é apenas linguístico, mas envolve outros elementos, a energia criativa é no texto, ou em outras palavras, na língua enquanto motor propulsor da criação artística. Nesse sentido, a anagogia desenvolve um papel importante para a constituição do sentido, pois permite relacionar o texto com seu significado místico. Ora, o texto poético é caracterizado pela sua específica e própria linguagem que o distingue de outros textos e cuja unidade mínima, segundo Kristeva, é a palavra. Mandel‟stam observa que a obra de arte não se qualifica como uma obra que tem “la quiete buddista e ginnasiale del caso nominativo”121

. Por isso, para entender o que é linguagem poética é preciso levar em conta o ato criativo, ou melhor, a dinâmica da criação de um texto. É a partir dessa dinâmica que podemos focalizar “l‟azione di resistenza e violazione che il linguaggio poetico esercita sulla lingua come veicolo di comunicazione e codice.”122 Essa violação diz respeito à entrada do poeta no processo gerativo do texto e traz à tona o fato de que “il poeta scopre virtualità della lingua solo a lui aperte, crea una serie di cunicoli sotterranei che pongono in contatto elementi tra loro inaccessibili della lingua e, infine, elimina l‟arbitrarietà

116 KRISTEVA, Julia. Introdução à semianálise. Tradução de Lúcia Helena França Ferraz. São Paulo: Perspectiva, 2005, p. 68.

117 CORTI, Maria. Principi della comunicazione letteraria. Milão: Bompiani, 1976, p. 14. 118)bidem, p. . o primeiro aspecto do problema [traduç~o minha].

119)bidem, loc. cit. a quest~o da competência poética [traduç~o minha].

120)bidem, loc. cit. processo de desenvolvimento da energia criativa [traduç~o minha].

121MANDEL STAM, Osip. La quarta prosa. Bari: De Donato, , p. apud CORT), Maria, op. cit., p. . a quietude budista e ginasial do caso nominativo [traduç~o minha].

122CORT), Maria. )bidem, p. . a aç~o de resistência e violação que a linguagem poética exercita sobre a língua como veículo da comunicaç~o e código. [tradução minha].

del segno.”123

Assim, a contribuição do poeta empenhado na dinâmica criativa traz os fenômenos “della „semantizzazione della forma‟ e dello „slittamento del significato‟ ”124

como êxito do seu engajar-se na produção poética de sentidos. Entretanto, ao lado da duplicidade de uma leitura da linguagem poética (Kristeva), pode-se destacar a entrada também dupla do poeta, capaz, de um lado, de semantizar a forma da língua nos seus elementos fônicos, gráficos, de sintaxe, lexicais, criando figuras fonéticas e dinâmicas rítmicas-tímbricas, estendendo o significante e sua disseminação; com os recursos poéticos, por outro lado, o poeta provoca também um deslocamento do significado. Eco justifica a presença do deslocamento do significado em virtude da “tentativa de procurar um significado final inatingível”125

. Na dinâmica que leva significante e signo ao significado, os recursos da metáfora e da metonímia desenvolvem um papel de crucial importância pelos efeitos da retórica que produzem. A conexão complexa que o estilo dantesco cria a partir destes recursos nos faz assistir a uma ruptura na tradição linguística a ele entregue (tradição vem do latim

traditio, onis com base no verbo tradere que significa „ação de entregar, transmissão‟). Com

sua capacidade inovadora de olhar sobre o real e na busca de um idioma perfeito, um vulgar

ilustre126 – que emana luz, luminoso e nobre, mais “dignitário” – versus o latim que era

considerado até então a língua por excelência e, portanto, a língua literária, Dante busca uma língua/linguagem que seja mais alta, nobre e sublime em relação às variedades de línguas (hoje chamadas de „dialetos‟) que perpassam a península italiana de cidade em cidade em sua época. Essa variedade linguística é vista por Dante como o resultado da língua do “sim”, ou italiana que procede do latim, considerado língua universal, mas artificial. A esse estado de decadência e ruína, Dante pretende responder com a criação de uma língua/linguagem poética como exemplo de um vulgar ilustre capaz de remediar à ferida pós-babélica, ou seja, a constatação de uma irremediável diversidade entre os idiomas. Por isso, o vulgar buscado por Dante tinha de ser digno de representar de forma unitária a multíplice variedade linguística da península italiana. No contínuo alternar entre obras em latim e obras em vulgar, ele nos mostra um texto em que a palavra poética, dotada de suas propriedades polissêmicas, se torna

123 CORTI, Maria. Principi della comunicazione letteraria. Milão: Bompiani, 1976, p. 105. o poeta descobre virtualidades da língua abertas somente para ele e cria uma série de túneis subterrâneos que põem em contato elementos entre eles inacessíveis da língua e, afinal, elimina a arbitrariedade do signo [traduç~o minha].

