• Nenhum resultado encontrado

A UTO APLICABILIDADE DAS NORMAS CONSTITUCIONAIS ANALISADAS

No documento Precatórios: problemas e soluções (páginas 140-144)

Cumpre ressaltar ainda que a Emenda Constitucional é auto-aplicá- vel, por ser norma declaratória de direitos e obrigações, nada havendo nela que exija regulamentação.

Nesses termos, pertinente se faz o magistério de Thomas Cooley,

citado por Paulo Bonavides:74

Pode-se dizer que uma disposição constitucional é auto-executá- vel (self executing), quando nos fornece uma regra mediante a qual se possa fruir e resguardar o direito outorgado, ou executar o dever imposto, e que não é auto-aplicável, quando meramente indica princípio, sem estabelecer normas, por cujo meio se logre dar a esses princípios vigor de lei.

É importante observar que a norma constitucional em comento não delineia princípios a serem observados, quando da criação de futura lei que regulamentará a matéria, e isso porque a própria Constituição da República de 1988, em seu art. 100 e no art. 78 do Ato das Dispo- sições Constitucionais Transitórias, já disciplina a questão de forma suficiente ao exercício do direito pelo administrado, tornando desne- cessária a edição de lei regulamentadora.

Ora, excetuada a dilação do prazo para seu pagamento, a única alte- ração significativa no regime dos precatórios foi a possibilidade de se utilizá-los com “efeito liberatório” do pagamento de tributos da enti- dade devedora.

7 4 Curso de Direito Constitucional. 7ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 1997, p. 216.

LIQUIDAÇÃO DO PRECATÓRIO: PAGAMENTO... 129

CAPÍTULO 3

Impende notar que em nenhum momento é utilizada a expressão “na forma da lei” ou similar, usualmente empregada em dispositivos constitucionais que demandam legislação infraconstitucional para explicitar conceitos e dispor sobre determinados procedimentos ne- cessários ao exercício do direito previsto na Magna Carta. E isso, por uma razão simples e que retomamos: a própria Lei Maior já dispôs, de forma suficiente, sobre a matéria, sendo possível, desde já, a fruição, pelo administrado, do direito em exame.

Outro ponto que se destaca são os termos utilizados nas novas re- dações dos artigos mencionados, que não necessitam de nenhuma nor- ma posterior para esclarecer seu significado preciso, e eventuais dúvi- das são seguramente solucionadas por meio de interpretação sistêmica. Assim, não cabe invocar o disposto no art. 170 do Código Tributário Nacional, dado que a autorização para a utilização do crédito decor- rente de precatórios não pagos, no caso, que se assemelha à compen- sação, advém da Constituição, não sendo possível tentar adaptar a Constituição ao CTN. Assim, em regra, a compensação tributária rege- se pelo disposto no CTN e na legislação extravagante. No caso de precatórios não honrados, no entanto, o seu “poder liberatório” advém da Constituição, não se podendo restringir esse direito com base em dispositivos infraconstitucionais anteriores e hierarquicamente inferio- res ao Texto Magno.

A argumentação de que a norma precisaria ser regulamentada não procede, uma vez que, conforme foi acentuado, a única alteração sig- nificativa do regime dos precatórios foi a possibilidade de utilizá-los para o pagamento de tributos, de forma assemelhada à “compensa- ção”, já devidamente tratada pelo antigo e pelo novo Código Civil.

Nem se diga que o dispositivo do novo Código Civil relativo à com-

pensação de dívidas fiscais75 foi revogado antes da vigência do Códi-

go. Como já se afirmou aqui, o “poder liberatório”, que se assemelha à “compensação”, provém da Constituição, e não da legislação infracons- titucional. Assim, revogado o dispositivo do novo Código Civil que

7 5 O art. 374 do novo Código Civil dispunha: “Art. 374. A matéria da compensação, no

que concerne às dívidas fiscais e parafiscais é regida pelo disposto neste capítulo”. Tal dispositivo havia sido revogado pela MP 75, de 24.10.02, que foi rejeitada pela Câma- ra dos Deputados. Posteriormente, a MP 104, de 9.1.03 revogou, novamente, o dispositivo, sendo convertida na Lei nº 10.677, de 22.5.03.

JORNADADEESTUDOS

permitia que a compensação de dívidas fiscais fosse feita na forma ali estipulada, tem-se que a “compensação” de dívidas fiscais, em regra, será realizada nos termos do Código Tributário Nacional. No tocante ao “poder liberatório”, no entanto, este é regulado pela Constituição.

Nesse sentido, oportuna, aqui, a lição do notável Carlos Maximiliano:76

Deve o Direito ser interpretado inteligentemente: não de modo que a ordem legal envolva um absurdo, prescreva inconveniên- cias, vá ter conclusões inconsistentes e impossíveis. Também se prefere a exegese de que resulte eficiente a providência legal ou válido o ato, à que torne aquela sem efeito, inócua, ou este, juri- dicamente nulo.

