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Estudos culturais e a questão da subjetividade

No documento Filosofia, Comunicação e Subjetividade (páginas 128-132)

OS ESTUDOS CULTURAIS DE RAYMOND WILLIAMS: A CULTURA COMO ELEMENTO DE SUBJETIVIDADE?

3. Estudos culturais e a questão da subjetividade

Ao trazer à baila a discussão acerca dos Estudos Culturais, é preciso ter em mente a polissemia implicada no termo. Trata-se de uma área que de-

safia as fronteiras disciplinares tradicionais, ou seja, os Estudos Culturais não podem ser localizados, somente, no interior da História, da Sociologia, da Psicologia, da Antropologia etc; eles estão, ao mesmo tempo, no interior de todas essas e, outrossim, numa dimensão de interfaces e fronteiras. Tal situação, talvez, possa ser explicada pela própria complexidade inerente ao termo cultura. Eagleton (2005) afirma que a cultura está entre as discus- sões mais complexas nas ciências humanas e sociais.

Considerando esse cenário, um pressuposto importante é o reconhecimento de que não se pode falar em uma área com traços semelhantes em diferentes partes do globo. Os estudos culturais, em sua versão original – a britânica – apresentam traços que não são encontradas na versão latino americana; mesmo no interior da versão latino americana, é possível constatar que os Estudos Culturais no Brasil apresentam peculiaridades.

Como exemplo disso, se, em sua versão britânica, havia uma preocupação maior com a cultura da classe trabalhadora, na perspectiva latino-americana, se pode falar na centralidade que ganham, por exemplo, os elementos da cultura indígena.

Independentemente de suas especificidades, que se conformam à prática concreta localmente vivida, é possível traçar linhas gerais que estão no cer- ne de suas críticas e preocupações. Nesse sentido, Escosteguy afirma que:

Os estudos culturais compõem, hoje, uma tendência importante da crítica cultural que questiona o estabelecimento de hierarquias entre formas e práticas culturais, estabelecidas a partir de oposições como cultura ‘alta’ ou ‘superior’ e ‘baixa’ ou ‘inferior’. Adotada essa premissa, a investigação da ‘cultura popular’ que assume uma postura crítica em relação àquela definição hierárquica de cultura, na contemporaneidade, suscita o remapeamento global do campo cultural, das práticas da vida cotidiana aos produtos culturais, incluindo, é claro, os processos sociais de toda produção cultural (Escosteguy, 2011, p. 13).

O que se percebe é uma preocupação com a compreensão a partir da qual a cultura possa ser organizada e construída como um elemento contra-hegemônico, como um elemento de resistência. E aí passa a resi- dir outra preocupação dos Estudos Culturais, que é a discussão relativa à subjetividade.

Tal tema está longe de ser assumido a partir de uma premissa, pois, confor- me destaca Johnson (2004), além de configurações geográficas específicas, os Estudos Culturais estão sendo forjados a partir de duas vertentes epis- temológicas: uma que entende a cultura como modo de produção e outra que entende a cultura como texto. Acerca dessa segunda, preponderante na realidade brasileira, este texto não se propõe a aprofundar a discussão; queremos, todavia, advogar as possibilidades de se pensar a subjetividade a partir da premissa da cultura como produção e, portanto, nos localizamos na perspectiva mais próxima à defendida por Raymond Williams.

Nesse sentido, recorremos a Johnson (2004), novamente, quando ele afirma que:

Meus termos-chave são ‘consciência’ e ‘subjetividade’. Os problemas centrais estão, agora, situados em algum ponto entre os dois termos. Para mim, os Estudos Culturais dizem respeito às formas subjetivas pelas quais nós vivemos ou, ainda, em uma síntese bastante perigosa, talvez uma redução, os Estudos Culturais dizem respeito ao lado subje- tivo das relações sociais (Johnson, 2004, p. 25).

