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Algumas consequências e um projeto

No documento Filosofia, Comunicação e Subjetividade (páginas 67-75)

TRANSFORMAÇÕES PÓS-MODERNAS DAS HUMANIDADES E DA COMUNICAÇÃO:

7. Algumas consequências e um projeto

Na Comunicação verificamos algumas consequências (distópicas) desta pas- sagem da modenidade à pós-modernidade:

·há um crescimento do individualismo e do isolamento do indivíduo (Alone

together, dirá Sherry Turkle, “technology has become the architect of our intimacies”)

·há um esbatimento das fronteiras entre o privado e o público, sobretudo entre os nativos digitais, que cedem irrefletidamente todo o tipo de in- formação pessoal, sem se aperceberem do potencial terrorista da sua agregação, nas mão de corporações ou nas mãos do Estado; e que sob a política do medo, não veem nenhum problema em abdicar ainda um pou- co mais da já sua reduzida privacidade.

·há uma alteração (qualitativa e quantitativa) da natureza do espaço públi- co que parece do bem, mas pode ser usada para o oposto, como se pode verificar pelo crescimento da turba ululante de que falava Sócrates, agora online, e o fortalecimento dos movimentos xenófobos e racistas, que trou- xeram ao espaço público um discurso dele arredado, primeiro a coberto do anonimato, agora até à normalização final, que bem pode ser a eleição de um presidente.

E podemos formular um voto (utópico) para o futuro dessa comunicação: Estes desenvolvimentos de que vimos falando no campo dos media ainda se estão consolidando, e o seu mapa no presente ainda é um esboço em aber- to. Aproveitar a horizontalidade dos self mass media, e a desorientação dos

outlets clássicos que não conseguiram ainda dominar o mercado das redes

para favorecer uma comunicação desalienada, com ênfase na qualidade e dignificação do espaço público, ao invés do seu aviltamento, algo que vemos muitos media mainstream fazer com a reality TV e um estendal do bizarro que sem dúvida contribui para a degradação da qualidade democracia. É previsível que os próximos anos tragam grande conflitualidade nestas áreas, com a luta pela dominação, policiamento e controle da internet; e é expectável uma ofensiva legislativa à escala global que tente limitar estas suas características emancipatórias, fazendo o controlo de estragos. Todas as armas, especialmente as do medo, que tão bons serviços prestaram no abdicar de direitos cívicos e de controlo da privacidade após o 11 de Setembro serão empregues nesta ofensiva. São estes mesmos meios de comunicação que têm de ser usados para a mobilização popular pelos diversos movimen-

tos sociais garantindo a liberdade de acesso e circulação de informação nas redes.

A emergência da mass self-communication oferece um meio extraordiná- rio para os movimentos sociais e para os indivíduos rebeldes construírem a sua autonomia e confrontarem as instituições da sociedade nos seus próprios termos e à volta dos seus próprios projetos. Naturalmente, os movimentos sociais não são originados pela tecnologia, eles usam a tec- nologia. Mas a tecnologia não é simplesmente uma ferramenta, é um

medium, é uma construção social com as suas implicações próprias

(Castells, 2007, p. 249).

Acolher o “meio extraordinário” parece um propósito digno para a comunicação.

Nas Humanidades verificamos algumas consequências (distópicas) desta passagem da modenidade à pós-modernidade:

·a sua perda de influência, e o lugar secundário que o zeitgeist e as forças de mercado lhe reservam. Não nos parece alarmista o diagnóstico de Nussbaum de que estão em risco de desaparecer num lento definhar a que não será alheio a inevitável contração de vocações;

·um futuro que despreze as Artes e as Humanidades contribui certamente para a criação do homem global, adaptável porque genérico (sem ca- racterísticas diferenciadoras). Esse sujeito narrow minded, com poucas ferramentas de avaliação crítica, de argumentação racional e de reconhe- cimento empático do outro é excelente a cumprir ordens: boas, ou más; Guantanamo ou Aristides de Sousa Mendes – isso já tem mais dificulda- de em discernir;

·uma vida boa para o homem (a eudaimonia aristotélica) pode ser formula- da em termos do antigo ideal de paideia, como a formação completa do homem: intelectual, física, cultural e espiritual. A crescente ênfase dos atuais sistemas de ensino, sob a égide do “gerencialismo”, na aquisição de

competências (skills) mensuráveis e facilmente auditáveis deixa de fora várias dessas dimensões e não parece um grande progresso.

E podemos formular um projeto (utópico) para o futuro das Humanidades: repensar o programa de Martha Nussbaum reconstruindo duplamente as Humanidades: como campo de pesquisa; e como objecto e produto de frui- ção, dádiva e tributo à nossa humanidade.

No primeiro aspecto dessa reconstrução é preciso uma reforma heurística do campo das Humanidades que promova a sua afirmação em termos aca- démicos e científicos. Aqui será necessário reconhecer que as tecnologias digitais revolucionaram a relação tradicional dos académicos com o conhe- cimento, e que as Humanidades clássicas não foram exceção. O impacto da computação na criação, pesquisa, e ensino das Humanidades gerou um novo campo académico, referido em termos muito latos como Humanidades Digitais, que se vem solidificando desde os anos 90, e conta com investiga- dores e uma certa institucionalização em ambos os lados do Atlântico. É um campo que se está a consolidar junto das mais prestigiadas univer- sidades ocidentais, englobando o ensino, a pesquisa, a criação, publicação, encontros e congressos. Entre os seus variados objetos, conta-se utilizar o poder da computação para um tratamento renovado das humanidades, promovendo a interdisciplinaridade e novas abordagens a velhas questões. É um campo novo onde a nível metodológico também ainda há muito por fazer.

Esta reconstrução do campo abraçando as Digital Humanities é instrumen- tal relativamente à segunda vertente, que é aquela que considero decisiva: a reconstrução das humanidades como dom. Fazê-lo passa por as afirmar no século XXI numa multiplicidade de plataformas, tirando partido das tec- nologias digitais – na produção, na distribuição, e também nos conteúdos, que as tecnologias disponíveis farão com que se prestem à mestiçagem e ao

pastiche. Novas Humanidades são possíveis, já defendia António Fidalgo em

2008, chamando a atenção para o papel das “ciberculturas” como “desafio inevitável às culturas centradas na palavra e aos respectivos saberes huma-

nísticos” (Fidalgo, 2008; Steiner, 1991). O seu papel, como projeto utópico, é elevar a qualidade da produção cultural que circula no espaço público, con- tribuindo para elevar a experiência da fruição estética das massas e para a criação de cidadãos mais felizes e esclarecidos (Adorno, 1970). Em suma, é dar corpo ao potencial emancipatório espiritual das Artes e Humanidades, porque é aí, enquanto aquilo que nos eleva, distingue e identifica na singula- ridade cultural de cada um, que reside a sua importância para nós.

Também acredito, como disse logo no início, que é tarefa da Filosofia, da Comunicação e das Humanidades liderarem o debate sobre o seu futuro, ou outros o farão por nós (como infelizmente já estão fazendo).

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