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ABAPORU E OS SINAIS NORMATIZANTES

No documento Arte e antropofagia (páginas 50-53)

Os Semáforos temáticos "hackeados" com o Abaporu, de Tarsila do Amaral, espalhados por regiões como Pinheiros e Vila Madalena em São Paulo, SP, em 2013, nos trazem outras questões entre o Abaporu e a mobilidade nas cidades.

Na cidade, assim como na rede, há trajetos normatizantes. Estes permitem traçados obedecendo à sinalização da cidade, dos planos arquitetônicos, seja na cidade de São Paulo, SP, onde esse semáforo com a imagem do Abaporu foi instalado, seja no Plano Piloto, na cidade de Brasília, DF.

A intervenção nos semáforos, acima, traz planos Piloutros, outras “surpreessões” (Stiegler, 2007). Ela provoca trajetos nomadizantes, errância sem rumo, sem tempo.

O trajeto de ida e volta do trabalho, atrasado porque perdeu a lotação, os artistas que fazem estátuas vivas, os artistas de rua, as performances, os letreiros publicitários rasgados, os grafites e as pichações, o morador de rua que toca um pandeiro, o camelô que dança com seu carrinho e que corre da polícia com seus artigos piratas, etc. a senhora que toma sol em meio à passarela entre o Conic e o Conjunto Nacional, em Brasília, sentada em seu Puff vermelho tranquilamente observando o movimento dos transeuntes, geram sinais nomadizantes.

51 A relação entre o Abaporua e Abaporedes, corpos multiplicando-se em relação, nas ruas e nas redes, em presenças e telepresenças, ampliando suas presenças ou ampliando presenças ao mergulharem na multidão e seus fluxos normativos, criando surpressões, sincronicidades e diacronicidades, pausas, brechas, Arte e vida misturando- se e absorversando(se) mutuamente nas redes e ruas. Essa Intervenção urbana, a ação no semáforo, na faixa de pedestre, ao colocar o Abaporu, na criação de roteiros, roteiros, roteiros... para além da linearidade e da racionalidade é sinal normatizante.

No entanto, o símbolo utilizado no semáforo, seja ele no vermelho, indicando para que o corpo em movimento pare, pause, espere, seja no verde, indicando para que esse corpo siga em frente, mova-se, atravesse, ou simplesmente permaneça observando o sinal trocar do verde para o vermelho, as pessoas atravessarem e pararem, sem mover- se, sem deslocar-se, mas deslocar-se no pensamento, imaginando, imagem andando alternando o pensamento entre um Abaporu vermelho, um Abaporu verde.

Se “questionar é comer”21

, conforme Evando Nascimento (2011), Abaporu come o semáforo e é comido por ele. Ao invés de pensar numa absorção desse símbolo nomadizante pelo sistema normatizante, pensamos nas devorações criadas entre eles e no estranhamento causado pela absorção de um sinalizador, um sinal: roteiros, roteiros, roteiros, roteiros, roteiros, roteiros, roteiros outros. Pensamos, ainda, na ação que o ato de atravessar a rua provoca, colocando o Abaporu em movimento nos corpos dos transeuntes, que podem esperar o sinal fechar e abrir mais de uma vez, para poder observar a imagem. Hesitar em seu trajeto. Atravessar em outras direções, em outros sentidos, criar outros roteiros. Seria Abaporu que se nutre do semáforo ou o semáforo que se nutre da imagem do Abaporu? Antropofagias, iconofagias, digitofagias, tecnofagias. Entre os sinais normatizantes e os sinais nomadizantes, a relação entre a norma que captura a cabeça e o pé, o pensamento e o pé, e os coloca em movimento. O corpo pára em frente ao sinal vermelho, mas o pensamento se move diante da imagem de Abaporu.

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Derrida expõe que toda a questão é uma forma de comer (...) ou antes de dar de comer. É o Bem que se dá a comer tornando-se nutriente, quando se compartilha a linguagem com o outro. Nunca se come, ou nunca se deveria comer só. Comer é partilhar a comida, no respeito ao outro enquanto outro, sabendo que no instante mesmo em que se tenta (simbolicamente) devorá-lo a introjeção substâncial jamais se completa de todo (NASCIMENTO, 2011:360-361).

