• Nenhum resultado encontrado

ABORDAGEM SEMÂNTICA, PREDICADOS DE SUPPES E

Sendo assim, tentaremos primeiramente tornar claro o que a aborda- gem semântica entende por “teoria científica”. Segundo tal visão, para res- pondermos a questão “o que é uma teoria científica?”, devemos primeira- mente tomar tais teorias como uma classe de estruturas, de modo que apre- sentar uma teoria científica é exatamente apresentar os modelos dessa teoria, isto é, as realizações — por assim dizer — que tornam os postulados verda- deiros.2É claro que o termo “modelo” pode ter várias conotações, podendo, 1No entanto, lembramos sempre que as estruturas relevantes em ciência não são de ordem- 1. Em geral, como já enfatizamos, as relações necessárias para se caracterizar certas áreas do conhecimento científico não se dão apenas entre os elementos do domínio, mas também entre coleções deles (ordem-2), e coleções de coleções deles (ordem-3), e assim por diante.

2Veja, por exemplo, (VAN FRASSEN, 1980, p. 44). No entanto, como pontuaremos durante este texto, é necessário um pouco de cuidado com o uso da palavra “modelo” nessa afirmação.

por exemplo, ser tomado no sentido de uma réplica (como quando se tem um modelo de uma ponte ou de um avião a ser construído), perfazendo neste caso um tipo de modelo físico, entre outros significados.3Todavia, aqui, consoante com os autores que apregoam a visão semântica, “modelo” irá ser entendido como uma estrutura teórico-conjuntista satisfazendo os postulados da teoria. Desta forma, “modelo” é concebido como uma interpretação de (ou em) uma estrutura lógico-matemática que — pelo menos no caso das ciências empíri- cas — se imagina que capte uma parcela da realidade, e isso representaria o que se tem em mente por “teoria científica”.4O próprio van Fraassen expressa assim tal visão: “qualquer estrutura que satisfaça os axiomas de uma teoria [...] é chamada de modelo desta teoria” (VAN FRAASSEN, 1980, p. 43). Para Patrick Suppes (SUPPES, 2002, p. 20) — que diga-se de passagem é um dos maiores defensores de tal abordagem — este então seria precisamente o sentido Tarskiano de nos referirmos a modelos, haja vista que a partir da con- cepção Tarskiana de verdade de uma sentença, esta pode ser interpretada em uma estrutura e, se esta sentença for verdadeira nesta interpretação, essa es- trutura se torna um modelo desta sentença.5 Desta forma, vale citar que os trabalhos de Tarski sobre teoria dos modelos influenciaram fortemente a abor- dagem semântica das teorias científicas (apesar de que na definição original de Tarski de verdade em lógica, este não falou de “verdade em uma estru- tura”). Não obstante, o que os defensores da abordagem semântica fizeram de inovador foi exatamente identificar uma teoria científica com esses mode- los, ou seja, com certos tipos de entidades matemáticas que são construídas numa teoria de conjuntos do modo como já vimos em capítulos prévios. Além 3Em um artigo bastante interessante, Koperski (KOPERSKI, 2013) mostra variados senti- dos da palavra “modelo”. O leitor pode consultar tal artigo se quiser outros sinônimos. Suppes (SUPPES, 1960) também discute as várias conotações da palavra “modelo” como usada em ma- temática e ciência: todavia, segundo ele, todos os usos do termo “modelo” nessas ciências se reduzem ao conceito lógico de modelo. Escusado dizer que tal posição não é unânime e que al- guns filósofos acreditam que algumas maneiras de se entender o conceito de “modelo” utilizado em ciência não podem ser reduzidos ao sentido lógico-matemático, como apregoa Suppes: se- gundo esses filósofos, os modelos utilizados na ciência estariam um pouco afastados da noção de modelo da lógica e da matemática (uma discussão sobre isso pode ser encontrada em (KRAUSE, et. al., 2011). Outros, como van Fraassen, por exemplo, defendem que o termo “modelo” é sim semelhante na lógica e nas ciências naturais: para ele, esta semelhança é um dos pilares da abor- dagem semântica e é exatamente a que permite relacionar a parte teórica ao fenômeno empírico (VAN FRAASSEN, 1980, p. 64-7).

4No entanto, isso precisa ser qualificado. Se a teoria for a própria teoria ZFC, caso ZFC seja consistente, não há como ter um modelo de ZFC em ZFC devido ao Segundo Teorema da Incompletude de Gödel (haja vista que assim a teoria iria ser completa e provar — em si mesma — sua própria consistência). Desta forma, o que se quer dizer aqui é que os modelos das teorias científicas são estruturas em ZFC (aí sim a visão de van Fraassen expressada na nota acima, e no decorrer do texto, realmente se aplica). O mesmo acontece na teoria Q.

