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Corte para a imagem

No documento Filosofia, Comunicação e Subjetividade (páginas 102-110)

O IMPERIALISMO DA IMAGEM E O FETICHE DA SENSAÇÃO

3. Corte para a imagem

“Husserl conclui que toda coisa é simultaneamente alguma coisa e ao mes- mo tempo o horizonte sobre o fundo no qual alguma coisa se mostra” (apud Boehm, 2015, p. 30). Se, por um lado, é fácil constatar e mostrar a elevação exponencial da produção de imagens desde o surgimento das técnicas de reprodução, por outro, é difícil parar diante da imagem para pensar o hori- zonte sobre o fundo no qual ela se mostra.

Vou propor duas formas de pensar a imagem que, obviamente, não exaurem o seu pensamento.

A imagem pode ser pensada como substitutiva de algo, como representan- te de um ausente, como símbolo. O substituto ou o representante não é o

titular. Seu poder simbólico de tornar presente o ausente, de representar aqui e agora algo do real que se encontra fora de nós ou virtualmente em nossas memórias passadas, nos pouparia do encontro com esse real e, atra- vés disso, poderíamos acreditar mantê-lo sob nosso controle. Tal é o caso da interpretação que Freud ofereceu sobre uma brincadeira de seu netinho, o famoso jogo do carretel, em que ao jogar para longe o carretel e depois puxá- -lo de volta a si por meio de um barbante, ele intercalava foneticamente um

Fort (fora) e um Da (aqui). Ora, se a imagem vem no lugar de um trauma, de

uma separação, da descontinuidade de uma relação, então podemos pensá- -la analogamente à linguagem: como um sintoma a ser decifrado.

Por outro lado, a imagem também pode ser pensada como pretendente. O pretendente não é o substituto, e muito menos representa o titular. Todavia, ele pode pretender ser mais do que os dois. Enquanto ideal, a pretensão não substitui a genealogia e a historicidade necessária para ocupar o lugar da própria coisa. Ela não alcança o saber da própria coisa. Enquanto sua causalidade permanecer desconhecida, o que percebemos da imagem pre- tendente é o efeito que ela provoca em nós.

É na confluência entre estes dois pensamentos sobre a imagem, a saber: 1º) o pensamento da imagem como substitutiva, que ao trazer à lembrança uma privação, uma ausência ou a falta, tenta assemelhar-se e assenhorear-se dela – como se dissesse satisfatoriamente para si mesmo que foi ele mesmo quem as produziu e com isso poderia, sem risco, substituí-la – e, 2º) o pensa- mento da imagem que pretende se colocar no lugar da própria coisa, ou seja, apagar os efeitos negativos da privação, da ausência ou da falta (“o horizonte sobre o fundo no qual alguma coisa se mostra”) que podemos situar uma das condições para que a imagem adquira o caráter de um fetiche.

Retomando: as imagens, para serem vistas, exigem que a elas se dedique tempo. No espaço compreensivo entre a imagem e o olhar que ela provoca, o discurso que mais se aproxima é o que resiste à afirmação dogmática de que ele a domina. Desta forma, há uma chance de que um clima pensativo se forme e uma dialética crítica se desenvolva entre a imagem e o olhar,

mostrando o caráter limitado do pensamento substitutivo e do pretendente. Assim, o pensamento das imagens pode ser invertido e podemos passar a pensar em imagens de pensamento, mantendo o caráter de reflexividade que pode estar concentrado nelas. O interesse em tal procedimento crítico é dialogar com elas; não apenas torná-las pensáveis, mas parceiras de um pensamento que não se esgota no choque e logo após desapareça, mas que leve adiante a reflexão. Por isso, não se trata de um método que se aplique de fora às representações visuais. Não há via única de acesso à interpre- tação do termo eidos, o correspondente grego antigo à imagem. Por isso, muitas vezes afrontamos a priori as imagens e acabamos ficando de mãos vazias ou sem ideias, porque ao retirarmos autoritariamente a força vir- tualmente presente nelas acabamos por formar delas mais uma imagem: desta vez a de um domínio abstrato, uma vez que “abstrair” significa, lite- ralmente, retirar uma força ou suspendê-la, e não ir ao seu encontro. Assim, continua sendo difícil parar diante das imagens para pensá-las, porque, na maioria das vezes, as recobrimos com uma vestimenta lógico-discursiva que pretende dar conta de forma positiva e transparente do que nelas se en- contra de condensado, deslocado ou invertido. Neste sentido – lamento por Adorno e Horkheimer – constato não temos como fazer uma crítica conse- quente da Indústria Cultural senão utilizando-nos de alguns de seus meios. Igualmente questionável é o alcance de um pensamento que se queira acima ou além da técnica ou que meramente repita a ladainha da separação entre homens e máquinas.

