• Nenhum resultado encontrado

A VIVÊNCIA DO TEMPO: ENTRE CHRONOS E KAIRÓS

CAPITULO II – A VIVÊNCIA DA TEMPORALIDADE EM PESSOAS

2.1 A VIVÊNCIA DO TEMPO: ENTRE CHRONOS E KAIRÓS

Na Grécia clássica existem formas variadas de se pensar ou mesmo viver o tempo, porém cada teoria, conceito, vivências ou mesmo sistemas temporais, apresentam suas peculiaridades. A historiografia grega, nesse sentido permite compreender a importância do tempo como parte da vida humana (MOMIGLIANO, 1990). Por isso, será feita uma delimitação de como alcançar uma maior clareza do fenômeno referido, tendo em vista a relação entre a temporalidade e a busca pela qualidade de vida

Nesse contexto, tem-se como exemplo o tempo Arkaios e sua dimensão de antiguidade, que não cabe trazê-lo a esse estudo, por acrescentar sentidos insuficientes, na elaboração do que se pede. Porém é importante e suficiente analisar algumas dimensões, tendo como ponto de partida o tempo chronológico, o kairótico e algumas das relações que permeiam seus significados, como a noção do ainda, do reviver momentos, sendo o ainda uma referência, assim também como a dimensão do agora, como sucessão de momentos. Nesse sentido o ponto de maior referência recai sobre o tempo kairós, por se mostrar mais adequado na identificação da qualidade do vivido (MINKOWSKI 1993, apud COSTA; MEDEIROS, 2009).

Sendo o tempo uma dimensão existencial, encontra-se presente na história da humanidade, estando dentro de uma concepção histórica clássica e medieval. Nesse contexto, o tempo servia aos homens essencialmente como orientação no meio social e como forma de regular a coexistência, manifestado no tempo Chronos. Porém, entre os gregos clássicos, há também o substantivo Kairós, sendo um pouco mais discreto, mas se fazendo presente por um longo período histórico entre os pensadores (SILVA, 2007). Quando encontrado em Hesíodo, denotava medida certa, proporção correta. Assim, foi se firmando como importante norma, sábia moderação, tempo apropriado e momento favorável.

No Chronos, o tempo é medido por anos, por primaveras e por dois acontecimentos básicos: o nascimento e a morte (SCHWARTZ, 2008). Filosoficamente, é um tempo aprisionador, pois o Ser sofre com o que passou e com o que virá. Esse sentimento para quem tem ataxia pode significar o medo e outras sensações ligadas à incapacidade de construir algo, como, por exemplo, formar uma nova família, assim também como a reorganização ou não de sua vida no tempo e espaço.

Chronos é o princípio regulador de todos os assuntos mortais dito da temporalidade.

[...] Chronos que se ‘alimenta’ dos filhos e, ainda, um Chronos que se realiza em nossa sociedade como o mestre do tempo técnico dos relógios e das revoluções sócio-industriais (REGGIO; PEIXOTO, 2009, p.14).

O tempo cronológico é contado, em minutos, segundos e milésimos de segundos, numa ordem linear de tempo. Porém, se refaz nas concepções conscientes dos seres humanos (SCHWARTZ, 2008). Sua essência é indefinível, pois não se sabe ao certo se existe independentemente da realidade exterior ou se é apenas uma ilusão, um produto da consciência, que faz o sujeito imaginar como real, algo que é apenas uma memória do que foi ou a expectativa do que poderá ser. O tempo e a noção de temporalidade têm sido objetos de estudo de muitos filósofos, especialmente caros à fenomenologia, inclusive para Minkowski e Merleau-Ponty (2000, p.176), sendo que este último afirma que “o fenômeno da pluralidade de tempo é um fenômeno de perspectiva”.

Dentro dessa noção temporal, o termo Kairós é outra concepção de tempo que se mostra como uma maneira de compreender o tempo vivido. Essa visão, por sua vez, apresenta duplo significado. Por um lado, Kairós é o momento propício; de outro lado, representa oportunidade (NATÁRIO; TEIXEIRA; EPIFÂNIO, 2010). Como momento propício, é o instante único que se abre para a ação certeira e eficaz. As decisões e ações tomadas no exato momento podem resultar em eficácia e no alcance do objetivo proposto. Como oportunidade, denota a abertura que se apresenta no tempo para uma ação determinada possibilitando ser executada (NATÁRIO; TEIXEIRA; EPIFÂNIO, 2010). Kairós, portanto, diferentemente de

Chronos, traz uma noção de qualidade na forma de se pensar, agir e aceitar a vida,

vivenciando-a como um momento único, sem precipitações, medo e desilusões (MINKOWSKI 1993, apud COSTA; MEDEIROS, 2009), mas na certeza de que deve ser vivida de forma que possa proporcionar liberdade, felicidade dentro do processo de finitude humana.

Kairos-criação, ou mesmo, Chronos-Kairos. [...] há uma relação entre o tempo

menos determinado e a criação de qualquer coisa. Esta é uma experiência do tempo que não é programada. Isto é, a criação ou o ato de agir deve se passar num espaço menos restrito, num tempo menos cronometrizado, num tempo menos chronificado (REGGIO; PEIXOTO, 2009, p.15).

