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ASTÚCIA OU MALANDRAGEM: UMA REFLEXÃO SOBRE A FENOMENOLOGIA DO BRASILEIRO

No documento Filosofia, Comunicação e Subjetividade (páginas 195-200)

Tiago Lazzarin Ferreira1

1. A origem do pensamento burguês na Antiguidade

Como demonstraram Adorno e Horkheimer (2006) o projeto do esclarecimento possui raízes imemoriais. Assim, o idealismo do homem burguês foi prenunciado por obras de milênios atrás. Os autores identificam na

Odisseia de Homero um dos exemplos mais eloquentes

de narrativas que contém em estágio embrionário os fundamentos da razão esclarecida que vigoram na so- ciedade contemporânea. Por isso, os autores asseveram que Ulisses é o “protótipo do homem burguês”.

Enquanto o esclarecimento é, em seu sentido amplo, “o progresso do pensamento”, que tem o “objetivo de livrar os homens do medo e investi-los na posição de senhores” (Adorno; Horkheimer, 2006, p. 17), a astúcia é uma de suas marcas distintivas. Os filósofos alemães que tornaram célebre a Escola de Frankfurt também demonstram que o esclarecimento não conduziu à emancipação pretendida. Na Dialética do esclarecimento, os autores retomam a proposição do filósofo Immanuel Kant (1974), para quem permanecia uma aspiração plau- sível a promessa de que a razão esclarecida poderia retirar o homem das trevas da ignorância, da qual ele próprio é o responsável. Mas esta aspiração iluminista não se concretizou no capitalismo tardio, pois, ao con-

1. Doutorando da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo – Brasil. Professor de Sociologia do ensino médio da rede pública estadual de São Paulo.

trário disso, se verificou neste contexto a promoção da barbárie das guerras e do extermínio em massa a partir do progresso dos meios tecnológicos. Com a ascensão de regimes totalitários do nazismo, do fascismo, e com a desilusão da experiência do socialismo soviético, os filósofos frankfurtianos problematizaram as antinomias da razão burguesa.

No “Excurso I” da Dialética do esclarecimento, Adorno e Horkheimer reali- zam a análise do entrelaçamento entre mito e esclarecimento, indicando que, desde a antiguidade clássica, particularmente na Odisseia de Homero, era possível identificar as contradições da práxis do homem contemporâneo. Para os autores, razão e mito se confrontam e se elucidam mutuamente.

Assim como o episódio das Sereias mostra o entrelaçamento do mito e do trabalho racional, assim também a Odisseia em seu todo dá testemu- nho da dialética do esclarecimento. Sobretudo em seus elementos mais antigos, a epopeia mostra-se ligada ao mito: as aventuras tem origem na tradição popular. Mas, ao apoderar-se dos mitos, ao ‘organizá-los’, o espírito homérico entra em contradição com eles. (Adorno; Horkheimer, 2006, p. 47).

Esta epopeia prenuncia o isolamento do sujeito contemporâneo, com o exem- plo paradigmático de Ulisses. O propósito do herói é a autoconservação: ele pretende retornar à sua terra natal na condição de um homem desbravador, que dominou as grandes potências da natureza e a si mesmo por meio da razão. Ulisses reconhece sua impotência física diante de monstros e peri- gos enviados por deuses, e procura lográ-los sem desafiá-los diretamente. Assim, a astúcia do herói reside no cumprimento integral das leis e contra- tos ditados pelas divindades do Olimpo, que são aceitos tacitamente pelo herói como uma condição natural da humanidade, ao mesmo tempo em que pretende revertê-los a seu favor.

2. Astúcia e individualismo

O logro de Ulisses por meio de sua astúcia se baseia na descoberta de la- cunas nas leis criadas pelas divindades, e isto pressupõe que o logrador

possua o domínio de uma linguagem universal, que compreenda os prin- cípios que as constituem. Diferentemente do pensamento mágico, no qual a expressão e a intenção coincidem, o domínio da linguagem permite ao herói que ele retire o poder imediato da palavra sobre a coisa, separando o significante do significado. Com a manipulação astuciosa dos códigos da linguagem por meio da razão, a intenção do eu individual passa a interferir na expressão da lei coletiva.

