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Corte para o fetiche

No documento Filosofia, Comunicação e Subjetividade (páginas 110-119)

O IMPERIALISMO DA IMAGEM E O FETICHE DA SENSAÇÃO

4. Corte para o fetiche

Türcke nos convida a repensar a categoria do fetiche, a redefini-la. “Fetichismo não é mais aquilo que foi quando insiste na fixação do sensório humano no espetacular” (Türcke, 2010a, p. 12). Já falamos sobre as trans- formações semânticas e sociais do conceito de sensação. Neste momento tentaremos situar o fenômeno do fetichismo vinculando-o ao contexto de uso dos aparelhos e das tecnologias audiovisuais. Uma notícia aparentemen- te banal pode servir de impulso inicial. Li recentemente que, na cidade de São Paulo, certo rapaz rompeu um possível relacionamento porque uma re- gra básica sua foi ferida: ele só se relacionaria com mulheres que tivessem aparelhos celulares da marca Samsung.

Sua regra na prática não vai ao ataque de forma sensacionalista. Vista por nós de fora, ela é uma escolha que poderia ser equivalente à busca de um apoio na facticidade. A duração e intensidade da angústia, caso ele suspeite que as mulheres têm nelas mesmas algo desestabilizador, é aliviada pela seleção de um critério bem conformista e bem visível. A marca é um elo – ainda mais quando a forma dominante de mediação no laço social tende a ser mediada por aparelhos.

Podemos identificar que a divisão no ego individual – no caso do rapaz, a escolha entre a mulher ou o aparelho da marca Samsung – pode ser encon- trada em muitas outras situações em que ele se defronta com a necessidade de construir uma defesa contra sustos ou choques traumáticos, e não ape- nas frente ao estranhamento que uma mulher pode representar. O termo libido pode ser aplicado a conceitos que exprimem diferentes tipos de víncu- los aos objetos e mostrar casos em que a satisfação (imaginária ou real) não deve ser reversível exclusivamente à satisfação de ordem sexual. Se isto é

ou não consequência da “rejeição” ou “recusa” da diferença anatômica en- tre os sexos, tal como seria para um fetichista clássico freudiano, só uma análise pessoal poderia dizer. As defesas se constroem tanto contra exigên- cias internas do desejo como contra reivindicações de atenção da realidade externa. O “triunfo” do fetiche da marca Samsung não deve nos levar a crer que, porque o fetichista encontra satisfação em objetos substitutivos, e com isso pode gozar de uma vantagem em relação àqueles que agem de forma diferente, não tenha como implicação sérios danos psíquicos (e não apenas em relação à sexualidade). Por fim, no caminho da construção dos sintomas não faz tanta diferença saber se o que o sujeito faz com o objeto fetichicizado é real ou imaginário, pois a atitude dividida e ambivalente para com o tema da castração pode se mostrar tanto na realidade como na imaginação. Em suma, o fetichista se castra; limita sua atividade ao atribuir seu exercício a poderes que atribui ao fetiche. Entre o ato e o resultado, seus olhos estão fixados no fetiche, que se mantém como um mediador de sua atividade. O que será que levou o rapaz a dar-se a si mesmo tal imperativo? Sua regra instrumental reduz significativamente as possibilidades de encontro, pois a equação mulher=Samsung exclui outras marcas presentes no mercado. Também existe no Brasil um mercado que aluga iPhones a preços não tão módicos para rapazes saírem na balada e impressionarem as garotas. Neste caso, alia-se ao produto o preço do aluguel, e a ostentação agrega valor de troca à exibição. Contudo, ainda parece que há uma carência de explicação para ambos os casos. As diferenças de classe social, renda e propriedade ajudam a compreender a situação, mas não é um tanto quanto fantasmagó- rico alugar um gadget para impressionar e depois ter que devolvê-lo? Parece que o objetivo é mais esnobar por esnobar, ou seja, usar um mero meio para fazer diferença em relação a outros que não o possuem. Mas isto leva a um mau infinito, pois os outros podem igualmente fazer diferença pela di- ferença e impressionar usando roupas de marca, estilos de vida, tatuagens, modas musicais, religiões e teorias não-convencionais, etc. É por isso que o conceito de fetiche pode ser atribuído aos mais diferentes objetos, quer sejam materiais ou imateriais.

