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3.5 A FORÇA DA LINGUAGEM CONJUNTISTA

3.5.2 Estruturas rígidas

Uma estrutura é rígida se seu grupo de Galois é unitário e é composto apenas pelo automorfismo identidade (que é sempre um automorfismo, como dito). Sendo assim, as estruturas rígidas são exatamente aquelas nas quais a indistinguibilidade (relativa a uma estrutura, tal como foi definido acima), e a identidade (aqui entendida do modo usual, como sendo o mesmo objeto), re- almentecoincidem.43Tal fato pode ser assim demonstrado (GELOWATE, et. al., 2003). Suponha que existe um automorfismo f de U que não é a função identidade. Então existe um a no domínio, tal que f (a) = b 6= a. Mas sendo b6= a e, por hipótese, em tal estrutura a identidade e a U-indistinguibilidade coincidem, então existe um subconjunto X do domínio tal que: (i) X é inva- riante sob automorfismos; e (ii) a ∈ X , mas b /∈ X. Mas isso é uma contra- dição, pois sendo X invariante sob automorfismos, e a ∈ X , deveríamos ter f(a) = b ∈ X (cf. (KRAUSE e COELHO, 2005)). Desta forma, as estrutu- ras rígidas são exatamente aquelas nas quais podemos usar a propriedade de “ser idêntico a a” para caracterizar a e distinguí-lo (nessas estruturas) dos de- mais objetos do domínio por meio do conceito de distinguibilidade em uma estrutura (que, como dito, agora coincide com a identidade). Veja que em tal estrutura rígida, como a identidade e a indiscernibilidade estão coincidindo, fazemos uso de todas as propriedades e não apenas (tal como feito na seção anterior) das que são invariantes sob os automorfismos da estrutura conside- rada. Importante dizer que a indistinguibilidade relativizada a um universo de ZFC coincide com a identidade usual, já que sendo V o universo de ZFC, a estrutura V = hV, ∈i que, digamos, é a ‘estrutura de ZFC’, é rígida (e sendo assim também o são todas as estruturas construídas em ZFC), o que nova- 42Não obstante, para tal conclusão ser válida, é necessário que a estrutura V = hV, ∈i (que é a ‘estrutura de ZFC’, sendo V o universo de ZFC) seja rígida, o que de fato acontece (veja abaixo). 43Um exemplo de estrutura rígida é a estrutura R = hR, +, ·, 0, 1i que corresponde ao corpo ordenado completo dos números reais. No capítulo 5, daremos mais exemplos de estruturas rígidas.

mente reforça a tese da identidade expressando uma individualidade.44 Todavia, em nosso exemplo acima, 2 e −2 (bem como quaisquer ou- tros dois inteiros opostos nessa estrutura) são indiscerníveis em Z = hZ, +i, pois f (2) = −2, e as relações da estrutura não são suficientes para discernir n de −n. Do modo definido, essa estrutura possui então dois automorfismos, ou seja, duas bijeções de Z → Z que preservam as operações da estrutura: como dito, a função identidade, e a função f que mapeia cada inteiro x no seu oposto −x. Logo, tal estrutura não é rígida, pois seu grupo de Galois não é unitário. Mas essa estrutura está mergulhada em um universo de ZFC (ou seja, é uma estrutura que tem por alicerce a teoria de ZFC), e dissemos acima que a estru- tura V = hV, ∈i, sendo V o universo de ZFC, é rígida. Isso seria uma contra- dição? Negativo, pois isso não quer dizer que x e −x não possam ser discer- nidos de outra forma: com efeito, a rigidificação (e assim a discernibilidade no sentido de identidade entre 2 e −2) pode sim ser alcançada formalmente, apesar de poder ser percebida somente ‘de fora’ da estrutura original hZ, +i, ou seja, no contexto de V = hV, ∈i que é onde ela está mergulhada. O motivo disso é devido a um importante teorema que diz que toda estrutura de ZFC não rígida pode ser estendida a uma estrutura rígida.45Isso pode ser feito de várias formas, mas para a discussão do presente capítulo nos basta apresentar um exemplo. A estrutura do exemplo acima pode ser transformada em uma estrutura rígida acrescentando-se a ela novas relações (no caso, unárias) que consistem de todos os subconjuntos unitários dos elementos de Z (que logi- camente corresponde à propriedade “ser idêntico a si mesmo”). Deste modo, obtemos a estrutura estendida Z0= hZ, +, {0}, {1}, {−1}, ...i, que como fa- cilmente se vê é rígida.46 Todavia, esse fato se prova ‘fora’ de hZ, +i, isto é, exatamente no universo de ZFC onde a estrutura Z está erigida (dito de outra forma, a estrutura acima em que estão incluídas as relações de primeira ordem é uma extensão da estrutura original, e suas relações rigidificadoras estão fora da estrutura original: no universo de ZFC que é seu alicerce).47 Sendo assim, 44A prova de que na “estrutura de ZFC” não existem automorfismos distintos da identidade pode ser encontrada em (JECH, 1997, p. 74).