Enquanto sob domínio de Chronos, cabe ao ser humano apenas reduzir-se a um espaço de dominação, reflexão e de poder, tomando ações no sentido de garantir força para compensar a inexorável passagem do tempo. Em Kairós, o que se tem é uma noção de qualidade da percepção e da ação. Esse tempo é um tempo que não é medido por anos, meses e dias, é atemporal. Um dia em Kairós não tem uma dimensão relacionada ao poder de ação, que não necessariamente significa passividade, mas uma forma de agir com consciência e harmonia diante das manifestações temporais na vida do sujeito (FORGUIERI, 1993a).

Assim como em Chronos, que se mostra na tomada de atitude, onde o indivíduo é ativo, no Kairós essa visão também se faz presente, mas leva em conta o sujeito como Ser de existência consciente de sua limitação e finitude, aceitando essa realidade como parte de si mesmo na tentativa de superar essa dualidade de medo ou outros sentimentos associados à dominação temporal.

O ser humano tem consciência de sua morte, seja ele religioso ou não, podendo a partir dela gerar capacidades coletivas a fim de antecipar e criar o futuro. A consciência da finitude produz, no humano, uma necessidade projetada de atingir a eternidade (MILANI, 2009, p.297).

Nele também não há uma noção de espaço dominável, mas de pura realidade vivida na concepção da finitude humana, por isso mesmo pode ser construído levando em conta essa harmonização entre tempo e realidade, vida e morte, liberdade e felicidade (ALMADA, 2008). É nesse sentido que o sujeito com ataxia pode se encontrar como pessoa que transcende o tempo e a finitude frente a sua morte.

É importante que se compreenda o tempo expressado como: devorador e controlador, utilizado em marcadores de tempo, mas também, em outro momento, é necessário identificar um tempo existencial, como tempo vivido, ou seja, o tempo que pode proporcionar qualidade de vida ao sujeito (MINKOWSKI, 1993, apud. COSTA; MEDEIROS, 2009). Nesse sentido é importante entender o tempo vivido como parte da existência humana, ultrapassando os limites da relação tempo-espaço, presente, passado ou futuro, dando à redução temporal uma significância frente à necessidade de viver qualitativamente. Esse é um processo onde a forma

de viver parece ser baseada na consciência do sujeito e a experiência pode fazer parte de um todo, sem que haja desconexão da realidade psicológica no que diz respeito à sua vida prática (MILANI, 2009).

Isto torna a compreensão da temporalidade e suas relações com a experiência existencial da pessoa de suma importância, uma vez que a temporalidade não se apresenta uniforme, mas com características diversas dentro de um contexto de existência humana (RIBEIRO; MARTINS, 2009).

Sendo o tempo um processo influenciado pelo dinamismo da vida, a temporalidade também se processa dentro dessa concepção, ou seja, faz parte de si mesmo na dinâmica da transformação temporal de um movimento que flui (MERLEAU-PONTY, 2009). Neste caso, compreende-se essa mudança pela própria existência do tempo presente na percepção subjetiva relacionada com a existência do ser enquanto ser. Existem diferentes formas de se perceber um fenômeno e esta percepção também faz parte da vida de quem tem ataxia.

Viver a temporalidade dentro de uma concepção de existência humana requer considerar a subjetividade como condição própria do ser humano, podendo o sujeito encontrar possibilidades de viver em um contexto onde a valorização da essência torna-se primordial frente à compreensão de sua vida, fazendo-se parte da existência como ser e não como objeto, o que torna necessária uma compreensão da noção de temporalidade e suas relações com o tipo de tempo que se quer viver e sua real importância (SILVA, 2007).

Nesse contexto, é necessário compreender ainda que a noção de tempo encontra-se no sujeito através de sua subjetividade temporal, ou seja, por meio da experiência vivida na dimensão temporal ou do próprio tempo como fenômeno de existência que se mostra na experiência da consciência, desde as primeiras impressões perceptíveis da realidade do sujeito. Dessa maneira, a temporalidade permite que o tempo faça parte da existência humana, possibilitando ser diante de si mesmo movimento e encontrando, dessa maneira, uma forma de ser temporalizado, ou seja, de fazer parte da vida do sujeito. É nesse processo temporal que o sujeito com ataxia pode diferenciar seu olhar diferenciado da doença e suas limitações ou se esforçar por transcender seu estado de adoecimento, encontrando no presente elemento do tempo vivido que atuem como o suporte para o futuro que, mesmo sendo finito, permite realizações, o que possibilita impulsionar sua consciência frente à debilidade física e de seu processo temporal através de sua existência como sujeito (ALMADA, 2008).

As transformações temporais levam em consideração os elementos da finitude diante da temporalidade que participa da experiência do sujeito, como ser de existência (SILVA, 2007b). Enquanto temporalização existe em diferentes formas de perceber um fenômeno e

esta percepção também faz parte da vida de quem tem ataxia. Tendo a compreensão desse processo, ele próprio deve tomar consciência do caminho a ser percorrido encontrando assim meios que possibilitam a superação de ansiedade e depressão, afinal estas também são formas de lidar com o tempo cronológico e suas decorrentes limitações, tendo em vista a busca pela qualidade de vida (MULLER, 2001).

