• Nenhum resultado encontrado

Breve carreira da sensação: da percepção comum ao sensacionalismo

No documento Filosofia, Comunicação e Subjetividade (páginas 96-102)

O IMPERIALISMO DA IMAGEM E O FETICHE DA SENSAÇÃO

2. Breve carreira da sensação: da percepção comum ao sensacionalismo

Conforme Türcke, a partir do Renascimento europeu, a palavra “sensação” seguiu um padrão de deslocamento de seu significado geral ao particular, ou seja, “de percepção totalmente comum para a percepção do incomum e, finalmente, para este próprio incomum” (Türcke, 2010a, p. 9). Traduzindo ao atual estado dos sentidos humanos: para que algo cause sensação, tem que ser excepcional, espetacular, sensacional. Em contraposição, o que não entra neste dispositivo, não é digno de menção, nem mais chama a atenção e tende simplesmente a desaparecer diante de nossos olhos e ouvidos. A busca compulsiva e inquieta pela percepção, por uma notoriedade que atraia a atenção pública para si, justifica porque a causa da sensação se tor- nou uma bandeira pela qual todo um mercado luta, e não só ele. A disputa não ocorre apenas para estimular a venda de objetos lucrativos ou para in- crementar poder em seu possuidor. Como praticamente nada mais escapa ao mercado, a luta pela percepção se tornou uma luta pela existência nua e crua. Por um lado, é óbvio que muitos gostariam de passar despercebidos. Por outro, os que mais sofrem são os desapercebidos, os que dormiram du-

2. Ver o longa Estamira (Brasil, 2004), documentário de Marcos Prado. Premiado em muitos festivais de cinema do Brasil, Europa e EUA, revela uma realidade brasileira que não se encerra no filme, pois em nosso país, a realidade, em muitos aspectos, “supera” a ficção. Algumas críticas o encaixotaram como uma exploração da “estética da pobreza”. Um fato testemunha contra: a personagem central do documentário, Estamira, vivia catando lixo num dos ditos “aterros sanitários” do Rio de Janeiro. Diagnosticada como esquizofrênica, sua enunciação ao longo da narrativa revela que, para quem só conhece neuroticamente a cultura, a loucura é condição de possibilidade de elucidar os limites que a mesma nos auto-impõe para sermos “incluídos”. De tanto fingir que não vemos a realidade acabamos cegos. O louco é mais criativo: em sua condição de desacreditado da razão, ele enuncia o que os “nor-

rante o século inteiro passado, e que, distraídos, não se prepararam para a gororoba que a indústria cultural ofereceu ao consumo diário de seus senti- dos como ração de emergência. No campo da “sociedade excitada”, fileiras de combatentes, com suas máquinas maravilhosas, lutam e concorrem entre si para serem percebidos e para perceberem. Pode-se depreender des- ta constatação que a carência de sensações dignas de menção pode levar a uma formação sintomática análoga ao vício: a abstinência da sensação. Todavia, tal como sugere Türcke, não devemos nos esquecer que o vício já é um sintoma de abstinência. No caso do vício em imagens, uma dificuldade adicional se coloca: tratamos com um objeto que tem um caráter e uma his- tória que é subestimada. Como o aparelho mental tem que ser treinado para esta percepção, o decisivo é o modo como abordamos o fato da percepção. Em torno ao final do século XVIII, Türcke destaca o surgimento de dois discursos sobre a sensação: o filosófico e o vulgar, que sob o impacto e abalo causado pela Revolução Francesa, “reduziu a sensação àquele acontecimento espetacular atuante nas massas” (Türcke, 2010a, p. 119). O significado parti- cular de sensação, como percepção do incomum, se generalizou, nivelando o que teoricamente era a particularidade fundamental dela no processo epistemológico. Conforme Türcke,

Onde sensação se torna sinônimo de “aquilo que chama a atenção”, não ocorre apenas uma mera redução avessa ao espírito. Pelo contrário, sur- ge a suspeita de que a sensação no sentido de “percepção por excelência” da realidade sensorial moderna e urbana, que segue os padrões do mer- cado medieval, não mais se expandiu (Türcke, 2010a, p. 119).

Por um lado, esta padronização, esta condensação excepcional do conceito capturado pela língua, representa uma reação semântica não premeditada. Por outro, ele concentrou e registrou o modo como a sociedade moderna “trouxe seus nervos à flor da pele por meio do tremor e da excitação conti- nuados de si mesma, por meio do aumento permanente de sua maquinaria de sensação” (Idem), expondo sua base arcaica. Ao testemunhar a violência

de sua origem, a vulgarização do conceito de sensação descreveria a figura que Hegel chama de “retorno ao fundamento”:

Ela tão somente faz sentir que o espetacular, o que chama a atenção, não corresponde a um caso extremo de sensação, como defende um discur- so filosoficamente bem comportado, mas a seu arquétipo histórico – o cerne candente de toda percepção e conhecimento (Türcke, 2010a, p. 119).