45Prova-se isso utilizando-se alguns teoremas relativos a isomorfismos e automorfismos. No capítulo 5 desta tese, mostraremos e discutiremos detalhadamente essa prova. Não obstante, no mesmo capítulo, mostraremos que tal fato não pode ser alcançado nas teorias de quase-conjuntos (teoria esta que mostraremos no capítulo 4).

46Outra forma de se fazer isso é ampliar Z com a introdução da relação de ordem padrão <, obtendo assim Z00= hZ, +, <i (cf. (DA COSTA, et. al., 2012)).

47Neste sentido, outros exemplos de estruturas não rígidas são C = hC, +, ·, 0, 1i, que cor- responde ao corpo dos complexos (nesta estrutura, a função que associa a um número com- plexo o seu conjugado é um automorfismo de C que não é a função identidade), e a estrutura P= hV, K, +, ·i, dos espaços vetoriais sobre um corpo K de dimensão finita, onde V é um con- junto não vazio cujos elementos são chamados de “vetores” (cf. (KRAUSE, 2008)). Vale res- saltar, entretanto, que essas duas últimas estruturas — por serem estruturas em ZFC — também

mesmo que dois objetos a e b sejam indiscerníveis relativamente a uma es- trutura qualquer A, se esta estrutura estiver alicerçada em ZFC, ela pode ser estendida a uma outra estrutura A0na qual ‘se pode ver’ (mesmo que seja de fora da estrutura original) que esses objetos são elementos (e assim indiví- duos) distintos. Moral da história: em ZFC, todo objeto é um indivíduo, no sentido de que pode sempre ser discernido de qualquer outro distinto dele, mesmo que para isso tenha-se que estender (no sentido de rigidificar) a estru- tura a qual o objeto pertence, e que assim a distinção acabe se mostrando de fora da estrutura original. De certo modo, pode ser afirmado com isso que em ZFC não há não-indivíduos ‘legítimos’! Como dizem (GELOWATE, et. al., 2003), tal como também afirmamos no primeiro parágrafo desta seção, isso é claramente um indicativo do comprometimento de ZFC (e da matemática nela erigida) com uma ontologia de indivíduos, já que o mesmo também vai acontecer em estruturas mais gerais.48 Em resumo, mesmo tomando a defini- ção acima de “indistinguibilidade em uma estrutura”, se tivermos dois objetos que estão se mostrando indiscerníveis pelos recursos da estrutura, essa estru- tura (em ZFC) pode ser expandida de modo a podermos nos ‘garantir’ que esses objetos são o mesmo ou que, na verdade, são sim dois objetos que estão se revelando iguais apenas pela estrutura original não-rígida.

