• Nenhum resultado encontrado

IDENTIDADE EM LINGUAGENS DE ORDEM SUPERIOR

A distinção entre lógica de primeira ordem e de ordem superior apa- rece explicitamente somente a partir de 1928 com o livro de Hilbert e Acker- mann: Principles of theoretical logic. Como já falamos, na lógica de ordem superior podemos quantificar também sobre propriedades, relações ou sobre conjuntos de indivíduos (no caso, em segunda ordem), ou sobre propriedades de propriedades, ou conjuntos de conjuntos (no caso, em terceira ordem), e assim por diante. A diferença é colossal: na primeira ordem, como as lingua- gens usuais têm em geral uma quantidade contável de propriedades, estamos falando de no máximo ℵ0 propriedades. Em segunda ordem, como cada propriedade corresponde (extensionalmente) a um subconjunto de números naturais, falamos de 2ℵ0 propriedades.

Poderíamos supor que as limitações da noção de identidade na lógica de primeira ordem poderiam ser superadas pelas lógicas de ordem superior. Entretanto, este também não é o caso: mesmo na ordem superior, a teoria de identidade mostra limitações. Não obstante, primeiramente vamos ver como se dá a edificação de tal conceito nessa teoria (no caso, aqui, ficaremos restri-

tos apenas à lógica de segunda ordem), e posteriormente apresentaremos as limitações.

Como vimos anteriormente, uma das formas de se introduzir a igual- dade (ou identidade) na lógica de primeira ordem é escolher/ adicionar um predicado binário na linguagem para que este denote tal relação entre indiví- duos, além de fornecer axiomas apropriados para este predicado. Poderíamos supor que precisaríamos fazer o mesmo para o cálculo de segunda ordem, mas isso não é necessário porque agora podemos neste cálculo introduzir uma relação de igualdade por definição. Dito de outra forma, é possível aqui encontrar uma fórmula da linguagem que tem as variáveis x e y como suas únicas variáveis livres e a qual sempre possui o valor de verdadeiro ou falso de acordo com x ou y terem ou não terem mesmo valor (CHURCH, 1956, p. 300). Esta fórmula que introduz a identidade por definição é dominada de Lei de Leibniz (não confundir com o PII e com o II), e dado que estamos trabalhando em segunda ordem, quantifica sobre predicados (propriedades) ou conjuntos de indivíduos, como já comentado.

Sendo assim, tome F, por exemplo, como sendo uma variável para predicados de dois indivíduos x e y. Adaptando uma definição proposta por Whitehead e Russell apresentada em seus Principia Mathematica, a Lei de Leibniz se torna

x= y =de f ∀F(F(x) ↔ F(y)).

O segundo membro da definição (i. e., ∀F(F(x) ↔ F(y)) ) expressa a indis- cernibilidade (ou indistinguibilidade). Neste sentido, a identidade é definida em termos de indiscernibilidade: entidades indiscerníveis são idênticas (são a mesma entidade), e reciprocamente. A partir desta fórmula e das regras da lógica, todas as outras leis que regem a identidade (i. e., a reflexividade, a comutatividade, a transitividade etc.), bem como os demais resultados deste cálculo de segunda ordem e alguns dos seus metateoremas podem ser prova- dos (veja (CHURCH, 1956, p. 301ss.). Um fato interessante a ser notado é que a definição acima engloba tanto a lei da substituição (que captura o cha- mado Principio da Indiscernibilidade dos Idênticos, expresso pela implicação x= y → ∀F(Fx ↔ Fy) ), quanto o Princípio da Identidade dos Indiscerní- veis (expresso pela implicação ∀F(Fx ↔ Fy) → x = y ) (cf. (DA COSTA, et. al., 2012; FRENCH e KRAUSE, 2006, cap. 6), coisa que como vimos não é alcançada pela lógica de primeira ordem.

Um ponto a ressaltar é que o quantificador ∀F, como dito, quantifica sobre todas as propriedades do objeto e não apenas sobre algum subconjunto delas, por exemplo. No contexto físico, como discutimos no capítulo anterior, a questão que se põe agora é como definir qual o conjunto de propriedades que devem ser consideradas. Devemos, como já enfatizado, assumir como propri- edades de um objeto do domínio físico somente as propriedades tipo intrínse-