Releva acrescentar o seguinte: “É tão defectivo o sentido que deixa ficar sem efeito (a lei), como o que não faz produzir efeito senão em hipóteses tão gratuitas que o legislador evidentemente não teria feito uma lei para preveni-las”. Portanto a exegese há de ser de tal modo conduzida que explique o texto como não contendo superfluidades, e não resulte um sentido contraditório com o fim colimado ou a caráter do autor, nem conducente a conclusão física ou moralmente impossível”.

Na mesma linha da doutrina aqui transcrita, confira-se excerto do

voto do Ministro Carlos Velloso no RE n. 161.264-RS:77

Os estudiosos de hermenêutica constitucional ensinam que as normas constitucionais que contenham vedações, proibições ou que declarem direitos são, de regra, de eficácia plena. Assim, no Brasil, contemporaneamente, a lição de José Afonso da Silva (<Aplicabilidade das Normas Constitucionais>, Ed. Rev. dos Tribs., 2ª ed., 1982, pág. 89), na linha, aliás, da doutrina e da jurisprudência americanas, que Ruy Barbosa expôs, admiravel- mente. Em voto que proferi neste Plenário, disse eu que a regra que vem do Direito americano é esta: as normas constitucionais que veiculam declarações de direito, imunidades e vedações são, de regra, auto-executáveis.

No mesmo sentido, afirmou o Ministro Maurício Corrêa, nos autos do RE n. 193.456/RS:

7 6 Hermenêutica e aplicação do Direito. 13ª ed. Forense: Rio de Janeiro, 1993, p. 166. 7 7 RTJ 155/307.

LIQUIDAÇÃO DO PRECATÓRIO: PAGAMENTO... 131

CAPÍTULO 3

O direito constitucional, a exemplo do restante, é produzido com vistas à sua aplicação, voltado à produção de efeitos práti- cos. Ele é, portanto, preordenado a enquadrar as hipóteses que disciplina sob o manto da sua eficácia: impõe aos fatos e com- portamentos empíricos o mandamento previsto na norma. To- davia, esta capacidade de incidir imediatamente sobre os fatos regulados não é uma característica de todas as normas constitu- cionais. Muitas delas não ostentam tal virtude, o que significa dizer que não têm condições de incidir imediatamente sobre o real. Para que elas preencham suas finalidades demandam uma legislação intercalar, isto é: uma lei que se interpõe entre a norma constitucional e o fato empírico.

Em verdade, a maior ou menor aptidão para atuar, para incidir sobre os fatos abstratamente descritos na hipótese da norma constitucional, depende do modo como a própria norma regu- la a matéria de que se nutre. A possibilidade de plena incidência da norma está sempre condicionada à forma de regulação da respectiva matéria. Se esta é descrita em todos os seus elementos, é plasmada por inteiro quanto aos mandamentos e as conseqüên- cias que lhe correspondem, no interior da norma formalmente posta, não há necessidade de intermédia legislativa, porque o comando constitucional é bastante em si. Tem autonomia operativa e idoneidade suficiente para deflagrar todos os efeitos a que preordena.

De revés, se a matéria que se põe como conteúdo da norma é deficientemente plasmada, de modo que tal defeito de confor- mação intercorra por qualquer um dos seus elementos lógico- estruturais – que são a hipótese, o mandamento e a conseqüência – aí se torna necessária a expedição de um comando comple- mentar da vontade constitucional.

Como se vê, os elementos lógico-estruturais da norma (hipótese, mandamento e conseqüência) estão devidamente previstos no pró- prio dispositivo constitucional, que autoriza o credor de precatório não pago a dele se utilizar com efeito liberatório do pagamento de tributos.

Assim, a exigência de todas as questões aqui contestadas levaria a flagrante incoerência na interpretação da norma sub examine, contra- riando a ratio legis e tornando-a inócua e sem qualquer efeito, em bene- fício do Estado, devedor inadimplente.

JORNADADEESTUDOS

Dessa forma, já detendo o Estado a prerrogativa de liquidar suas dívidas em até dez anos, não pode ele ser beneficiado com o acrésci- mo de prazo necessário à elaboração das leis (supostamente) necessá- rias à efetivação do direito dos credores. De fato, devendo as leis ser oriundas de cada ente da Federação, seria “fácil” impedir o “poder liberatório” dos precatórios pela inércia legislativa ou, ainda, pelo exer- cício dos poderes de veto e de “persuasão” do Poder Executivo sobre o Poder Legislativo.

Ressalte-se, ainda, que as Fazendas têm interpretação, no mínimo, curiosa a respeito do tema. Como já se afirmou aqui, o direito potestativo concedido às Fazendas é uno, ou seja, a elas é facultado parcelar os precatórios devidos, desde que honrem as parcelas ou lhes reconheçam o “poder liberatório”. As Fazendas, no entanto, parcela- ram – ou simplesmente suspenderam o pagamento dos precatórios –, mas afirmam que o direito concedido a seus credores não é auto- executável. Assim, no entendimento das Fazendas, o dispositivo Cons- titucional lhes confere um direito auto-executável, mas, para seus cre- dores, este direito carece de regulamentação.

Verifica-se, pois, que, entender ser o dispositivo não auto-aplicável, é beneficiar o Poder Executivo inadimplente, em detrimento dos direi- tos do cidadão.

No documento Precatórios: problemas e soluções (páginas 140-144)