124 A expressão é de PAGNINI, Marcello. Il sonetto (A Zacinto). Ensaio teórico e crítico sobre a polivalência funcional da obra poética. In: ____. Strumenti critici VIII, 23. (1974) apud CORTI, Maria. op. cit., p. 105. da

semantizaç~o da forma e do deslocamento do significado ... [traduç~o minha].

125 ECO, Umberto. Interpretação e superinterpretação. Tradução MF. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 37.

capaz de comunicar o incomunicável. Essa criatividade é ligada à cultura poética grega, latina e medieval que Dante tinha e que juntamente com a experiência linguística de exilado itinerante constitui o meio pré-textual dantesco. Se considerarmos essa ótica para o texto poético da Comédia, a intertextualidade manifestar-se-ia nele de forma explícita e implícita enquanto antetexto. Há níveis implícitos de estruturação da obra literária que dizem respeito à relação entre autor e literatura: é a ligação que intercorre entre autor e autoridade (ou fonte). Segundo Corti:

il singolo autore fa prelievi di testi prediletti nei luoghi e tempi letterari più svariati e imprevedibili; egli opera dei nessi, delle interrelazioni fra i testi privilegiati in funzione della legge costitutiva della propria opera, egli crea nel sistema letterario il sottosistema delle proprie fonti.127

Este subsistema, se assim pode-se dizer, é uma rede de relações que se instala no texto e, pois, o autor produz um texto com uma perspectiva ora em conformidade, ora diferente do texto preexistente. O texto é, assim, o fruto de uma urdidura em que a trama tecida é feita de

logos - que em grego significa relação – criadores de fenômenos literários. A categoria da

intertextualidade, portanto, é base e origem de uma forma de originalidade, cujos textos, reinterpretados, se tornam fator constitutivo na arquitetura do texto criativo. Com efeito, Dante organiza o poema sacro de forma intertextual, assumindo paradigmas e modelos clássicos e bíblicos enquanto manta que envolve toda narrativa que, com as palavras de Bolton Holloway, é ao mesmo tempo “autoconsciente, autoreferenziale, autoriflessiva”.128 A mesma estudiosa destaca a intertextualidade do texto dantesco com o texto bíblico em Pur. XXI, 7-12, sinalizando que Dante toma como paradigma a peregrinação dos dois discípulos de Emaús presente no Evangelho de São Lucas:

Ed ecco, sì come ne scrive Luca

che Cristo apparve a‟ due ch‟erano in via, già surto fuor de la sepulcral buca

ci apparve un‟ombra, e dietro a noi venìa, dal piè guardando la turba che giace;

127 CORTI, Maria. Principi della comunicazione letteraria. Milão: Bompiani, 1 , p. . o autor, ao tomar alguns textos prediletos nos mais variados e imprevisíveis lugares e tempos literários, produz uns nexos, umas inter-relações entre os textos privilegiados em função da lei constitutiva de sua própria obra. Ele cria no sistema literário o subsistema das próprias fontes. [tradução minha].

128 BOLTON HOLLOWAY, Julia. La vita nuova: paradigmi di pellegrinaggio In: CERBO, Anna (Org.). Lectura Dantis 2002-2009. Omaggio a Vincenzo Placella per i suoi settanta anni. v. 4. Nápoles: Università degli Studi di Napoli L Orientale , , pp. 1181-1204. A citação é extraída de p. 1186: autoconsciente, autorreferencial, auto-reflessiva [traduç~o minha].

né ci addemmo di lei, sì parlò pria

[E como afirma Lucas na Escritura

que a dois transeuntes Cristo se mostrou, de súbito, ao se erguer da sepultura,

assim alguém por trás se levantou em meio à dolorosa multidão; e antes que o divisássemos falou:]

(Pur. XXI, 7-12)

O passo biblico è retomado por Dante exatamente ao pé da letra: “Et ecce duo ex illis ibant ipsa die in castellum, […], nomine Emmaus …[...] et ipse Jesus appropinquans ibat cum illis” (Lucas 24, 13-15).129 Em tradução: “Eis que dois deles (dos discípulos) estavam indo

para um povoado ... chamado Emaús ... e o próprio Jesus se aproximou deles”. A similitude é assunta quase como equivalência em relação ao fato narrado. Do mesmo modo que Cristo aparece aos dois discípulos, alcançando-os detrás, uma sombra aparece (e o verbo é repetido, justamente para marcar a analogia) atrás deles, que são dois também (Virgílio e Dante). A sombra à qual se refere o passo, conforme se descobrirá mais adiante, é o poeta Estácio.