A assunção no cenário social de máquinas automáticas passou a coordenar, inicialmente, os movimentos humanos externos e, logo após, os movimen- tos da percepção. A vulgarização do conceito de sensação não sinalizou rupturas significativas. Ela como que se “congelou” e deu lugar à “compul- são à imagem”. A fixação do devir em imagens técnicas passou a orientar os conteúdos da percepção interna que foram paulatinamente domesticados pela superioridade de uma maquinaria que os exteriorizava e objetivava pu- blicamente de forma muito mais nítida e atraente do que as imagens feitas pela mão humana. A invenção do “lápis da natureza”, da fotografia, tornou possível a escritura química da luz. A exploração da sensação causada pela paralisação de um momento no tempo, o enquadramento “democrático” de qualquer categoria social de objetos e pessoas, ignorantes, sábios ou bes- tas, atuou como alavanca para os objetivos sintéticos de expansão de uma mentalidade ávida por novos domínios. A barbárie e o atraso atribuído às formações sociais e culturais que não trilharam os mesmos caminhos e que não se espelharam na imagem de uma modernidade construída autotelica- mente é o negativo desta fotografia. A forma primária de socialização para tornar-se membro efetivo da modernidade capitalista teve como lição todo um conjunto de exercícios e testes de resistência que mediam a capacidade individual de deixar o passado para trás. Passar por estes testes era um pa- gamento decisivo para ser escolhido e integrado no mercado para o mercado. Os custos deste processo não entraram no “felicific calculus” utilitarista, que não problematizava os custos do prazer e do bem-estar da maioria. Muito antes do que ganhos objetivos pudessem ser computados pela “maioria”, os

que não se ajustaram às medidas do Leito de Procusto do mercado foram banidos às prisões, asilos e hospícios.

Quando a maquinaria da imagem entra em cena e passa a dirigir a per- cepção desde fora, a autopercepção do sujeito entra em crise. Para evitar a angústia e a crise de realização gerada pelo esvaziamento do significado dos elementos que antes serviam, mesmo que precariamente, de apoio à sua imagem – contexto em relação ao qual ele se percebeu “privado” –, ele se dirige para aqueles momentos que acredita “fazerem sensação”, ou seja, os que são percebidos como novos e que o afastam ainda mais de si, na crença de se reapropriar do expropriado. Ele “sente” então que está se “desenvol- vendo”, que está “avançando” e que nem tudo estaria totalmente perdido. O

horror vacui é insuportável. O vazio deve ser preenchido de alguma forma

e, na falta de outros meios, agarra-se ao primeiro que aparece, condicionan- do uma série de comportamentos de addictus das emissões e recepções de mensagens audiovisuais.

Pela sua força de atração sensível, a imagem magneticamente absorve prati- camente tudo. Mesmo naqueles momentos em que pessoas não conseguem alçar-se à altura da percepção por feitos memoráveis, a imagem não as “moraliza”, porque lhes outorga o direito de ao mínimo se fazerem à sua semelhança, quer dizer, de se fazerem no mínimo, em miniatura, imagem. Dentre vários diagnósticos de como se encontra o relevo interior na geo- grafia das subjetividades contemporâneas vou destacar três. O primeiro é do psicanalista brasileiro Joel Birman (2005). Ele aponta um “excesso de excitabilidade” como causa de um mal-estar difuso que levaria a uma ex- periência permanente de “perda de domínio de si” (Birman, 2005, p. 105). Entre as principais queixas dos pacientes que buscam tratamento psiquiá- trico ou psicológico, ele dá destaque às psicopatologias que incidem sobre um corpo que é positivado, sobre a ação e a sensação. Quanto às perturba- ções do pensamento, constata que estas já não mais se apresentam como elemento relevante nas queixas. Adverte, de passagem, que vivemos “em

uma espécie de eterno instante; nós perdemos a ideia de projeto, de utopia” (Idem, p. 105).

O segundo recorte é de Franco Berardi, filósofo italiano também conhecido como Bifo. Em sua obra Generación pos-alfa: patologias e imaginários en el

semiocapitalismo (2007) reconstrói as muitas bifurcações que estaríamos vi-

venciando no contexto histórico do capitalismo atual e tira consequências à ação política. Segundo sua visão, a patologia que vem nascendo, o mal-estar da geração conectiva, não tem mais como pano de fundo a repressão, mas a “pulsão de expressar, a obrigação expressiva generalizada” (Berardi, 2007, p. 217). Com efeito, Bifo afirma que uma das formas do sofrimento de nosso tempo não se encontraria mais na esfera conceitual descrita por Freud em seu livro sobre o mal-estar na cultura. O responsável seria a hipervisão e a hiperexpressão, a sobrecarga de estímulos infonervosos, e todo um conjun- to de dificuldades gerado à sua elaboração.