Por outro lado, outro conceito que importa para o que estamos tratando é o de deslocamento. Deslocamento aqui pode ser compreendido como impli- cando tanto uma mudança do olhar do sujeito quanto do lugar da imagem. Significa tanto a possibilidade de ver uma coisa em uma outra, quanto a possibilidade de deslocar as categorias sobre as quais ela é “impressa” em nossa mente. Todavia, para que isso funcione, é fundamental que haja a possibilidade de um distanciamento entre o sujeito e o objeto, no caso, a imagem. Se não houver distância, não tem sentido falar em deslocamento. Nem sempre o deslocamento é positivo. Frente à vivência ou rememoração

de um evento que fere nosso narcisismo, o olhar pode ser deslocado para outra cena, evitando com que ele se faça testemunha de uma presença – tal como quando fechamos os olhos para não ver, por não suportar ver. O sentido que aqui interessa explorar do conceito de deslocamento vem da técnica artística. Temos no gesto inaugural do pintor, escultor e poeta fran- cês Marcel Duchamp um exemplo emblemático. Em sua obra A fonte, criada em 1917, um urinol de porcelana branco, destacamos que a simples retirada do objeto de seu lugar de uso cotidiano e o deslocamento para outro espaço fez com que este já não mais pudesse ser visto como antes. Este tipo de des- locamento provoca um distanciamento e estranhamento que rompe com o automatismo da percepção. O ato artístico criativo que consegue provocar o deslocamento do olhar revela outros destinos possíveis à percepção da imagem.

Outro conceito inseparável deste é o de condensação. Condensação significa ver ou tomar uma coisa ou imagem por uma outra, ou como síntese de vá- rias outras. Com isso adentramos na arqueologia mental, na profundeza das imagens em nós, neste espaço cujo relevo é tecido de imaginação e fantasia. Para quem conhece a psicanálise já deve ter identificado que os conceitos acima ocupam um lugar central, na atribuição de Freud, à capacidade do sonhar: os mecanismos inconscientes do deslocamento e da condensação. E, de acordo com a obra Filosofia do sonho, de Türcke (2010b), Freud definiu o sonho como nada mais nada menos do que “atividade primitiva do pensa- mento”. Embora não de forma exclusiva, predominantemente o conteúdo do sonho é composto por representações visuais. A forma imagética manifes- tamente assumida nos coloca a questão do lugar da proveniência latente de seu conteúdo manifesto: por que o sonho assumiu esta forma e não outra? Portanto, parar diante da imagem para pensá-la significa também resistir à tentação de substituição de um imperialismo conceitual por outro, tal como muitos parecem ter feito sob muitos aspectos com a obra de Freud. Obviamente que não há análise sem interpretação de símbolos. Todavia, uma coisa é tomar a imagem como símbolo; outra, bem diferente, é consi- derá-la como sintoma. É questionável até que ponto a mera substituição ou

tradução passo a passo do imperialismo do imaginário pelo imperialismo do simbólico consegue articular a história dos deslocamentos, condensações e inversões que deram origem à imagem e à palavra.