5Assim se vê como os termos “modelo”, “estrutura”, “satisfação” etc. presentes na aborda- gem semântica se interligam para dizer o que é uma teoria científica.

disso, uma das características mais importantes desta abordagem é que passa- mos agora a dar ênfase não nos aspectos sintáticos das teorias científicas que estamos focando (que era o caso da abordagem conhecida como empirismo lógico, Received View ou abordagem sintática), mas sim aos seus aspectos semântico-estruturais e às suas diversas interpretações (isto é, seus diversos modelos) dadas através de tais estruturas. Na abordagem semântica, então, as teorias científicas passam a ser vistas como entidades extralinguísticas, não podendo assim ser meramente reduzidas a coleções de proposições como no caso da abordagem sintática (apesar de que tais teorias poderiam também ser descritas linguisticamente caso fosse necessário.6)

De toda forma, a grande de vantagem de tal método semântico, entre outras, é que estamos trabalhando dentro da própria teoria dos conjuntos e temos assim de pronto toda a matemática que necessitamos para lidar com as teorias empíricas. Deste modo, não seria necessário fazer a menção explícita (como no caso do empirismo lógico) dos axiomas lógicos e matemáticos já que pressupomos serem estes os da lógica clássica e os de uma teoria usual de conjuntos, respectivamente. Para a abordagem semântica, podemos então pressupor como conhecidas essas teorias ‘auxiliares’ e partir diretamente para os axiomas específicos da teoria científica em questão (que é o que interessa ao cientista):

Assim, se estivéssemos interessados na axiomatização da mecânica quântica, poderíamos pressupor todas as teorias auxiliares, como o cálculo tensorial, as equa- ções diferenciais parciais, e assim por diante, como se fossem dadas de antemão, uma vez que todos esses conceitos podem ser descritos na linguagem da teoria de conjuntos, e por assim dizer ir diretamente para o que interessa ao cientista. Deste modo, se estamos in- teressados na teoria eletromagnética de Maxwell, po- demos ir direto às suas equações, sem nos determos

6Como afirmam da Costa e French (DA COSTA e FRENCH, 2003, pp. 22-3), porém, existem diversas versões do que se denomina por abordagem semântica, e a maneira como essa natureza extralinguística é compreendida varia de acordo com o tipo de abordagem semântica adotada. Segundo os autores, por exemplo, Beth e van Fraassen irão dizer que as estruturas são captu- radas em termos de espaço de estado; para Suppe, elas devem ser entendidas como sistemas relacionais; e para Suppes e Sneed, em termos de predicados conjuntistas. Todavia, todas estas diferentes formas de se entender as teorias científicas teriam, no fim, o mesmo objetivo: caracte- rizar estruturalmente quais os comportamentos admissíveis para os sistemas físicos de cada tipo. Além disso, vale citar que alguns autores afirmam que a abordagem sintática também teria uma contraparte ‘modelar’ e que não seria algo assim tão puramente sintático. Não obstante, o uso do termo “modelo” neste caso não se referiria a algo semântico à la Tarski, mas sim (parecer ter) uma conotação muito mais no sentido de algo icônico, isto é, de algo que é um modelo de alguma coisa ou tipo de coisa, e que funciona como um ícone daquilo que modela (neste sentido, veja (DUTRA, 2005)).

nos detalhes acerca da linguagem ou da lógica subja- centes, bem como das definições dos conceitos envol- vidos, como derivadas parciais, rotacionais ou diver- gentes. [...] Na visão de Suppes, sabemos de tudo isso ao pressupormos que conhecemos a teoria de conjun- tos (e a lógica) que fundamenta a teoria que estuda- mos, e podemos recuperar toda a discussão pertinente se for necessário (KRAUSE, 2002, p. 37-8, grifo do autor).

Sendo assim, é bom que se enfatize que nesta abordagem podemos explicitar a qualquer momento a lógica e a teoria de conjuntos subjacente, bem como os procedimentos de prova, os conceitos primitivos e a linguagem que estamos empregando. A diferença aqui é apenas que se dá ênfase à parte estrutural (no sentido acima explicitado), e não à parte sintática. Segundo da Costa e French (DA COSTA e FRENCH, 2003, p.27), como os defensores da teoria de conjuntos gostam de afirmar, a linguagem da teoria de conjuntos seria uma espécie de ‘linguagem universal’ com a qual podemos reproduzir praticamente toda a matemática (e assim, segundo algumas visões, todo o pensamento científico) existente: é exatamente este aspecto que fortaleceria a abordagem semântica, pois se axiomatizarmos nossas teorias desse modo, então teremos toda a matemática à mão (apesar de não deixarmos isto ex- plícito, em detrimento à parte semântica que nesta abordagem é considerada mais importante).