O denominador comum nos casos citados acima é o culto à mercadoria. Para diferenciar os que realmente têm poder aquisitivo dos que não têm poderíamos falar em uma cultura de consumo. Mas esta também pode ser conjugada no negativo: como cultura da recusa do consumo. Assim como os produtos da Indústria Cultural, em que a cultura pode ser consumida sem ser verdadeiramente adquirida, as marcas não se limitam mais às mercado- rias, mas “colam” nas pessoas, se fixam em seu sensório. No caso do rapaz, isso mostra que as condições de possibilidade que tornariam possível a rea- lização de seu encontro na integralidade não mais encontraram voz, pois ao mesmo que tempo que reduziu a condição da mulher a menos que um objeto, a marca retirou de ambos, como que de assalto, sua própria expres- sividade humana. Por outro lado, mostra que a banalização e a exploração comercial/mercantil dos sentidos do corpo, que tende a se impor globalmen- te à sociedade – o corpo da mulher substituído por um celular, um ser vivo por uma coisa morta –, está impedindo que a sensação se desenvolva sem o uso de muletas ou amuletos. A natureza do vínculo do rapaz com a tec- nologia mostra um cenário social em transformação sob as condições da revolução microeletrônica: a autoconfiança em seu “caráter” diminui con- sideravelmente, ao passo que cresce a confiança no “caráter fetichista da mercadoria”. Este cenário mostra a “verdadeira” mediação entre a socieda- de e a psicologia, a penúria de um laço social que torna a psique ainda mais vulnerável à dominação econômica, uma vez que a demanda de atenção, o “ser percebido” e o “perceber” são convertidos cada vez mais em foco de atenção e interesse em determinados instrumentos, quando não nos pró- prios instrumentos, que de meios se tornam fins em si. Esta condensação de uma totalidade num único foco de atenção e interesse mostra o deslizamen- to e a consequente desconstrução do corpo da sensação em benefício de um gozo isolado, parcial e momentaneamente situado.

Marx descreveu o “caráter fetichista da mercadoria” como mediador das relações sociais e humanas. Esta deve ter sido a primeira crítica moderna de uma patologia social em escala ampla. Não esquecendo, porém, da crí- tica de Nietzsche à razão ocidental, podemos concluir também que nossas

construções teoréticas, ao constatarem o vício em imagens, ao receitarem dispositivos técnicos e práticas terapêuticas que direcionariam uma possí- vel saída deste estado, incluindo nossa conduta ética frente a isso, podem estar elas mesmas padecendo do mesmo sintoma, porque estão parasitadas pela confiança que depositamos no fetiche da mercadoria.

Essa atualidade do fetiche está inscrita nos novos mandamentos neolibe- rais. Ela pode ser contrastada com o riso irônico dos missionários católicos e colonizadores portugueses da costa da África Central quando rebaixaram os deuses dos nativos ao nominá-los de fetiches. A flexibilidade quanto à atribuição de um valor fixo aos objetos já era uma exigência do sistema comercial/mercantil e deveria servir como mandamento para fazê-los aban- donar a magia animista e adentrar no estágio religioso, muito mais abstrato. A ideia da venda é fixada à mercadoria antes mesmo que ela tenha sido produzida. A impessoalidade do mercado torna seus movimentos flexíveis, como que dotados de vida própria. Todavia, a atribuição de um valor flexível é rígida em relação a outros valores, ou seja, ela é fabricada para ser vendi- da, isto é, trocada no mercado. Isso não exclui que possa ter valor de uso, afora o fato de que existe uma mercadoria especial, que é a força do trabalho humano vivo, que não mais encontra uso se não for trocada. Neste contexto em que a relação entre as pessoas é deslocada e mediada pela relação entre mercadorias, como se expressa então o fetiche da sensação? Como no impé- rio da imagem a sensação se torna fetiche?

Türcke destaca a fixação do sensório humano no espetacular. O fetiche é algo feito. Entre o ato da sensação e o seu resultado, a atividade se fixaria no espetacular. Isso não ocorre de uma forma transparente para o sujeito, porque é preciso “encantar” para ser percebido. Mas só pode encantar quem se encontra de alguma forma sobre o efeito do encantamento. Assim como os antigos rituais de sacrifício deviam ser “bem feitos” para não evocar a ira destruidora de um imaginário poder superior, há uma identificação com os poderes atribuídos ao fetiche. O indivíduo concreto deve fixar algo em seu corpo que o distinga e o torne único. Mas ele é um número e como

