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A transformação pós-moderna da economia, ciência, comunicação e humanidades

No documento Filosofia, Comunicação e Subjetividade (páginas 57-66)

TRANSFORMAÇÕES PÓS-MODERNAS DAS HUMANIDADES E DA COMUNICAÇÃO:

5. A transformação pós-moderna da economia, ciência, comunicação e humanidades

Todas estas rupturas ou tendências da pós-modernidade assinaladas já em meados do século passado não cessaram de aprofundar-se, e podemos vê-las fazendo o seu caminho na economia pós-industrial, na ciência, na educação, e na comunicação. Elas resultam em parte de alterações das con- dições de produção induzidas pelas novas tecnologias, mas os seus efeitos estendem-se muito para além disso, modelando um novo corpo social habi-

tado por modos de pensar e habilidades cognitivas radicalmente distintas do passado. Vejamos algumas dessas transformações:

5.1 Economia

A pós-modernidade trouxe a sociedade pós-industrial, ou vice-versa. Numa primeira fase por via da Globalização a produção industrial desloca-se para a China, e numa segunda vaga para países do sudoeste asiático. Foram tem- pos de optimismo para as democracias ocidentais, muitos acreditando que uma próspera sociedade baseada em serviços poderia substituir a economia assente na manfatura de bens tangíveis, esta terceirizada para economias “emergentes”. Tempos de crença na Sociedade do Conhecimento onde os contingentes de trabalhadores blue collar seriam paulatinamente substituí- dos por profissionais ligados à ciência, indústrias criativas e prestação de serviços.

Uma segunda vaga da emergência de uma economia pós-industrial aparece com a crescente automação quer da produção industrial, quer da prestação de bens e serviços (automação nas fábricas, mas também no comércio, e num conjunto vasto de empresas que conseguem pôr os clientes a participar no processo de produção do serviço que prestam mediante tecnologias da informação cada vez mais avançadas). É a conhecida a anedota de Warren Bennis: a fábrica do futuro terá apenas dois trabalhadores: um homem e um cão. O homem está lá para alimentar o cão; o cão para não deixar o homem tocar nas máquinas.

Este caminho em direção a um crescimento sem fim propiciado pela glo- balização, como se os recursos naturais fossem inesgotáveis e o puro crescimento assegurasse per se a redistribuição (trickle down economics) sempre teve opositores. Não faltam críticos desta mitologia acerca dos be- nefícios do free-trade que alimenta a globalização. O economista coreano Ha-Joon Chang, por exemplo, elabora um cuidadoso relato histórico sobre como as atuais potências económicas – EUA, Grã-Bretanha, Coreia do Sul – atingiram o seu estado de desenvolvimento e dominância a partir de políti- cas protecionistas e de intervenção industrial, como essas atividades foram

sofrendo um notável apagamento histórico, e como essas mesmas políti- cas de desregulação comercial impostas a países em desenvolvimento têm consequências sociais e económicas trágicas, pois funcionam em benefício das potências dominantes, que se tornaram dominantes graças ao prote- cionismo que tão generosamente querem abolir em outros (daí a metáfora de Bad Samaritans). Não há aqui nenhuma conspiração: o relato de Chang é eminentemente histórico e para o professor de Cambridge a esmagadora maioria dos defensores de tais políticas está genuinamente convencida que estas contribuirão para o desenvolvimento dos países emergentes (Chang, 2009).

Mais radical, Naomi Klein em 2007 chamou-lhe o “capitalismo de catás- trofe” em The Shock Doctrine, onde sustenta que a agenda económica neo-liberal inspirada em Milton Friedman avança a partir de políticas de choque e desastre (terrorismo, guerras e catástrofes naturais) conduzidas deliberadamente para distrair as populações da desregulação económica e financeira. As primeiras “experiências” de “capitalismo de catástrofe” foram desenvolvidas nos anos 70 nos países de América Latina, nomeada- mente no Chile de Pinochet, com notável insucesso económico. As guerras do Iraque, e o esforço militar com que comprometeram os EUA tiveram o mesmo papel no início do século XXI: avançar a agenda neoliberal mediante o “choque e pavor” (Klein, 2007).

Em 2013, em França, Thomas Piketty notabilizou-se como crítico do binó- mio neoliberalismo-globalização a partir de uma leitura social-democrata – a desigualdade não é inevitável e os estados devem intervir na redistribui- ção de riqueza – dos fenómenos de crescimento e acumulação de capital. No entanto, as medidas que propõe para resolver a questão da desigualdade – impostos progressivos sobre a riqueza – não parecem, no imediato, politi- camente viáveis.