Com o objetivo de tornarmos mais clara a definição que o próprio Suppes defende, a saber, que ao apresentarmos uma teoria devemos definir a classe de modelos de tal teoria, podemos lançar mão do que este autor cha- mou de um ‘predicado teórico-conjuntista’ (ou, como ficou conhecido, um “Predicado de Suppes”), a qual é inclusive uma proposta que marcou o início da própria abordagem semântica. De acordo com Suppes, a axiomatização (e assim a modelagem) de uma teoria científica pode ser feita através de uma fórmula (um predicado) da teoria de conjuntos que especifica a que tipo de ‘restrições’ a estrutura satisfazendo tal fórmula deve se conformar. A ideia básica, então, é a de que um cientista ao se deparar com certo domínio de objetos físicos (ou com uma parcela da realidade), imediatamente também se depara com propriedades e relações entre esses objetos (veja mais abaixo) (KRAUSE, et. al., 2011). A formalização desses objetos, bem como de suas propriedades e relações, é o que levará ao conceito de modelo expresso por um predicado na teoria de conjuntos: tais predicados ‘forneceriam’ as estru- turas conjuntistas que modelam um domínio científico. As estruturas satisfa- zendo tal predicado são então os modelos da teoria, e o predicado pode ser

visto como encapsulando uma classe de modelos de tal teoria.7Desta forma, segundo uma máxima de Suppes, “axiomatizar uma teoria é definir um predi- cado teórico-conjuntista” (SUPPES, 2002, p. p. 30). Em resumo, pode então ser dito que o conceito de predicado de Suppes nos auxilia na tarefa de es- clarecer o significado da axiomatização de uma teoria científica, fornecendo a contraparte matemática de tal teoria.

Um predicado de Suppes é definido da seguinte forma. Dada a lin- guagem L da teoria de conjuntos usual (como ZFC), um predicado de L é uma fórmula com uma única variável livre. Suponha assim que P seja tal predicado definido do seguinte modo, sendo D a variável livre:

P(D) ↔ ∃x1...∃xk∃y1...∃ym(D = hx1, ..., xk, y1, ..., yni ∧ AX1, ..., AXn). Onde AXisão expressões deL que correspondem aos axiomas a que os ele- mentos da estrutura D estão sujeitos. Esta estrutura é dita ser então uma “es- trutura da espécie P” (ou uma “P-estrutura”), e se identifica com o conceito de “espécie de estruturas” no sentido de Bourbaki.8Este tipo de predicado, que como visto nada mais é que uma determinada fórmula da linguagem da teoria de conjuntos, é então denominado de Predicado de Suppes (cf. (KRAUSE, 2002, p. 20)). Um predicado de Suppes, portanto, caracteriza uma família de estruturas que são os modelos (ou as interpretações) dos axiomas AXn.9Desta forma, para Suppes, axiomatizar uma teoria é portanto exibir a sua espécie de estrutura, isto é, um determinado predicado do modo acima mostrado, erigido na linguagem da teoria de conjuntos, que de certa forma ‘forneça’ todas as re- alizações (os modelos) de uma teoria em uma certa área do conhecimento.10

A ideia do predicado teórico-conjuntista de Suppes se tornará mais 7Todavia, é bom que se enfatize que o predicado em si não tem modelos. Há, na verdade, estruturas que podem satisfazê-lo, e essas são modelos da teoria axiomatizada pelo predicado. Vale citar que há predicados que não admitem nenhuma estrutura que o satisfaça (neste sentido, veja (DA COSTA e FRENCH, 2003, pp. 21-60)).

8É claro que P também é satisfeito por estruturas da forma U = hD, R

ii, que são as estruturas que estamos tratando nesta tese.

9Além disso, tal família pode ser caracterizada por vários predicados de Suppes, desde que os mesmos sejam equivalentes entre si.

10Todavia, alerta ele (SUPPES, 1975): “Esses modelos são entidades altamente abstratas, não- linguísticas, frequentemente muito afastadas, quanto à maneira como as concebemos, das obser- vações empíricas. E cabe perguntar que contribuição pode ser trazida pelo conceito de modelo às repetidas discussões em torno da interpretação empírica das teorias. [...] Não podemos pegar um número em nossas mãos e aplicá-lo a um objeto físico. O que podemos fazer é mostrar que a estrutura de um conjunto de fenômenos, relativamente a certas operações empíricas, é idêntica à estrutura de algum conjunto de números com referência a operações e relações aritméticas. A de- finição de isomorfismo dos modelos em dado contexto faz precisa a ideia intuitiva de estruturas idênticas. Estabelecer esse isomorfismo de modelos é de grande importância por tornar possível a utilização de nossos conhecimentos acerca dos modelos computacionais no que se apliquem ao modelo aritmético, para inferir fatos a propósito do modelo isomórfo empírico” (grifo do autor).