Um ponto de destaque se refere ao fato de que há aqui ‘dois’ tipos de rigidificação envolvidas: uma se refere àquela na qual a estrutura original já está rígida e que, no sentido da discussão abordada, não haveria sentido estendê-la a uma estrutura rígida, e outra em que a rigidificação é possível de ser feita fora da estrutura não-rígida original. Neste último caso, como tentamos enfatizar no texto, estaríamos trabalhando com o apanágio do pró- prio universo fundamental ser rígido. Como enfatizamos acima, o fato do universo de ZFC ser rígido também nos ajuda a defender a visão de que esta teoria se compromete com uma individualidade de seus objetos, característica essa que acaba por ‘afetar’ todas as estruturas nela construídas. Obviamente, há aqui dois tipos de problema: um acerca da rigidificação em uma estrutura dentro do universo; e outro da rigidificação do próprio universo, e poderia ser podem ser rigidificadas como mostraremos no capítulo 5. Além disso, é bom mencionar que a estrutura apresentada no exemplo dado no texto é uma estrutura de primeira ordem, ou seja, as relações envolvidas aplicam-se unicamente a elementos do domínio, e não a seus subconjuntos, subconjuntos dos subconjuntos etc., o que daria as estruturas de ordem superior. No entanto, como veremos, o resultado de rigidificação apontado pode também ser estendido para essas es- truturas de ordem superior.

48Em (DA COSTA, et. al., 2012), mostramos um caso em que poderíamos construir um mo- delo interno de ZFU, e um de ZFC, nas quais podemos simular a relação de indistinguibilidade — que como vimos é distinta da identidade — de modo que não ficamos comprometidos com indivíduos. Todavia, esta construção apenas disfarçaria essa perda de comprometimento, haja vista que como a construção ainda é feita em ZFC, a noção de indivíduo (e de identidade) na teoria de fundo subjacente permanece.

dito que a estrutura estendida (que é rígida) não é mais a estrutura original (não-rígida). No futuro discutiremos mais sobre essa ‘diferença’, e como um dos resultados fundamentais da nossa tese mostraremos que estruturas fei- tas na teoria de quase-conjuntos não podem ser rigidificadas, fato que então nos dará segurança para falarmos de “não-indivíduos” de acordo com uma concepção que descreveremos nos próximos capítulos.

Estruturas adequadas para descreverem certas áreas da matemática, bem como certas teorias físicas (ou para serem modelos dessas teorias), ob- viamente terão que ser bem mais complexas do que as descritas acima. Eis alguns exemplos. No caso da matemática, da mesma forma que temos a es- trutura G = hG, ?i para grupos, temos a estrutura C = hC, +, ·, 0, 1i (que cor- responde ao corpo dos complexos) e a estrutura P = hV, K, +, ·i (dos espaços vetoriais sobre um corpo K de dimensão finita), dadas estas duas últimas em nota acima, bem como também a estrutura T = hA, τi para espaços topológi- cos (novamente, A é um conjunto não vazio, e τ uma coleção de sub-conjuntos de A, chamado de uma topologia), cada uma delas satisfazendo seus postu- lados correspondentes. Para teorias físicas ocorre algo parecido. No caso da mecânica clássica de partículas, uma das possibilidades é uma estrutura da forma M = hP, T, s, m, f , gi, onde P é o conjunto das ‘partículas’; T é um conjunto que representa a coleção de instantes de tempo (em geral, um inter- valo fechado da reta real); s é uma ‘função posição’ de uma partícula em um tempo dado; m é uma função de P em R+(que representa a massa das partí- culas); enquanto que f e g são funções que correspondem as forças internas e externas do sistema, tudo isso obedecendo certos axiomas (no caso, as leis de Newton49). Para a mecânica quântica não relativística, segundo Dalla Chiara e Toraldo di Francia (CHIARA e TORALDO DI FRANCIA, 1979), podemos ter algo como Q = hM0, S, Q0, ..., Qn, ρi, onde M0é o modelo da análise fun- cional standard (onde podemos desenvolver a teoria dos espaços de Hilbert); Sé um conjunto cujos elementos são chamados de sistemas físicos; os Qire- presentam observáveis físicos; e ρ é uma função que associa a cada s ∈ S um adequado espaço de Hilbert em M0, e a cada Qium operador linear Hermiti- ano sobre os espaços de Hilbert relevantes, novamente tudo isso satisfazendo determinados axiomas.50 Todavia, em todos esses casos a ideia básica per- manece sendo a mesma: temos conjuntos e relações de várias ordens sobre os elementos desses conjuntos e, como podemos construir tal estrutura em ZFC, se a mesma não for rígida podemos falar de elementos indiscerníveis relativamente a uma estrutura que poderão sempre ser distinguidos ‘fora’ da estrutura (no caso extremo, no universo V = hV, ∈i que, como visto, é uma