Realizar uma análise do tempo pode parecer desnecessário, pois a tendência é permanecer numa abordagem ingênua, preso a uma dimensão cronológica, ao invés de se buscar compreendê-lo como se apresenta na vida. Entretanto, o que se pretende neste trabalho é remontar à noção de temporalidade, a qual vai muito além da percepção ingênua que temos do seu conceito, pretendendo chegar à compreensão dos fenômenos como processo fenomenológico, uma vez que a vivência do tempo pode se constituir real em muitos aspectos da vida (MATTHEWS, 2010). Afinal, as noções de passado, presente e futuro de certa maneira regulam os movimentos subjetivos e intersubjetivos e podem redimensionar as experiências e modos de existir no mundo para as pessoas, em seus diferentes momentos de vida.

Dessa maneira, a depender do modo como elabora seu tempo vivido, o sujeito apresentará também suas reações existenciais diante da consciência de sua finitude, refletindo em suas formas de ver, agir e repensar a vida. E a depender do modo como organiza suas formas de ver as respectivas reações, elas poderão exercer um papel comprometedor ou favorecedor no seu modo de lidar com as vicissitudes da finitude temporal. Caso não se compreenda e se elabore positivamente a relação entre o espaço e o tempo de vida que se têm, as muitas reações poderão variar desde a depressão ao desespero na busca por uma melhor qualidade de vida, acompanhadas dos mais diferentes sentimentos.

Assim, é importante compreender que a vivência da temporalidade regula a manifestação dos fenômenos e sua compreensão, dando menor ou maior sentido à vida através da intencionalidade, no sentido em que a definiu Husserl (1994). Partindo do princípio de representação de como o tempo se faz presente, configurando-se como noção de que o próprio sujeito pode encontrar e transformar, na medida de suas experiências com o mundo. O tempo vivido em seu aspecto puramente cronológico pode ceder lugar à vivência de outras modalidades temporais, representadas pela expressão grega de Kairós.

O Agora é outra noção de tempo que se destaca, sendo perceptível por meio do movimento, onde o tempo é aquilo que se encontra em mudança, reconhecido nos diferente instantes do presente ou dos “agoras’. Enquanto tempo, os “agoras” se constituem em diferentes existências do movimento que é abstraído da presença móvel dos fenômenos

pluralizando-se em instantes, sendo este movimento percebido pelo sujeito de existência (REY PUENTE, 2001). Assim está diretamente relacionado com o movimento temporal, que flui diante da percepção do sujeito de mudança espacial e de momentos, se refazendo nos espaços constantes de presentes, onde o que era agora já não é mais (REY PUENTE, 2001).

A depender do modo como a pessoa lida com sua existência temporal, isso pode lhe proporcionar um sentido e uma noção de realidade, onde o próprio objeto, no caso o tempo, se mostra tal como é, mas que também é percebido pelo sujeito. Assim o que concebemos como tempo pode ser uma representação de sua ação temporal, onde os objetos e os fenômenos se encarregam de realizar essas manifestações, em uma dimensão essencial, mostrando ao homem uma noção ainda não compreendida da própria ação dos fenômenos (MATTHEWS, 2010).

Mesmo que o tempo possa se manifestar no espaço físico e na subjetividade do sujeito, permanece apenas na consciência do indivíduo e não na compreensão absoluta como objeto e como Ser, onde o homem pode encontrar suas próprias representações temporais, mas não o tempo dentro de sua dimensão real, como ser de totalidade podendo ser dominado ou mesmo compreendido na sua essência ontológica (MERLEAU-PONTY, 2000).

Quando se busca a dimensão kairótica para fundamentar a vivência, o sujeito deve ter em vista uma escolha, realizando assim uma demonstração da importância de se perceber e viver o tempo com qualidade, sendo esta qualidade um objetivo ou mesmo uma finalidade que deve ser sobreposta à vivência do tempo cronológico. A renúncia desse modelo de vivência temporal requer do sujeito uma disposição para ver no kairós a possibilidade de superação das diversas formas de controle temporal encontrada no chronos, mostrando para si mesmo que viver a temporalidade é uma maneira de compreender as relações existentes entre tempo e finitude, levando em consideração a percepção que o sujeito tem de sua própria forma de viver qualitativamente (MINKOWSKI, 1993, apud. COSTA; MEDEIROS, 2009).

Assim o sujeito pode escolher uma maneira de vivenciar o tempo e a finitude conforme suas concepções ou mesmo a maneira como o tempo se mostra a ele, porém dificilmente sua escolha será extratemporal, pois o tempo faz parte de sua percepção e vivenciá-lo é uma forma de encontra-se como sujeito situado no tempo e no espaço (MERLEAU-PONTY, 2000). Assim a vivência da temporalidade é imputável a qualquer outra pessoa/doente ou não que tenha o seu limite de tempo reduzido não sendo, portanto específico de quem tem ataxia.