tal somente ocupa lugar numa série: não tem significado próprio. E o que acredita que é o mais importante, não pode guardá-lo só para si; tem que se desapegar dele, torná-lo móvel, volátil e substituível, isto é, digno de troca. É isto o que ele é para o mercado. Aqui ocorre a inversão da imagem-ideia fixa de seu valor, mas mesmo quando sabe disso, ele resiste em aceitar tal fato. Em seu texto de 1927 sobre o fetichismo, Freud (1996) hesita em muitos mo- mentos em dar explicações definitivas sobre a origem deste comportamento. Utiliza a palavra alemã Verleugnung (rejeição, recusa) para diferenciar mais nitidamente a vicissitude da ideia e distingui-la da vicissitude do afeto. É paradoxal pensar que o que sentimos não dependa da continuidade da percepção em nós, pois formamos nossa noção de realidade a partir da se- gurança afetiva que os juízos apresentados por nossos pais nos dão. Tudo leva a crer que não nos tornamos dependentes da sensação porque estamos fixados nela de forma equilibrada e contínua. Tal como é equívoco pensar que o dependente de drogas está fixado na substância que o viciou como em um deus a ser adorado, nos tornamos dependentes da sensação porque a forma da intuição que a veste é disposta, em meio ao campo de forças da totalidade social, ou seja, no regime de atenção que ela demanda, já na entrada da vida. O preliminar acaba determinando o jogo decisivo. E isto é instrutivo também quanto ao prazer. Se a sensação se “esgota” no estí- mulo, no aquecimento que deveria dar início à verdadeira partida, ela “se deflagra, de forma tão difusa, na excitação que se dissemina, de modo que a percepção não mais se distingue da excitação concentrada” (Türcke, 2010a, p. 287). Embora não explique de forma cabal a escolha deste ou daquele feti- che e de seu porquê, isso é uma demonstração do modo como a maquinaria audiovisual provoca o aumento da dependência que pode se materializar no fetiche. Ou seja, ao reduzir a sensação ao sensacional, ela provoca uma abs- tinência da e na própria sensação, e o que sobra dela pode ser considerado como o seu “feitiço”. Algo disso poderia ser o segredo oculto no interior do aparelho que levou o rapaz a substituí-lo pela mulher.

Portanto, o “encantamento” moderno da sensação, a possessão da ideia de que compartilharia atributos de uma divindade, não foca o decisivo. O pro-

blema do viciado é que ele não deve perceber que a sua busca repetitiva e compulsiva de apoio na forma atual da sensação é a mais adequada ao incremento do regime fetichista da mercadoria, porque o que lhe é ofere- cido ao sentir são objetos que empobrecem sua própria economia libidinal. A riqueza da oferta de estímulos que não perseveram provoca a pobreza da sensação. Aqui se conjuga de forma paradoxal excesso e falta, exagero e déficit. Portanto, não adianta tratar o sintoma fetiche da sensação mantendo intactas e em funcionamento as estruturas sociais que o produzem.

A forma de pensar moderna, ao decompor a natureza e reduzi-la a processos mecânicos e eletromagnéticos, números e fórmulas, pixels, dados e impul- sos, tenta reconcentrá-la por meio da imagem. Todavia, o pensamento sente a ausência da natureza. O imperialismo da imagem só desdobra a superfície da sensação. Türcke nos deixa um alerta quanto às implicações disso para a formação de conceitos. Ao mesmo tempo em que a ciência decomposta penetrou e dissolveu a sensualidade da imagem técnica tornando-a mais consistente, a violência da abstração contra-ataca o seu autor, “o sistema nervoso vivo, pois lhe é retirada sua própria capacidade de abstração, por meio das abstrações reais altamente técnicas com as quais ele se adaptou” (Türcke, 2010a, p. 284). Em analogia ao modo como os seres humanos se fizeram à imagem e semelhança do Deus do Antigo Testamento, os concei- tos “se transformam naquilo que mais precisa de imagens” (Idem). Eles não mais se “conservam”, pois voam para o poder da imagem como mariposas ao encontro da lâmpada.

Sabemos que as mercadorias não são portadoras de poderes divinos. Mas, quando caímos sob o domínio de Eros, ou seja, quando nos apaixonamos – e querer um celular novo, como me referi acima, guardadas as devidas pro- porções, é uma forma de se apaixonar –, nos referimos ao objeto de nossa paixão como um “deus” ou uma “deusa”. Isto pode ser verificado tanto na fetichicização de relações mediadas por ternuras tecnicamente sinalizadas – que alguns chegam a descrever como muito mais excitantes do que a rea- lidade –, como no fetiche dos próprios aparelhos. Atribuir à posse da marca de um aparelho de celular o poder de decidir acerca de questões existen-

ciais; deslocar seu caráter de mero meio ou aparelho de uso técnico para fazer “ligações” à capacidade de definir o fim de uma “ligação” ou um poder superior de “desligamento erótico”, como se fosse um valor em si, absoluto e independente, é inverter uma determinada hierarquia de valor das coisas e horizonte de mundo, isto é: dar um sujeito para o objeto. A aparência de que somos livres para entrar e sair incólumes de qualquer relação é reforçada pela imanência valorativa que se objetiva no marco da desregulamentação do ethos econômico neoliberal. Uma alternativa que se apresenta quanto aos valores que as pessoas ainda podem trocar entre si nesta fase histórica das relações capitalistas é insistir numa conduta que viola este regramento: a via do símbolo ou da palavra, pois ela ainda pode subtrair a captura de um poder que é real, mas que é igualmente imaginário, super-investido de po- der sobre a vida. Através dela teríamos a chance de introduzir um terceiro elemento mediador nas relações, a saber, algo que coloque o ser do fetiche e a relação que o existente entretém com ele em questão – com a ressalva de que o universo do discurso não é menos afeito à fetichicização do que o universo das imagens.