clara através de um exemplo, no caso, tomemos novamente a teoria de grupos que já conhecemos do capítulo 2 desta tese. Procuramos desta forma axi- omatizar estruturas do tipo G = hG, ?i, onde G é um conjunto não-vazio e ? ∈P(G × G × G), satisfazendo os axiomas da (A1) associatividade; (A2) existência do elemento da identidade; e (A3) existência do inverso. Desta feita, o predicado teórico-conjuntista de Suppes pode ser escrito como segue: G(G) ↔ ∃G∃ ? (G = hG, ?i ∧ G 6= /0 ∧ ? ∈ P(G × G × G) ∧ (A1) ∧ (A2) ∧ (A3)). As estruturas que satisfazem o predicado são os modelos de G, a saber, os grupos propriamente ditos (por exemplo, o grupo aditivo dos inteiros: Z = hZ,+i). Nesse sentido, todos esses modelos representam ‘realizações’ de tal predicado e assim teorias (no caso) matemáticas, o mesmo acontecendo para as teorias científicas.11

Em resumo, podemos dizer que quando estamos investigando um certo domínio do conhecimento erigimos algo como uma estrutura de dados que (acreditamos que) capta as relações de tal domínio. Como pontuaremos abaixo, a maneira como esta estrutura é obtida do nosso domínio de conhecimento é complexa, e da mesma forma é problemático o modo como os vários elemen- tos da estrutura são relacionados com os objetos da realidade. De todo modo, a interpretação de uma sentença S que se refere a uma estrutura de dados é feita com a ajuda de uma estrutura conjuntista A, a qual matematicamente ‘substitui’ a estrutura de dados ‘reais’. Como diz Muller (MULLER, 2008), quando consideramos estruturas que representam certas disciplinas científicas que falam algo sobre a realidade física, é exatamente que este sistema físico é ou tem esta estrutura.12 É importante notar que não é possível provar que existe um isomorfismo entre essas duas estruturas (a da ‘realidade’ e a mate- mática), já que a noção de isomorfismos – tal como vimos – vale apenas entre estruturas formais. É claro que da mesma forma a assunção de que tais estru- turas representem (ou modelem) uma realidade é uma afirmação muito forte, mas como vimos este é o uso essencial de estruturas e seu tratamento com objetos unitários que pode ser reconhecido como fundamental por acreditar- mos que isso ‘represente’ (ou capture) matematicamente aspectos relevantes do mundo. Deste modo, as estruturas matemáticas em ciência são usadas para descrever, modelar, representar, descrever, explicar, entender etc. a na- tureza e, por conseguinte, as teorias científicas. Como ainda enfatizado por 11Outros exemplos de espécies de estruturas matemáticas podem ser construídos como para o caso de espaços vetoriais, topológicos, teoria dos corpos etc., de modo que é possível definir estruturas para todas as teorias matemáticas usuais (cf. (KRAUSE, 2002, p. 21)).

12E neste sentido, como diz F. Suppe (SUPPE, 1977, p. 3), “se algum problema em filosofia da ciência pode ser justificadamente aclamado como o problema central mais importante, é aquele da natureza e estrutura das teorias científicas”.

Truesdell (TRUESDELL, 1977): “Eu não penso que seja possível escrever a história de uma ciência até que essa ciência tenha sido bem compreendida graças a uma clara, explícita e decente explicitação de sua estrutura lógica.” Neste sentido, a utilização de estruturas em ciência e, por conseguinte, a axio- matização de certas parcelas do conhecimento, é componente de importância fundamental na filosofia da ciência pois seu papel – entre outros – é introduzir claridade com respeito aos conceitos básicos da teoria, uma comparação entre as mesmas, potencializar técnicas matemáticas e até mesmo para esclarecer a natureza de certos problemas filosóficos (como, por exemplo, exatamente o da identidade e da individualidade que estamos trabalhando neste texto). O método axiomático permite assim uma análise crítica das teorias científicas no sentido de sua estruturação precisa, permitindo até mesmo a demonstração de resultados metamatemáticos sobre as mesmas (como os que vimos nesta tese).13 Entretanto, como visto, tal construção é erigida em uma teoria de conjuntos, e como estamos tentando demonstrar acaba por ficar assim com- prometida com as concepções formais da teoria conjuntista que em particular utilizamos. No decorrer deste capítulo falaremos mais sobre esta ligação.