Com a preocupação de evitar interpretações equivocadas, o autor acrescen- ta ainda que:

O conceito de ‘subjetividade’ é, aqui, especialmente importante, de- safiando as ausências na consciência. Ele inclui a possibilidade, por exemplo, de que alguns elementos estejam subjetivamente ativos – eles nos ‘mobilizam’ – sem serem conscientemente conhecidos. Ele focaliza elementos atribuídos (na distinção convencional e enganadora) à vida estética ou emocional e aos códigos convencionalmente ‘femininos’. Ele

destaca ‘o quem sou’ ou, de forma igualmente importante, o ‘quem nós somos’ da cultura, destacando também as identidades individuais e co- letivas. Ele faz uma conexão com um dos insights estruturalistas mais importantes: que a subjetividade não é dada, mas produzida, constituin- do, portanto, o objeto de análise e não sua premissa ou seu ponto de partida (Johnson, 2004, p. 27).

A partir desses elementos, é possível reconhecer que os Estudos Culturais ancoram-se, na perspectiva advogada por Williams, em centralizar suas análises no ponto de convergência entre a dimensão objetiva e subjetiva da realidade. No ensaio A cultura como algo comum, Williams (2015), ao des- crever o caminho que percorria todos os dias entre sua casa e o trabalho, sobretudo, quando mostra sua percepção acerca das nuances que formam seu trajeto, nos permite entender melhor essa relação entre as dimensões objetiva e subjetiva. Em outras palavras, a partir de sua descrição, consegui- mos inferir que, ainda que os elementos objetivos – dispostos na realidade material concreta sejam os mesmos – eles são subjetivamente sentidos e isso está atrelado à experiência cotidiana.

Ou seja, discutir a dimensão da subjetividade a partir dos pressupostos de Williams é, entre outras coisas, reconhecer que não se apaga as subjetivida- des, mas que os seres humanos, por serem sociais, não se forjam apartados da realidade concreta.

De acordo com o autor:

A cultura é algo comum a todos: este o fato primordial. Toda sociedade humana tem sua própria forma, seus próprios propósitos, seus próprios significados. Toda sociedade humana expressa isso nas instituições, nas artes e no conhecimento. A formação de uma sociedade é a descoberta de significados e direções comuns, e seu desenvolvimento se dá no de- bate ativo e no seu aperfeiçoamento, sob a pressão da experiência, do contato e das invenções, inscrevendo-se na própria terra. A sociedade em desenvolvimento é um dado e, no entanto, ela se constrói e se recons- trói em cada modo de pensar individual (Williams, 2015, p. 5).

Dessa forma, fica evidente que, em momento algum, Williams, em sua pro- posta dos Estudos Culturais, despreza a dimensão individual na construção e percepção das dinâmicas culturais. Em um ensaio intitulado “Você é mar- xista, não é?”, ele discorre sobre a pauperização e engessamento que tais rótulos carregam em si. O fato de ser um pensador que se ancora nos pres- supostos do materialismo histórico não o leva o incorrer no equívoco de se colocar ao lado de perspectivas mecanicistas e que negam a dimensão da agência humana. Tal noção, tal qual nos advertia Thompson (1981) ao criti- car Louis Althusser, é cara aos estudos materialistas: só há cultura porque esta se erige como um produto da prática humana.

É impraticável discutir Estudos Culturais sem admitir a dimensão subjetiva da realidade. É preciso reconhecer que é a partir dos elementos culturais – dentre os quais localizamos, por exemplo, a instituição escolar – que a cultura forja, ao mesmo tempo, a sociabilidade almejada por determinada sociedade e, também, as sociabilidades alternativas.

Reconhecer a cultura como localizada na esfera da produção da vida huma- na nos impõe o reconhecimento de que ela não atua somente na reprodução de estruturas anteriores a si mesma, mas é capaz de criar novos sentidos e novos significados. Com isso, podemos afirmar que a dimensão da subjeti- vidade, no interior dos Estudos Culturais, permite o reconhecimento de que as instituições escolares, por exemplo, ao mesmo tempo que são veículos de produção de uma subjetividade conformada à lógica social vigente – sem alteração do status quo – podem representar a produção de subjetividades que subvertam e rompam com a lógica hegemônica.

No documento Filosofia, Comunicação e Subjetividade (páginas 128-132)