A intertextualidade, assim, percorre toda a obra dantesca, criando nexos com o passado e abrindo caminhos para o futuro da literatura, em um sistema complexo de relações com textos de outros autores – intertextualidade externa – e com a própria memória – intertextualidade interna. Não se trata apenas de citações diretas ou indiretas que tecem o mosaico do texto e/ou de transformação de outro texto, mas de um sistema intertextual complexo em que Dante reinterpreta seus precursores, indo além da mera intertextualidade. A mesma Corti salienta que

La questione del sottoinsieme delle fonti di un autore va bem al di là di quella che la Kristeva chiamò intertextualité o lês livres dans le livre e ben al di là delle affermazioni di Compagnon sul travail de la citacion, perché il fenomeno offre un modello di strutturazione del sistema letterario che può valere in funzione di una sola opera o di tutto il macrocosmo di uno scrittore o in funzione del lavoro di gruppo di una classe de letterati (per esempio gli „stilnovisti‟).130

129 AA.VV. Biblia Sacra Juxta Vulgatam Clementinam. Edição Electrônica. Londini, MMV.

130 CORTI, Maria. Scritti su Cavalcanti e Dante. La felicit{ mentale. Percorsi dell invenzione e altri saggi. Turim: Einaudi, , p. : A questão do subconjunto das fontes de um autor vai bem além do que a Kristeva chamou de intertextualité o lês livres dans le livre e da mesma forma vai bem além das afirmações de Compagnon sobre travail de la citacion, porque o fenômeno oferece um modelo de estruturação do

O subsistema das fontes de Dante representa o macrocosmo cultural onde o poeta é imerso e nele se abebera. Com escolhas ponderadas de intertextualidade escritural e clássica, o poeta escolhe seus próprios precursores, os quais se tornam autoridades (auctoritates) na construção da arquitetura do poema e na construção de Dante-poeta-personagem-narrador. Como foi visto anteriormente em relação à inefabilidade, as escolhas intertextuais de David, Paulo e Enéias servem a Dante para se afirmar diante do leitor como poeta-profeta e, de certa forma, tornar dizível o indizível. A inefabilidade de uma experiência transcendente é por Dante observada e, tentativamente, enfrentada a partir da língua/linguagem. Para entender melhor a complexidade da intertextualidade dantesca, Corti afirma que

In questo ambito di discorso si incontra la nozione di intertestualità incrociata; Borges scrive: „Il fatto si [sic!] è che ogni scrittore crea i suoi precursori‟ν con questo „crea‟ Borges si riferisce proprio a una forma di intertestualità regressiva per cui un testo si proietta sul passato della letteratura in modo da creare nessi fino a quel momento inediti; tipico esempio per la letteratura italiana quella che Contini ha chiamato l‟eterna funzione Gadda, cioè il formarsi di un canone espressionistico in base al quale l‟interpretazione regressiva può risalire dal Novecento al XIII secolo. Non solo le opere di Dante hanno questo potere sulla nostra lettura di ciò che lo precede, ma anche le sue affermazioni critiche sulla lirica siciliana e toscana.131 Para explicar a intertextualidade regressiva, neste complexo sistema de relações entre o autor e seus precursores, Corti toma como exemplo Contini – erudito crítico literário italiano – e o que este autor chamou de “eterna função Gadda”. Para entender o que Corti afirma em relação à intertextualidade de Gadda, que formaria “um cânone expressionista” diacrônico voltando até Dante, é preciso retomar a introdução de Contini ao romance de Gadda “La cognizione del dolore”, de 1970132

. Aqui, ao traçar as coordenadas histórico- literárias do expressionismo europeu em que se enquadra o escritor milanês, Contini vem afirmando que “Gadda, de certo modo se distingue por algo de bem característico, o copioso, muito embora móbil, recurso às reservas dialetais”. τ expressionismo de Gadda “é um

sistema literário que pode valer em função de apenas uma obra ou de todo o macrocosmo de um escritor ou em funç~o do trabalho de grupo de uma classe de literatos por exemplo os stilnovistas . [tradução minha].