Agora, quando a sensação produzida pela imagem ou pela marca de fábrica de um aparelho é fetichicizada, quando sua posse é sentida como um poder superior, como deus no sentido de um ser puro e autossuficiente, incapaz de carências, e sem a qual certos atos humanos nem mais poderiam ser efetivados, aí não há mais horizonte, nem educação, nem filosofia, nem arte, nem psicanálise ou humanidades que sejam capazes de ver o fundo no qual a coisa se mostra.

Nós buscamos A coisa, o incondicionado, mas encontramos apenas coisas. Em função da sua não correspondência, passamos por ciclos de ilusão e de desilusão. Com a entrada na modernidade e com a constituição do mundo burguês, os indivíduos se encontraram frente a um tipo especial de objetos que são as mercadorias, e isso mudou o mundo, porque então se tornou possível que o investimento libidinal projetado nelas não mais respondesse à sua autovalorização ou mesmo à sua necessidade, mas sintomaticamente ao regime de autovalorização de um estranho: o capital.

Por outro lado, é inegável que a imagem cumpra uma função de proteção contra ameaças traumáticas e que as formações sociais modernas capi- talistas utilizem a produção de choques para evitar que suas fraturas e contradições se tornem visíveis e audíveis.

Em meio ao imperialismo do audiovisual, as construções contingentes da tecnociência continuam aliadas à vulgarização do poder social das mídias que emitem a imagem de um mundo unificado, um mundo que caminha- ria para a unidade global. A esperança em um mundo melhor não deve se equivocar quanto à necessidade de que esta imagem seja perfurada. Se é verdade, como afirma Husserl, “que toda coisa é alguma coisa e o horizon- te sobre o fundo no qual ela se mostra”, o risco é que fiquemos somente com as coisas, apagando-se o horizonte. O horizonte do pensamento é a sua paisagem interior. Assim, se toda coisa é alguma coisa mais o horizonte sobre o fundo no qual ela se mostra, e, se a idolatria é uma forma de fixar o horizonte em coisa, então o risco maior é que não fiquemos nem com o impossível nas coisas, que desistamos de pensar a função utópica do próprio pensamento e do desejo que nele habita. Em nossa condição de abstinentes e dependentes da imagem, somos reincidentes. A decisão sobre a imagem que conscientemente queremos construir e a inconsciência presente nas pretensões de substituí-la por uma falsa imagem unificada de mundo exi- ge reflexão e autorreflexão irrestrita quanto à capacidade deste sistema de destruir o mundo. Em substituição ao que a construção capitalista exige, a saber, ocultar a continuidade e o aperfeiçoamento dos seus próprios de- feitos, precisamos nos esforçar por sonhar nossos próprios sonhos e não sonhar os que a maquinaria das imagens nos oferece prontos como merca- dorias num supermercado.

Para terminar, como o sensório humano não é natural e nem caiu do céu, mas virtualmente passível de ser conservado ao mesmo tempo em que se encontra ameaçado, a criação de condições de possibilidade de uma estética do sensível que substitua o condicionamento estético fetichista do capita- lismo cultural deve ser encarada como uma das tarefas direcionadas ao presente das nossas próprias circunstâncias.

Referências

BERARDI, F. Generación post-alfa: patologias e imaginários en el semiocapitalismo. Buenos Aires: Tinta Limón, 2007.

BIRMAN, J. Diagnósticos da contemporaneidade. In: JUNIOR, A. M.; KUPERMANN, D.; TEDESCO, S. (Orgs.). Polifonias: clínica, política e criação. Rio de Janeiro: Contra Capa/UFF, 2005. p. 101-107.

BOEHM, G. Aquilo que se mostra: sobre a diferença icônica. In: ALLOA, E. (Org.). Pensar a imagem. Belo Horizonte: Autêntica, 2015. p. 23-38. FREUD, S. Fetichismo. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 151-160. (Edição

Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v. XXI).

STIEGLER, B. Reflexões (não) contemporâneas. Chapecó: Argos, 2007. TÜRCKE, C. Sociedade excitada: filosofia da sensação. Campinas: Ed.

Unicamp, 2010a.

OS ESTUDOS CULTURAIS DE RAYMOND WILLIAMS:

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