Na Odisseia, o herói se vale da razão para ludibriar o ciclope Polifemo, mito que representa o estágio de uma sociedade patriarcal de caçadores e pastores, mas que ainda não se desenvolveu de acordo com os padrões da ci- vilização. Por sua incapacidade de utilizar um raciocínio sistemático, pois o monstro não sabe dissociar palavra e coisa, Polifemo é logrado por Ulisses, cujo nome grego é Odysseus2. O viajante consegue enganar e escapar do

ciclope de força descomunal, filho do deus Posseidon, ao fazer com que este atribuísse a responsabilidade de ter sido cegado a “ninguém”. Apesar de conseguir escapar da ilha dominada pelo ciclope, Ulisses permanece preso ao poder deste semideus após ter escarnecido dele. Esse escárnio desne- cessário sugere uma espécie de lembrança incômoda da real impotência da razão diante da natureza implacável.

Outro exemplo da astúcia de Ulisses é o episódio das sereias. De acordo com a lei dos deuses do Olimpo, ninguém poderia sobreviver ao canto das sereias, que devoram todos os que são atraídos pela melodia de sua voz. Ciente desta lei, o herói não ousou desafiar esta lei, mas procurou burlá-la quando foi amarrado ao mastro por seus servos, que não poderiam ouvir nem os apelos do senhor e nem ao canto proveniente do mar. Como a lei não previa o sacrifício de Ulisses, que ordenou a seus servos que o amarrassem, ele pôde ouvir o canto e permanecer vivo. Em outras palavras, o herói pôde contemplar o canto, mas não pôde entregar-se por inteiro à sedução das sereias a fim de evitar a morte. Com isto, esta lei que exigia o sacrifício pago

com a vida humana deixou de existir, em troca de outro sacrifício: a submis- são do corpo à razão.

Nos dois episódios comentados – confronto com Polifemo e a audição do canto das sereias – é evidenciado que o preço da autoconservação de Ulisses é, paradoxalmente, a autonegação. O herói reconhece a si próprio como um humano mortal que não pode medir forças com a natureza e, por isso pretende lográ-la. A autoconservação conquistada mediante a astúcia é, portanto, ambígua. A razão pretende suplantar os mitos, mas, ao mesmo tempo, isso somente é possível mediante a anulação da vontade. O esclare- cimento visa submeter ao seu domínio as forças da natureza, mas o preço que paga é negar no indivíduo a natureza que o constitui. Deste modo, a astúcia é a expressão de uma inteligência que consegue ludibriar as forças da natureza, sem efetivamente confronta-las. O aventureiro, assim como o burguês, somente se lança ao desafio enquanto possui a certeza de que não deve desafiar os poderes estabelecidos tal como se apresentam, e o logro somente ocorre por meio da adesão às regras estabelecidas.

Nesse sentido, a astúcia se resume a uma capacidade de obter vantagens de maneira obediente às relações de poder consolidadas. Este componente da razão esclarecida não questiona a arbitrariedade das leis e dos contratos impostos a partir de instâncias de poder e dominação, mas apenas objetiva tirar proveito individual das leis e contratos. Por isso, a razão astuciosa de Ulisses prenuncia o individualismo em voga na sociedade capitalista. Na sociedade contemporânea, o pensamento idealista burguês omite as contradições sociais, e o que realiza é tão somente a reprodução da anti- ga fórmula do mito, que permanece atado a estas mesmas contradições. Do mesmo modo como Ulisses pretendeu lograr as forças da natureza com a sua astúcia enquanto sacrificava a si próprio, o homem contemporâneo procura se beneficiar da ordem social estabelecida de modo individualista, enquanto se mantém submisso às suas leis. Assim, a razão esclarecida que visa à emancipação, isto é, que visa retirar o homem da ignorância da qual ele próprio é responsável, promove igualmente a sujeição aos imperativos

de uma ordem impessoal e pretensamente universal. Certas ciências eco- nômicas e sociais desconsideram aspectos históricos e culturais em suas análises em função das livres forças do mercado, como se as mesmas pos- suíssem uma realidade própria e exata como as equações matemáticas. Nesse cenário, o homem é menos um sujeito com liberdade de ação do que alguém que se protege com uma frágil razão de forças desconhecidas e com as quais não pretender entrar em contato.