Em The End of Work Jeremy Rifkin analisa o caso de Yougstown, no Ohio, que nos anos 70 perdeu a sua indústria do aço, e com ela 50 mil postos de trabalho. O mais dramático em Youngstown é que a perda não foi apenas

económica, mas resultou numa complexa e negativa recomposição social com o agravamento da violência, criminalidade, e disfuncionalidade geral da sociedade (Rifkin, 1995). Youngstown corporiza um receio que se tornou mais premente no presente: o da jobless society, onde não haverá ocupação suficiente para todos, com as consequências previsíveis junto da classe operária e média, subitamente privada de milhões de empregos devido à automação. A transição para uma economia de serviços e cuidados, um ter- ceiro sector sob a tutela do estado, será uma das poucas saídas airosas para uma evolução da automação que parece inevitável.

Porque se afigura cada vez mais perto, a anedota de Walter Bennis já não parece tão engraçada assim.

5.2 Ciência

Na Ciência a pós-modernidade trouxe o ocaso da narrativa positivista, e também do programa do iluminismo, substituídos muitas vezes por versões radicais de relativismo e idealismo, ou intepretações filistinas do prag- matismo. O desaparecimento do optimismo positivista foi uma death by a

thousand cuts, pois que manifestações de áreas distintas convergiram apon-

tando ao mesmo resultado. Alguns exemplos dos micro-abalos sísmicos do iluminismo na ciência do século passado:

·Em 1927 Werner Heisenberg formula o princípio da incerteza, aplicável à microfísica. Segundo este não é possível determinar simultaneamente com precisão a velocidade e a posição de uma partícula. Ou seja, ao nível quântico, o princípio da causalidade tal como o conhecemos não é estri- tamente aplicável. Uma ideia tão chocante que Einstein se recusaria a aceitá-la.

·Em 1931 Kurt Godel formula o célebre teorema da incompletude, que toma o seu nome, e segundo o qual um sistema matemático não pode ser si- multaneamente completo e consistente. O feito poria fim às pretensões da Lógica formal de fundamentar apodicticamente a matemática, nomea- damente o programa de Hilbert de descobrir um conjunto de axiomas

completo e consistente, aplicável à matemática e, por essa via, às ciências. Há algo na explicação do mundo que não se deixa reduzir ao puro dado observável.

·Em 1962 Kuhn publica o texto mais influente da epistemologia do sécu- lo XX, “A estrutura das revoluções científicas”, colocando em causa “a visão tradicional da ciência como processo a-histórico, linear e cumula- tivo, e chamando a atenção para a importância e papel da comunidade científica simultaneamente enquanto agente e obstáculo à mudança cien- tífica”(Gradim, 2014, p. 22). Esta ideia de que elementos sociológicos e políticos estão intimamente relacionados à direção e progresso da ciência constituiu um rude golpe nas aspirações do positivismo de uma ciência asséptica e orientada por factores totalmente objectivos.

Estas três revoluções, na Física, na Lógica e na Epistemologia atiraram uma ciência fechada, concebida como em processo de conclusão, para um uni- verso de possibilidades infinitas, e abriram o campo, muitas vezes à custa de interpretações selvagens, à irrupção do relativismo, identificado com o pós-modernismo, no campo das ciências tradicionais.

5.3 Comunicação

A explosão da comunicação induzida pelas tecnologias da informação trouxe-nos a economia e sociedade do conhecimento, e uma sociedade em rede, criando uma nova esfera pública onde se jogam as questões de domi- nação e resistência, poder e contra-poder. Estas tecnologias da comunicação ubíqua, marcadamente os dispositivos móveis, foram um dos instrumentos fundamentais da globalização presente, que sem elas não teria sido possível. As teses de Castells relativamente à relação entre media, sociedade em rede e poder apontam para a sua inextricabilidade e para um quadro ainda em desenvolvimento, sem desfecho pré-determinado.