O terceiro e último autor que traz, em meu modo de ver, elementos rele- vantes para compor um diagnóstico da geografia psíquica e do território político-social europeu – mas cuja tendência é sentida em nossa sociedade brasileira – é o filósofo da técnica, o francês Bernard Stiegler (2007). Quanto à sensação e ao sentimento destaco uma passagem não tão breve de seu livro Reflexões não-contemporâneas. Peço licença para citar:

O modelo de desenvolvimento industrial, da forma como ele rapidamen- te se desdobrou nos últimos 40 anos em particular, e deu lugar a uma estética industrial que substituiu a experiência do sensível pelo condi- cionamento estético é sem futuro, porque conduz à produção de uma frustração extraordinária das massas [...] que se transformarão cada vez mais em hipermassas de revoltados – seja pelo voto da extrema-direita ou pelo voto sanção em geral, seja por comportamentos violentos de toda natureza, delinquência ordinária, violência de Estado, terrorismos diversos, autoviolência da autodestruição (toxicomanias, suicídio), etc (Stiegler, 2007, p. 29-30).

Lamentavelmente, nada que anuncie uma nova era de paz. Por mais que estejam navegando “junto” aos demais na comunidade da rede e com todos os outros meios de comunicação à disposição, floresce em muitos um senti- mento paradoxal de isolamento, solidão e depressão. Como se trata de um modelo que luta contra o anonimato social, a favor de um estar “aí” midiá- tico massivo, indivíduos e grupos, para serem percebidos, têm que causar sensação e, para tal, usam de expedientes que antes eram comuns em es- feras mais elitizadas – como na publicidade de grandes empresas, na lógica política eleitoral, no jornalismo, no entretenimento –, mas que agora, por assim dizer, se “democratizaram”. A contrapartida disso em termos sociais é a vulgarização do poder. É certo que não toda a sociedade mundial atual está integrada e subordinada aos imperativos midiáticos da globalização, mas esta parte é descontada. Não obstante, todos pagam as faturas que es- tão sendo cobradas pelo espetacular.

Quem presta atenção às telas de televisão, do cinema, dos vídeos, do com- putador ou dos smartphones e iPhones, às vitrines ou aos altares, quem não desgruda o ouvido do rádio, de certa forma vincula sua economia psíquica e intelectual, ou seja, sua libido, às emissões que emanam destes apare- lhos, ou seja, dedica-se a eles, presta atenção, espera algo deles e, com isso, tal como se daria com qualquer outro objeto fetichicizado, estabelece uma relação de dependência, uma crença que dele derive algo novo e que possa acabar com a sensação de que suas vivências e experiências pessoais coti- dianas não sejam “pobres em experiência” – no dizer de Walter Benjamin. Türcke argumenta que, a partir da Revolução Microeletrônica, a repetição de choques audiovisuais se tornou uma constante por parte da metralhadora audiovisual. Ela administra injeções sensuais que, aplicadas em pequenas doses, por um lado podem até estimular o sistema nervoso e sensorial e contribuir para o desenvolvimento do potencial criativo. Porém, por outro lado, o excesso de emissões o estafa, estressa e anestesia, funcionando como um vampiro audiovisual que sistematicamente rouba a possibilidade de formar conexões significativas entre as partes. A atenção é incapaz de perseverar em um cenário cujos materiais manifestam conteúdos através

de edições programadas que abruptamente cortam as imagens e constan- temente deslocam o foco da percepção. Para dar conta desse novo regime social e cultural da atenção, Türcke criou o conceito de “distração concen- trada”. Nem o mais distinto intelectual consegue acompanhar o ritmo da velocidade destas imagens emitidas: “Toda a existência começa a depender, de uma forma absurda, de estar presente, de ser percebido ou perceber, de estar esteticamente presente, enfim, de estar ‘aí’. ‘Ser é ser percebido’ e ‘ser é perceber’” (Türcke, 2010a, p. 267). “Ser é ser percebido” e “ser é perceber”: tais são as fórmulas que o autor escolhe para descrever o que rege o compor- tamento social na era da microeletrônica e do capitalismo estético.

Ora, toda essa explanação pode ser interessante, mas agora alguém pode estar pensando que quer um celular novo e imaginando que marca vai com- prar. Pergunto-lhes então qual é a diferença entre querer um celular novo e querer um novo amor? Talvez a diferença resida justamente no fato de que podemos ter tantos celulares novos quanto nosso dinheiro puder comprar, mas o novo amor desejado não, uma vez que o desejo é singular.

Nesse raciocínio, que aconteceria se no ato da troca substituíssemos uma coisa por outra? Por que trocamos a vivência e o convívio com pessoas por imagens ou por aparelhos?

No documento Filosofia, Comunicação e Subjetividade (páginas 96-102)