3. Seria o malandro verdadeiramente astucioso?

A astúcia que reproduz a ordem estabelecida encontra, no Brasil, sua ex- pressão na conhecida Lei de Gérson3, segundo a qual o brasileiro “quer levar

vantagem em tudo”. Também remete ao jeitinho brasileiro de burlar a lei para obter privilégios pessoais. A propósito da relação do brasileiro com a lei, as interpretações da cultura do país têm oscilado entre a denúncia de um

ethos que reproduz os mecanismos de dominação das elites desde o passa-

do colonial e escravocrata, por um lado, e a idealização da capacidade dos habitantes de superar situações difíceis, por outro. Menos frequentes são as abordagens que reconhecem tanto a miséria quanto a riqueza de uma cultura que mantém uma relação ambígua com a lei. O personagem que sintetiza esta ambiguidade é o malandro, que figura na literatura brasilei- ra desde, pelo menos, a segunda metade do século XIX, e está plenamente desenvolvido em Memórias de Um Sargento de Milícias, de Manuel Antônio de Almeida, publicado em 1852, como se pode depreender da interpretação crítica de Antônio Cândido (1970).

Com o malandro, é explicitada a questão da marginalidade de uma parcela negra e indígena da população e das culturas que representam uma ameaça à ordem estabelecida, remontando à oposição entre casa grande e senzala e à transição dos ex-escravizados para o trabalho assalariado em centros urbanos, principalmente o Rio de Janeiro. Neste contexto, emerge um tipo social marginalizado que desenvolve habilidades corporais e perspicácia

3. Trata-se de uma frase do jogador Gérson, campeão da Copa do Mundo de 70, proferida em um co- mercial de um cigarro, no qual diz a famosa frase “eu gosto de levar vantagem em tudo”.

para sobreviver em ambientes marcados pela pobreza. Diante de uma he- rança colonial de opressão e injustiça que perdura com as transformações econômicas do café e da indústria, o malandro se apresenta como uma es- pécie de jogador que participa do jogo em uma condição de desvantagem, mas que procura não ser eliminado de modo definitivo e, ao final, acaba por mudar os rumos da partida.

O malandro incorpora algumas aspirações características da ideologia do- minante, como a de levar a vida sem “pegar no batente”, o que costuma ser compreendido como um privilégio das elites. Mas, ao mesmo tempo, ele está fadado a uma vida completamente insegura, e está frequentemente envolto em problemas com figuras de autoridade: polícia, oficiais da justiça, credores, etc. Assim, o malandro se equilibra na linha tênue entre o abrigo da lei e o descumprimento da mesma. Ele joga e é jogado por reversões sú- bitas entre a norma e o interdito. Além disso, esta figura traduz nos gestos corporais as contradições da sociedade: seu gingado, sua malemolência, sua fala mansa. De modo que a expressão da ambivalência do malandro não é literal, mas é perceptível apenas simbolicamente.

O ritmo do samba criado no bairro carioca do Estácio de Sá é a concreti- zação, no âmbito da música, da malandragem em seu aspecto de reversão entre ordem e desordem. Este ritmo é composto pela alternância entre a marcha, com a marcação dos tempos fortes do compasso, que propicia uma sensação de estabilidade, e a subsequente síncopa, que desestabiliza esta mesma marcação, ao deslocar as notas fortes para o tempo fraco e, em con- sequência disto, faz com que o corpo se requebre para voltar ao equilíbrio. Ao lado do sambista, outras figuras como o capoeira, o boleiro, o boêmio e o

bicheiro representam a malandragem. O malandro é, portanto, uma figura

que integra o imaginário popular, e é simbolizado por entidades de religiões de matriz africana como Zé Pilintra, e até mesmo apropriado pela indústria cultural e estilizado em desenhos infantis como Zé Carioca.

No documento Filosofia, Comunicação e Subjetividade (páginas 195-200)