Em Comunicação, Poder e Contra-Poder na Sociedade em Rede, Castells de- fende que os media se tornaram o espaço social onde as relações de poder, definido como “a capacidade estrutural de um actor social para impor a

sua vontade a outros actores sociais”, se decidem. A razão é que a “batalha pelo poder” nas sociedades contemporâneas ocorre na captação dos espí- ritos, pela persuasão, e essa joga-se nos meios de comunicação de massas enquanto espaços onde é gerado o sentido e “o modo como as pessoas pen- sam” (Castells, 2007, p. 238). Os media tornaram-se o espaço onde o poder se decide e o desenvolvimento de redes horizontais de comunicação criou o que chamará de mass self-communication, que representa uma ruptura com o modelo estável de um século de que falava McQuail, e também espaço para a emergência de uma série de contra-poderes e vontades de resistên- cia relativamente ao status quo, tornada possível pela ascensão de um novo tipo de espaço mediático de comunicação livre organizada em torno da mass

self-communication.7

As características desta auto-comunicação de massas relacionam-se mui- to bem com os elementos constituintes da pós-modernidade: atinge uma audiência potencialmente global através da internet e das redes p2p; é mul- timodal pois “a digitalização de conteúdo e software socialmente avançado (...) permite a reformatação de qualquer conteúdo em praticamente qual- quer forma possível”; além disso “é conteúdo auto-produzido, com uma emissão auto-dirigida, e uma recepção auto selecionada pelos muitos que comunicam com muitos”. Trata-se verdadeiramente de “um novo reino da comunicação” desenrolando-se “num novo medium feito de redes de com- putadores, cuja linguagem é digital e cujos emissores estão globalmente distribuídos e são globalmente interativos” (idem). De resto a convergência acelerada que observamos hoje decorre precisamente de os mainstream me-

dia estarem a tentar ocupar o espaço dos novos meios de comunicação, por

aquisição ou fusão, mas sem terem chegado realmente ainda a ser bem su- cedidos nesse processo. Pelo contrário, mais do que anexar, parecem hoje anexados e eles próprios colonizados.

7. “The communication system of the industrial society was centered around the mass media, characterized by the mass distribution of a one-way message from one to many. The communication foundation of the network society is the global web of horizontal communication networks that include the multimodal exchange of interactive messages from many to many both synchronous and

5.4 Humanidades

A implosão do modelo de paideia.

Nas Humanidades vive-se um momento muito especial e perigoso. A maio- ria dos críticos do atual estado do ensino universitário apresenta um ponto em comum: as suas críticas dirigem-se à aparente implosão do modelo de

paideia, com a sua tónica na formação do homem global, e a sua noção de

superioridade ética e cultural assente nas virtudes do homem público, subs- tituída por uma formação eminentemente técnica e de cariz cada vez mais vocacional, praticada num quadro de “gerencialismo” que tomou conta das universidades. Hoje, é expectável encontrarmos o ensino visto como um produto, um bem transacionável, e o estudante crescentemente encarado como um cliente que adquire esse produto. Já da perspectiva de decisores políticos e stakeholders em geral esse produto deve visar a máxima integra- ção no sistema económico vigente, sendo constituído por skills/competências de valor acrescentado no competitivo mercado de trabalho atual.

Sobre este tema, visto maioritariamente como a crise da universidade ame- ricana, mas com semelhanças muito profundas no que é o quadro europeu, discorreram filósofos, sociólogos e homens de letras. As suas análises são convergentes, oferecem pistas importantes para compreender o quadro pre- sente, e as teses que apresentam pouco dissentem. “As Artes e Humanidades estão a ser dispensadas na educação primária, secundária e universitária em virtualmente todas as partes do mundo” proclama Martha Nussbaum, que comparou especialmente o sistema de ensino americano com o india- no. O resultado é uma crise sem precedentes, “de proporções massivas”, “como um cancro”, que tem a sua origem em alterações pouco reflectidas no sistema de ensino, que em breve deixará de produzir “cidadãos completos, capazes de pensar por si próprios, criticar a tradição e compreender o sig- nificado dos sofrimentos e realizações dos outros” (Nussbaum, 2012, p. 2). Nussbaum, em Not For Profit – Why Democracy Needs the Humanities argu- menta que a destruição do paradigma clássico de ensino das humanidades na universidade americana, em favor de uma via mais profissionalizante

para promover ganhos imediatos e a competitividade internacional da eco- nomia está a corroer a democracia tal como a conhecemos e constitui uma séria ameaça à sua sobrevivência. Ora “produzir crescimento económico não significa produzir democracia. Nem significa produzir uma população saudável, comprometida, educada na qual as oportunidades para uma vida boa estão presentes em todas as classes sociais” (idem, p. 15).