Ao lado dos mecanismos inconscientes que regem o processo primário do psiquismo humano, ou seja, da “atividade primitiva do pensamento”, há a censura. Ela é uma “senhora” bem mais idosa do que um pensamento que ousou ser senhor de si mesmo. Na breve história documentada das imagens no Ocidente, ela exerceu papel ativo tanto na iconoclastia hebraica quanto na iconofobia da metafísica clássica (Platão, em especial). No caso do cristia- nismo, operou um deslocamento fundamental ao desqualificar a natureza material e sensível da imagem e ver nela impurezas resultantes de um olhar suspeito de concupiscência, de curiosidade natural, quando não dominado pelo demônio. O “caso Galileu” é uma testemunha tardia disso. Quando tomamos a imagem como sintoma, o que mais dá trabalho é dissolver as formas de percepção social que se fixaram e produziram o inconsciente como cenário de interdições, como cortina que ao mesmo tempo mostra e oculta o fato de que a sensação é poder. As sínteses produzidas pelo discurso dominante, a saber, pelo discurso consciente, não permitem que o incons- ciente se “atualize”, uma vez que ele vai nos remeter à infância, à filogênese e à ontogênese da humanidade. Interpretar esse resto inconsciente e não abjurável, esse dejeto que se passa e se transmite através da imagem, essas “manchas” na luz, esse conteúdo historicamente aquém do bem e do mal, significa afrontar o que na maioria das vezes as pessoas rejeitam.

Em momentos de crise, o poder da censura ordena não pensar, ou seja, in- cide como uma força repressiva sobre as próprias imagens do pensamento. Não há dúvida: é desejável que uma parte do conteúdo fantasmático e aluci- natório das primeiras imagens permaneça recalcado. Dosar a produção da angústia para dominá-la é uma demonstração de um estágio cultural em que o susto já havia sido enformado. O nó na garganta da angústia é censura, pois ela transforma um horror inominável e tenta domesticá-lo nomeando-o nem que seja com um “não sei o que estou sentindo”. De teor bem diferente são as formações inconscientes que se utilizam de mecanismos como a re-

cusa, a denegação ou o desmentido fetichista, onde o pensamento atribui à imagem poder de substituição da falta e pretende acabar com a censura da angústia. Freud constatou que, em geral, seus pacientes fetichistas estavam satisfeitos com seus sintomas.

Retomando a conclusão a que Husserl chegou, a saber, de “que toda coisa é simultaneamente alguma coisa e ao mesmo tempo o horizonte sobre o fundo no qual ela se mostra”, podemos deslocar as categorias de horizonte e fundo e introduzir a categoria de totalidade social. Refletir teoricamente sobre os limites que ela impõe ao nosso conhecimento é tomá-la como parte de uma teoria crítica da sociedade. Pensá-la como um filtro da percepção significa pensá-la como causadora de danos em nossa pretensão de um olhar autênti- co e verdadeiro em relação àquilo que comunicamos e expressamos. Pensando o estatuto de sujeito e de objeto entre os diferentes registros e regimes que atribuímos à imagem, podemos notar certa oscilação em suas trajetórias. Em todo caso, em nossas formações sociais, nos depararmos com a impossibilidade de que a imagem cumpra com o objetivo de satisfazer o desejo. A descrença nas instituições, a descrença da própria cultura, é um sintoma disso, pois ela se apresenta como tendo a solução para este impasse subjetivo. A coerção mental à edificação de uma imagem autônoma do sujeito em oposição às forças do impulso é cifra deste processo e do fracasso de seu resultado. Um pensamento que repele seu pai, ou seja, que pretende supe- rar o impulso ou o desejo, pode até construir bonita fachada em seu edifício, mas não cria conhecimento. Ao descartar as emoções como entulhos de sua construção, ele degenera em tolice. O processo de individuação envolveu, ao longo das eras, um penoso trabalho de memorar, rememorar e comemorar a passagem pela provação e reprovação de imagens que evocavam dor. A evo- cação da dor mostra que o espírito humano não é autárquico, que a lógica da identidade pura, sem contradição, é internamente incoerente, porque ela é o resultado da inscrição de uma compulsão que se transmitiu como se fosse uma estrutura a priori da razão. A ontologia grega e a subjetividade consti- tutiva dos modernos são estruturas contraditórias: ao constituir o sujeito, o divide. Sua sensibilidade continua presa em um impasse: a necessidade de

ser percebido por ao menos alguns semelhantes mostra o quanto o moderno é paradoxal: ao colocar a individualidade como valor fundamental e libertá- -la das amarras feudais desencadeou uma busca frenética por espelhos que refletissem a unicidade de um eu penso que pudesse acompanhar todas as representações do sujeito, excluindo da razão prático-moral como patoló- gicos os reflexos de sua animalidade ou impulsos egoístas. Todavia, estes restos inconscientes e não abjuráveis, estes desejos-dejetos que se passam e que se transmitem através da imagem foram recalcados pelo pensamen- to identificatório. Ele desconsidera que do material só pode ser sintetizado aquilo que este permite. A pura singularidade é em si uma abstração, um resto do pensamento da imagem pretendente. A autonomia só pode che- gar a ser real se reconhecer os aspectos heterônomos inseparáveis de seu conceito. A preocupação em demasia com a posse de mercadorias explica a angústia de realização do próprio desejo e sua alienação fetichista. Cultuar, cultivar e consumir obsessivamente imagens superficiais de satisfação pode causar a falsa sensação de que a angústia desaparece.