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Abaporu. Aba parou. Aba-poroso. Aba-pororoca. Abaporu, antes se deslocando

entre os sinais verde e vermelho, agora na calçada, fora do semáforo, diante do sinal verde, atravessando a rua. Para e pensa, no meio da rua. Aba parou. Mas o pensamento não cessa de pensar imagem, por imagens, imaginar. Observa do outro lado da rua os transeuntes que não se surpreendem com sua presença parado na rua, mas com sua imagem no semáforo. Uns nem percebem, outros olham com desdém, outros sorriem. Outros não entendem. Outros resmungam baixo. Outros olham para baixo e somente seguem o movimento dos pés dos que estão à sua frente. Outro tira uma foto. Ou outro a foto do que tirava foto tirando foto e a foto da foto do outro, e manda pela rede social. A foto da foto da foto da foto... Pode ou não haver surpresa. Abaporu surpreende-se. Para cada um, Arte ou não, como diz Stiegler (2007), “Arte é mais surpreeensão que compreensão”. Não compreendia, mas surpreendia(se). A pé. Apressados. De carro. Apertados. De moto. Montados e amontoados. Mas se surpreendeu. Seria Arte?

Abaporu atravessa a rua. Sobe no poste, escorrega para cima. Entra no semáforo, que

volta a piscar entre verde e vermelho.

Sentado, pensando e balançando os pés, balançando o pensar com os pés, coloca a cabeça entre as pernas e sem pensar, desloca-se entre as cores, colorindo o pensamento sobre tudo o que via nas vias. Filtros coloridos. Filtrava o movimento com cores. Tivesse boca para falar, gritar, comer, cuspir, sorrir, teria rido daquilo tudo. Ria com as plantas dos pés, que brotavam não do solo, mas de cima do semáforo. Eram todos pés. Ficou pedestre o resto do dia. Observando e absorversando as imagens e movimentos dos corpos através do semáforo. Atravessa os corpos que através dos

semas, voram, versam, absorversam semiofagicamente, pés destros e canhotos. Semavoros. Abaporu, semiófago. A mão esquerda aperta o botão para abrir o semáforo

enquanto a direita desliza o visor do celular e tira uma selfie. Olhamos para a foto, e

Abaporu não aparece na foto. Esquiva-se. Não quer aparecer. Tinha sido mal

enquadrado. Repetimos o movimento. Não quer ser enquadrado. Os dedos tiram a foto, agora com a mão esquerda enquanto a direita aperta o botão para atravessar. Meu corpo de fotógrafo fica fora de quadro, mas capta uma sequência de fotos de Abaporu que sobe e desce do verde para o vermelho várias vezes. Amarelo. O sinal fica intermitente.

Abaporu segue outros caminhos. Atravessamos a faixa de pedestre correndo, para não

53 Já do outro lado da rua, os pés e a cabeça seguem outros caminhos, outros pensamentos, outros roteiros. Mas seguimos sinalizando paradas, travessias, trajetos. O

wifi para de funcionar. Olhamos para a selfie que tiramos. Olhamos para o sinal

intermitente. Recordamos do Abaporu na tela do semáforo, na tela do celular. Pensamos tela de Tarsila, nas lentes do fotógrafo, na imagem do manifestante de balaclava que chuta a bomba de gás lacrimogênio, no manifestante na cadeira de rodas. Abaporu em outro suporte, corpo luz, filtro vermelho, verde, Abaporu no semáforo. Semávoro. Na TV do bar, na calçada, vejo o exoesqueleto que passa despercebido na abertura do Copa do Mundo. Come os sinais antes normatizantes, agora ágora nomadizante. Indigenômade in. AbapoRUAs e AbapoREDES. Tento enviar a foto, mas estou sem conexão. Sigo caminhando, roteadores, roteadores, roteadores, roteadores, roteadores, roteadores, roteadores... AbapororOCAS. Real, virtual, atualizando configurações. Atuar. Atuando figuras e ações com.

No documento Arte e antropofagia (páginas 50-53)