A batalha entre um verdadeiro paradigma de desenvolvimento humano e um paradigma de crescimento alheio às questões de redistribuição da rique- za produzida está a ser ganha por este último, embora defenda que os EUA nunca tenham tido um puro modelo de educação dirigido ao crescimento, mas antes um modelo de “liberal arts college” em que nos primeiros anos de formação os estudantes são encorajados a frequentar um vasto leque de ofertas educativas, incluindo no campo das artes e humanidades. Este modelo, conjugado com a insistência na participação ativa dos estudantes na sua formação (uma herança da pedagogia socrática) são as duas marcas distintivas do sistema de ensino americano.

Neste paradigma do liberal arts college “a educação não é apenas a as- similação passiva de factos e tradições culturais, mas trata de desafiar o espírito para se tornar ativo, competente e criticamente reflexivo num mun- do complexo” (Nussbaum, 2012, p. 18). Em alternativa ao modelo baseado no crescimento para que, por todo o mundo, os sistemas de ensino pare- cem tender, Nussbaum propõe o paradigma do Desenvolvimento Humano, comprometido com a democracia e a dignidade humanas, e produzindo as seguintes qualidades: 1. A capacidade de pensar bem; 2. De reconhecer o semelhante como pessoa; 3. De preocupar-se com a vida de outros grupos sociais e empatizar com eles; 4. De imaginar e raciocinar bem sobre uma variedade de assuntos complexos; 5. A capacidade de julgar os líderes políti- cos criticamente; 6. A capacidade de pensar sobre o bem comum e da nação; 7. A capacidade de produzir com inteligência deliberações transnacionais, colocando-se no lugar do outro e possuindo uma compreensão do seu pró- prio lugar no mundo (idem, p. 26).

As democracias têm um conceito excelente e grandes poderes imaginati- vos. Também são atreitas a falhas sérias no raciocínio, ao paroquialismo, à pressa, ao desmazelo, ao egoísmo e à estreiteza de espírito. A educa- ção baseada meramente no lucro do mercado global aumenta estas deficiências, produzindo uma obtusidade gananciosa e uma docilidade tecnicamente treinada que ameaçam a própria vida da democracia, e que impedem a criação de uma cultura mundial decente (Nussbaum, 2012, p. 142).

Eis porque as Humanidades importam. Mais, se a sua crucial importância não for defendida

elas irão acabar, porque não geram dinheiro. Apenas fazem algo muito mais precioso, constroem um mundo em que vale a pena viver, pessoas que são capazes de ver outros seres humanos como pessoas de pleno direito, com pensamentos e sentimentos próprios que merecem respeito e empatia, e nações que são capazes de ultrapassar o medo e a suspeita em favor de um debate racional e empático (idem, p. 143).

Gaye Tuchman com Wannabe U examina os desenvolvimentos de uma universidade americana com aspirações a servir de modelo no panorama internacional, através de quatro dos seus departamentos, e como o cami- nho da sua promoção e auto-promoção se desenvolve sem questionamento, e sob o signo da conformidade, num processo onde valores finais como o bem-comum são substituídos por uma racionalidade económica orienta- da para os mercados. A cultura de accountability e auditability é a forma encontrada pela gestão para dominar todos os outros sectores da vida aca- démica. De resto a vocação da universidade deixou de se centrar no ensino e aproxima-se mais do treino vocacional que ambiciona preparar os alunos para integrar o mercado de trabalho.

Outros autores escreveram sobre o tema adoptando linhas de raciocínio se- melhantes: Frank Donoghue em The Last Professors recusa falar em crise pois o conflito que opõe a ideologia do industrialismo ao espírito universi- tário já tem mais de um século – alimentado por tufões da indústria como

Andrew Carnegie – a questão é que no presente momento a lógica da racio- nalidade económica parece ter feito o seu caminho e os professores com uma carreira de ensino e investigação clássicas, especialmente nas áres das humanidades, podem estar perto da extinção. Marc Bousquet em How

the University Works – Higher Education and the Low Wage Nation; Larry

Gerber com The Rise and Decline of Faculty Governance: Professionalization

and the Modern American University, e Maggie Berg com The Slow Professor: Challenging the Culture of Speed in the Academy, contam-se entre os muitos

autores que abordaram estes temas.

O balanço que podemos hoje fazer do impacto das forças da globalização e da pós-modernidade nas Humanidades é trágico. A década de 90 foi parti- cularmente infeliz com as Guerras da Ciência e o caso Sokal, episódio que conheceu réplicas de menor impacto e dimensão, que em muito abalaram o prestígio da área.

6. A transformação pós-moderna da Educação: da Paideia ao

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