cas, ou também as extrínsecas? Devemos contemplar também a propriedade tipo localização espaço-temporal — a qual é variante a todo momento do per- curso de um objeto — ou esta não deve ser admitida por não se constituir uma propriedade genuína do objeto? Com efeito, no domínio quântico, devido a todos os elétrons serem indiscerníveis, todos os prótons serem indiscerníveis, e assim por diante, a assunção de propriedades tipo espaço-temporal parece ser essencial. Não obstante, como já alertamos, quando elétrons entram nos chamados estados de superposição, nem mesmo esse tipo de propriedade po- deria nos dizer qual elétron é qual. Por outro lado, se medirmos a carga de uma partícula subatômica e a mesma tiver um valor diferente do estipulado para o elétron, temos uma outra partícula, o que parece nos levar novamente à questão do caráter essencial de algumas propriedades para os objetos quân- ticos, e quais seriam elas. Neste sentido, (TORALDO DI FRANCIA, 1981, p. 222) já alertava que as propriedades de tais objetos são nomológicas, ou seja, são dadas por leis, e portanto invariantes para cada classe: os elétrons, por exemplo, têm uma certa carga, um certo spin, uma certa massa e assim por diante, qualidades ‘legais’ que caracterizariam os elétrons e não os pró- tons em uma medição de um sistema físico qualquer. Se mdirmos o sistema e encontrarmos propriedades diferentes, sabemos que não estamos tratando de elétrons. Seriam, então, as propriedades nomológicas as essenciais? Como se viu em discussões anteriores, do ponto de vista filosófico (e mesmo físico) esse tipo de altercação é um tanto complexa, e não nos convém retomá-la aqui por não ser objetivo do presente capítulo.20 O que importa para o ponto que estamos trabalhando nesta seção, é que a definição de identidade em lógica de segunda ordem parte do pressuposto que coisas são iguais se e somente se forem indiscerníveis, i.e., se forem iguais relativamente a todas as suas propriedades, sejam tais propriedades tomadas do jeito que for.

Desta forma, nesta lógica, objetos que satisfazem exatamente os mes- mos predicados deveriam ser o mesmo objeto, apenas sendo nomeados de forma diferente. Não obstante, isto também não funciona! Mostraremos que podemos exibir em tal arcabouço teórico objetos que satisfazem os mesmos predicados, mas que sabemos que não são o mesmo objeto, e isto trará à lume as limitações das lógicas de ordem superior (FRENCH e KRAUSE, 2006, p. 254ss.; KRAUSE, a aparecer; DA COSTA, et. al., 2012). Para tanto, suponha que temos uma linguagem de segunda ordem (ou mais alta) em que a iden- tidade é introduzida via Lei de Leibniz como descrito acima. Supomos que esta linguagem contém variáveis individuais x, y, z etc. (com ou sem índices), 20Não obstante, nos próximos capítulos, discutiremos mais sobre a questão das propriedades dos objetos quânticos e sobre as várias formas do Princípio da Identidade dos Indiscerníveis que podem ser assumidas de acordo com as diferentes propriedades que consideramos ‘legítimas’ esses objetos.

e variáveis para predicados Xni, onde n é a aridade (peso) do predicado (nú- mero que indica a quantos argumentos ele se aplica), e i um índice que indica qual o predicado em questão. Podemos estabelecer, como de hábito, uma in- terpretação I para esta linguagem que associa um elemento de um domínio não vazio D a cada variável individual, e uma relação Rn(n-ária) sobre D a cada variável para predicados Xnda linguagem.

Também como de hábito, uma estrutura padrão para esta linguagem é aquela que contém relações para todos os símbolos de predicados. Simi- larmente, podemos definir para a lógica de segunda ordem os conceitos de verdade e de falsidade em uma interpretação, além do de satisfatibilidade, es- tendendo sem dificuldade os conceitos semânticos habituais: uma fórmula da linguagem de segunda ordem é válida se for verdadeira em todas as estrutu- ras, e é dita ser satisfatível se for verdadeira em pelo menos uma estrutura. Pode-se provar um teorema de correção para a lógica de segunda ordem se- gundo o qual todo teorema é válido (CHURCH, 1956, p. 307ss.; MENDEL- SON, 1997, p. 373ss.). Todavia, não vale a recíproca (i. e., o teorema da completude) para esta lógica, haja vista que as lógicas de segunda ordem são incompletas relativamente à sua semântica padrão tal como mostra o segundo teorema da incompletude de Gödel. Não obstante, Henkin (CHURCH, 1956, p. 307) demonstrou um teorema ‘mais fraco’ de completude para a lógica de segunda ordem com relação às chamadas “Estruturas de Henkin”; estruturas nas quais não estão envolvidas todas as relações sobre o domínio, mas so- mente algumas devidamente escolhidas. Nas estruturas de Henkin, por exem- plo, o domínio de variação de uma variável para predicados unários X1não é o conjunto potência D (o conjunto de todos os subconjuntos de D), mas uma subcoleção escolhida desse conjunto.21 Em outras palavras, ao interpretar as sentenças da linguagem, só é permitido que as variáveis para conjuntos per- corram subconjuntos escolhidos do domínio e não todos os subconjuntos.22 21Formalmente, o que acontece é que em um modelo standard para as teorias de ordem supe- rior deveríamos levar em conta todos os subconjuntos de objetos de um determinado tipo (que Church (CHURCH, 1956, p. 307) chama de “principais”). O problema é que no caso das lógicas de ordem superior não se tem um teorema de completude para a semântica standard, como dito. Podemos tentar remediar tal problema utilizando uma semântica de Henkin na qual os modelos (chamados modelos de Henkin) são tais que os quantificadores percorrem apenas determinados subconjuntos de objetos de determinado tipo. Neste caso, garantimos uma forma mais ‘fraca’ de completude. Uma apresentação informal e popular de tal característica da lógica de segunda ordem aparece no artigo “Completude”, do próprio Leon Henkin, que se encontra em (HENKIN 1975).