49Ver (SUPPES, 1957, cap. 12)

50No capítulo 7 desta tese daremos mais exemplos de estruturas para ‘representar’ a mecânica quântica.

estrutura rígida.51) Isso, como estamos tentando mostrar, leva a um compro- metimento com indivíduos devido a todo este arcabouço formal conjuntista subjacente. Com efeito, o mesmo é dito por French e Krause (FRENCH e KRAUSE, 2006, p. 246):

Podemos dizer que não é somente a mecânica clás- sica que usa conceitos tomados da nossa experiência ordinária, mas essencialmente a matemática (e a ló- gica), em certo sentido, também o fazem. Por exem- plo, quando alguém pensa em um conjunto, ele ou ela intuitivamente pensa em uma coleção de ‘objetos clás- sicos’, como àqueles que nos rodeiam, ou seja, indi- víduos [...]. Então, baseado como eles são nas teorias matemáticas padrão, teorias físicas se tornam — em certo sentido — dependentes [...] de tal matemática, e uma teoria física baseada na lógica e matemática não pode recusar os teoremas de tal base lógica e matemá- tica.

Em resumo, então o que temos é o seguinte. Em todas as situações em que podemos trabalhar com estruturas da forma U = hA, (Ri)ii∈I (como, por exemplo, quando se pretende fundamentar matematicamente a física), estas são erigidas em uma teoria de conjuntos (dito de outra forma, são constru- tos conjuntistas). Sendo assim, todas as considerações teóricas desenvolvi- das nesta teoria se aplicam a estas situações. No caso da matemática usual, construída (por exemplo) em ZFC, podemos levar em conta a indiscernibili- dade unicamente mediante determinadas restrições, o que equivale ao confi- namento a determinadas estruturas não rígidas. A grande dificuldade, neste caso, é que mesmo para aquelas estruturas com vários automorfismos distin- tos da identidade, sempre podemos enriquecer a estrutura de modo a obter novas estruturas que são, por sua vez, rígidas, dotando o objeto de uma iden- tidade mesmo ‘fora’ da estrutura original: assim, como diria Lewis Carroll, o “sorriso do gato permanece”.52

Desta forma, como veremos nos próximos capítulos, para fundamen- tar certas áreas do conhecimento seria bom que encontrássemos uma teoria de conjuntos alternativa na qual não conseguíssemos rigidificar as estruturas nela baseadas e, desta forma, não pudéssemos em tais estruturas identificar os 51A estrutura V = hV, ∈i trata-se, no entanto, de uma estrutura que não pode ser construída em ZFC, já que é um ‘modelo’ de ZFC (cf. (KRAUSE, a aparecer)). Isso porque se conseguíssemos construir tal estrutura em ZFC, estaríamos provando a completude de ZFC no próprio ZFC, o que não é permitido devido ao segundo teorema de incompletude de Gödel (supondo ZFC consistente).

52Parafraseamos aqui uma frase de Michael Redhead usada em outro contexto: no caso, a mecânica quântica de campos (veja (REDHEAD, 1988)).

objetos presentes. Tal teoria existe e é chamada de teoria de quase-conjuntos. Como já afirmado, todavia, primeiramente teremos que garantir que em tal te- oria alternativa as estruturas nela construídas não podem ser tornadas rígidas. Esta é uma das preocupações primordiais do nosso trabalho, a saber, mostrar que na teoria de quase-conjuntos não podem haver estruturas que possam ser rigidificadas, de modo que a mesma assim se torne um alicerce seguro para o trato de não-indivíduos, isto é, objetos indistinguíveis para os quais não vale a relação de identidade (de um modo que se tornará claro no decorrer deste trabalho). Desta forma, no capítulo 5, iremos detalhar a prova de que toda estrutura não-rígida clássica pode ser estendida a uma rígida, mas além disso mostraremos que na teoria de quase-conjuntos tal fato não é possível de ser levado a cabo. Em sequência, daremos alternativas quase-conjuntistas para os conceitos e definições mostrados no capítulo presente.