131 CORTI, Maria. Scritti su Cavalcanti e Dante. La felicità mentale. Percorsi dell invenzione e altri saggi. Turim: Einaudi, , p. . Neste âmbito de discurso se encontra a noção de intertextualidade cruzada; escreve Borges: Sim, o fato é que todo escritor cria os seus precursores ; com este cria Borges se refere exatamente a uma forma de intertextualidade regressiva pela qual um texto se projeta no passado da literatura de modo a criar nexos, até àquele momento, inéditos. Exemplo típico para a literatura italiana é o que Contini chamou de eterna função Gadda, que quer dizer o formar-se de um cânone expressionista, com base no qual a intertextualidade regressiva pode subir dos Novecentos até o século XIII. As obras de Dante não tem apenas este poder sobre nossa leitura daquilo que o precede, mas também as suas afirmações críticas sobre a lírica siciliana e toscana. [tradução minha].

132 CONTINI, Gianfranco. Introduzione a Carlo Emilio Gadda. In: Varianti e altra linguistica. Una raccolta di saggi (1938-1968). Turim: Einaudi, 1970, pp. 601-619, passim.

expressionismo naturalístico”, afirma Contini, ligado a um “mundo robustamente externo” que é permeado pela presença de uma multiplicidade de dialetos. E o “dialeto dos expressionistas, se de dialeto se pode falar, não é veículo de mimesis, é um idioma privado”. Tomar ciência de que existem muitas línguas e dialetos na península italiana é primordial para entender que a literatura “italiana é substancialmente a única grande literatura nacional cuja produção dialetal faça visceralmente, incindivelmente corpo com o restante patrimônio”. Contini prossegue detalhando com exemplos de rara erudição o contexto do expressionismo linguístico italiano, percorrendo antes uma história em direção contrária, não linearmente cronológica, em uma viagem onde brilham constelações literárias europeias e são evocados os expressionismos de um Rabelais e de um Folengo; o multilinguismo de Joyce e Mallarmé; o expressionismo alemão de Benn ou francês da linhagem Mérimée–France e das expressões do jargão de Celine. Voltando à península italiana, atraca nos portos de Maggi, Basile, Ruzzante para depois chegar até a escola siciliana e Dante. Diz Contini:

“Dante, anche se, per quanto s‟è detto, non è assolutamente il punto di partenza, è però il gran nodo che qualifica la linea ascendente di Gadda”133

Nessa linhagem regressiva entre Gadda e Dante, sobressai a comum (com)vocação ao plurilinguismo em que a expressividade linguística prevalece sobre a mimesis, a imitatio. Muito embora seja difícil determinar um nó qualificador em uma linha ascendente em Dante pela sua profusa cultura e conhecimentos que espaçam entre as culturas latina, cristã, judaica e arábica, em Dante podemos reparar que a intertextualidade, que com Corti poder-se-ia chamar de regressiva, é marcada por uma expressividade linguística que testemunha o diálogo empreendido pelo poeta italiano com seus precursores e contemporâneos, e a citação selecionada acrescenta a multiplicidade de vozes que compõem a polifonia do texto.

O diálogo de Dante com a cultura grego-latina e medieval é intenso e certamente é a fonte de textos cujos conteúdos são retomados e reinterpretados por ele para a construção de suas obras literárias. De Aristóteles a Tomás de Aquino, passando por Agostinho, pelo pseudo-Dionísio, por Beda e Alberto Magno, por Rabano e São Bernardo, entre outros. Por Virgílio, guia inicial de Dante até o fim do Purgatório, e Ovídio, Cícero e Quintiliano. E por último, mas não estando em último lugar, a Sagrada Escritura. Entretanto, a intertextualidade dantesca é uma estrutura complexa que, porém, não se limita à mera seleção de citações de

133 CONTINI, Gianfranco. Introduzione a Carlo Emilio Gadda. In: Varianti e altra linguistica. Una raccolta di saggi (1938-1968). Turim: Einaudi, , p. . Por quanto foi dito, embora Dante n~o seja absolutamente o ponto de partida é de qualquer forma o nó que qualifica a linha ascendente de Gadda. . [tradução minha].

textos ou à retomada de conceitos de outros autores. Isto porque Dante, além se ser poeta, é um aguçado leitor que percebe a mensagem de modo muito peculiar e transfere para seu mundo cultural a visão de mundo de outros sistemas culturais. Em um ensaio sobre a perspectiva intertextual da Comédia, Roberto Mercuri, professor da Universidade “La Sapienza” de Roma, nos explica que “Lo sforzo costante, l‟impegno di Dante fu quello di adeguare il più possibile all‟armonia della gramatica il proprio volgare […]”134 e relata alguns

loci para demonstrar de que maneira Dante reelabora as citações de seus precursores.

Vejamos:

No documento – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 73-83)