22Henkin descreve assim tal construção teórica (HENKIN 1975, p. 79/80): “...numa lingua- gem de segunda ordem, nós dispomos de [um tipo de] variáveis que percorrem os elementos do domínio de um modelo, e dispomos de outro tipo de variáveis que percorrem os subconjuntos do domínio. Modelo generalizado de uma linguagem desse tipo será um modelo, no sentido dado ao termo [i.e. do modo usual, à la Tarski] acompanhado por uma determinada classe de subconjuntos de seu domínio. Ao interpretar as sentenças da linguagem em relação ao modelo

Para se fundamentar por sua vez uma semântica sensata para as lógicas de segunda ordem em uma estrutura de Henkin, exige-se que sejam verdadeiras em tal estrutura todas as instâncias do chamado “Esquema de Compreensão” seguinte, onde F(x1, ..., xn) é uma fórmula qualquer na qual a variável para predicados Xnnão figura livre:

∃Xn∀x1...∀xn(Xn(x1, ..., xn) ↔ F(x1, ..., xn)).

Informalmente, este postulado diz que toda fórmula F(x1, ..., xn) determina uma relação (cf. (KRAUSE, a aparecer)).

A partir disso é possível garantir, como dito, uma forma ‘fraca’ de completude. Não obstante, desta forma, a definição de identidade segundo a Lei de Leibniz deixa de ser a identidade intuitiva. Com efeito, podemos tam- bém aqui apresentar um contraexemplo no qual objetos distintos satisfazem a definição de identidade via tal lei (ibid.). Para tanto, suponha que nossa lin- guagem de segunda ordem contenha duas constantes a e b, e três predicados unários P1, P2e P3. Suponha também que tenhamos escolhido uma estrutura de Henkin que tem por domínio o conjunto D = {1, 2, 3, 4, 5}, e que contenha as relações unárias R1= {1, 2, 5}, R2= {1, 2, 3, 4} e R3= {1, 2, 4} que inter- pretam os três predicados dados. O que ocorre é que se interpretarmos a e b, respectivamente, como 1 e 2, então a = b (ou seja, 1 = 2) é verdadeira nessa estrutura, pois 1 e 2 pertencem a todas as relações. Com efeito, de acordo com a Lei de Leibniz, a = b ↔ ∀F(F(a) ↔ F(b)), e isto é o que ocorre pois a variável F percorre um domínio constituído unicamente por R1, R2e R3. Se a interpretação for entretanto a padrão, obviamente a = b valerá se e somente se a e b denotarem o mesmo objeto, já que neste caso estarão envolvidos to- dosos subconjuntos do domínio; mas não é isso que ocorre exatamente pelas ‘condições’ que são impingidas à semântica de Henkin. “Isso mostra que a relação de identidade entre dois objetos depende não somente da particular interpretação escolhida, mas de maneira mais profunda, da matemática utili- zada para construir a semântica” (ibid.).

generalizado, só permitimos que as variáveis-conjuntos percorram os subconjuntos escolhidos do domínio, e não permitimos que percorram todos os subconjuntos” (grifo do autor). Desta forma, diz o autor, nas teorias de ordem mais elevada vale um teorema de completude que é inteira- mente análogo ao resultado que Gödel estabeleceu quanto à completude das teorias de primeira ordem: as teorias de ordem mais elevada são completas em relação à classe de todos os modelos generalizados que satisfaçam todos os axiomas.