Em nosso culto superficial às imagens clichês não respeitamos mais o tem- po do pensamento e nem a materialidade do desejo que habita o corpo de suas imagens. O primado do pensamento da imagem pretende manter sepa- rados os traços somáticos da imagem, pois eles evocam “algo” natural não subordinado a sua hierarquia. A consideração disso significaria um passo para que se faça justiça ao impensado na imagem. É aqui que se pode situar uma imagem autorreflexiva do sujeito que não seja a de uma vítima e nem a de um vingador.

É questionável o quanto pensamos ou desejamos por nós mesmos. Se é cer- to que a condição humana não se reduz à condição moderna, então podemos concluir que a condição moderna impulsionou à formação de uma imagem ideal do desejo. Ao fomentar a ilusão de que todo ele poderia ser satisfeito no consumo de tipos específicos de mercadorias, subordinou-o à oferta do artificialmente produzido. E o fato de que entre estas mercadorias profanas algumas são ressacralizadas, ou seja, adquiram o caráter de necessidade mesmo sendo produções contingentes, não é um mero acidente que faz com

que o enunciado absoluto se torne relativo, mas evidencia uma absolutiza- ção do próprio relativo.

Por outro lado, o domínio de leis econômicas abstratas e da forma da mer- cadoria só pode se tornar compreensível como declínio da res publica. Onde há a imposição do objeto como mercadoria, ou seja, onde e quando ela é entronada como uma rainha que causa e ordena o desejo, não pode haver verdadeira política e nem sujeito emancipado. A palavra talvez mais apro- priada para esse regime que desloca, condensa, e inverte as necessidades humanas ao impor uma imagem substitutiva e pretendente de satisfação e realização pelo consumo massivo e anônimo da mercadoria é polícia e não

política. Por mais sutil que a ordem seja enunciada, seu seguimento de en-

trada e saída se dá de forma regular e análoga: através da administração da ameaça de uma violência física e psíquica. Esta ordem policial é rotineira, circular e se retroalimenta. De fato, uma pessoa que necessita alimento não se satisfaz com imagens da comida num menu e nem com discursos sobre o objeto a ser devorado. Contudo, a imagem tem poder de substituição da coi- sa ou do objeto, e pode condicionar o desejo do sujeito ao interpelá-lo. Caso o conceito de desejo não seja confundido com um mero capricho ou vontade, e a pergunta pelas formas de sua satisfação não seja censurada previamente pela crítica que argumenta que “não há satisfação a ser dada a respeito do desejo” ou “cada um responde a ele da forma que quiser”, então podemos nos perguntar: é plausível afirmar uma inversão sempre que ele se torna objeto de imagens que, ao interpelá-lo, o condiciona a seguir determinadas vias em sua busca de satisfação? Aqui estamos pisando em areia movediça. Contudo, afundamos ainda mais na areia se afirmarmos como equivalente ao prazer o que é sentido apenas em sua fase inicial, como preparação ao prazer. É certo, todo mundo concorda que relações humanas presenciais, ao vivo, não são fáceis de serem construídas e muito menos mantidas. Como numa redução ao absurdo, na sociedade da sensação, muitos podem estar convencidos de que é muito mais excitante consumar as relações consu- mindo a imagem das coisas ou das pessoas, e não ir às coisas ou às pessoas mesmas. A busca individual compulsiva e repetitiva de sempre novas sensa-

ções mediadas pelas imagens é uma tentativa de pôr fim à superficialidade das sensações que o efeito de seu consumo imediato produz. A imagem, ao ser posta à prova do real, pode envolver um possível fracasso. O medo da imagem não coincidir com um ganho real pode levar, tal como no paradoxo do Asno de Buridan, à inanição narcísica.

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